Vivências Diplomáticas

VIVÊNCIAS-VII-LISBOA- A COMUNIDADE DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA-CPLP

VIVÊNCIAS

X-LISBOA. A COMUNIDADE DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA—CPLP

A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa-CPLP é uma organização internacional sediada em Lisboa.

É um desafio falar da CPLP, uma iniciativa que mexe com muitos arquétipos: viagens e descobrimentos, impérios, metrópoles e colônias, liberdades e desconfianças, criatividade, lideranças e democracias, vizinhanças e distâncias, igualdades e desigualdades. Será vista como arranjo regional, criado em 1996, em torno da língua portuguesa e de outros valores culturais e políticos partilhados originalmente por sete países—Angola, Brasil, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. Timor-Leste tornou-se membro pleno em 2002, quando de sua independência (liberando-se da Indonésia e da tutela da ONU). Em 2014 foi a vez da Guiné Equatorial, cuja adesão se deu em longo e controvertido processo, em vista dos questionamentos relativos às qualificações do país, de língua oficial espanhola, há 35 anos governado pelo ditador Teodoro Obiang, com escassos resquícios da língua portuguesa e onde está vigente a instituição da pena de morte—todos fatores conflitivos, senão incompatíveis, com as condições de admissão de membros, conforme os estatutos da organização.

Como é, então, que a Guiné Equatorial foi admitida? Numa resposta de «bate-pronto», tratou-se de proposta do Brasil, mas com assinatura claramente partidária, tendo sido articulada durante o segundo mandato do presidente Lula. Exceto por uma consequente e generalizada expectativa de vir a CPLP, de orçamentos bastante limitados, a contar com um país membro adicional em condições de aportar recursos significativos à organização, não havia disposição, nem boa vontade dos demais países membros em receber candidato com o perfil assinalado da Guiné Equatorial. Brasil, de sua parte, com ligações de cooperação com a Guiné Equatorial na área do petróleo e principal beneficiado, estaria disposto, em troca,  a ajudar o ditador Teodoro Obiang a sair de seu isolamento político, abrindo-lhe as portas da CPLP.  

 Meras especulações, mas assim corriam as vozes discretas dos delegados pelos corredores do belo edifício sede  da Comunidade, junto à Sé, no bairro da Alfama, em Lisboa. Uma resposta mais sopesada encontrará eco nas contradições que por vezes podem sugerir alguma artificialidade na natureza da Comunidade, malgrado a solidez de seus fundamentos, a língua comum, traços culturais próprios, com peso geográfico no concerto internacional.

A CPLP traduz ensaio de uma identidade comunitária, capaz de dotar os países membros, como foi o caso do Mercosul no âmbito comercial, de uma plataforma diferenciada de diálogo entre os países que a integram e destes com os demais países, nos três pólos de sua proposta de ação: concertação política, promoção da língua portuguesa e cooperação, defesa dos valores democráticos. Objetivos legítimos, não há negar.

E a plataforma é significativa: no momento são nove países membros, com uma área total de 10.742.000 km2, 7,2% da terra do planeta, em espaço descontínuo em 4 continentes, a maior parte no hemisfério sul, onde o português é a língua mais falada. É certo que é constituída de realidades muito diversificadas, o que, em seus propósitos, a Comunidade vê como fator positivo.

Há, com efeito, boa dose de originalidade na construção da CPLP, ainda que, como digo, a iniciativa mexa com muitos arquétipos, por exemplo ligados à lusofonia e à história colonialista, dominação e lutas pela independência; ou a modelos de agremiações como a «Commonwealth» ou o «Espaço Francófono». Nestas, no entanto, ao contrário da CPLP, onde as decisões são por consenso, subsistem as estruturas organizacionais de perfil hierárquico e que tampouco têm a pretensão da concertação política. Enfim, uma organização que apenas completou 25 anos, com uma estrutura administrativa ainda muito precária, mas que gradualmente se vem afirmando como um espaço comum, não só culturalmente mas também como de entendimentos políticos e com iniciativas concretas de cooperação. Sobre este ponto, aliás, vale referir a CPLP como uma «marca», como se deu por exemplo com o Mercosul, havendo, como lá, a multiplicação, de forma bem espontânea, de órgãos governamentais e entidades não-governamentais, e outras da iniciativa privada, que se associam à «marca» CPLP, contando assim com aumento de escala nas respectivas atividades. Há de tudo, em todas as áreas.  Esse, o envolvimento da sociedade civil, será talvez uma das consequências mais importantes da criação Comunidade-CPLP, e que encontra ressonância nos órgãos governamentais representados dentro da organização.

As desconfianças, herdadas do contexto histórico Portugal-metrópole e colônias, sobretudo no seio dos 5 países africanos de língua portuguesa, os PALOP, conquanto ainda perdurem aqui e acolá, marcaram sobremaneira a aceitação da iniciativa, liderada em seus tempos de conformação, na década de 1990, pelo então embaixador do Brasil em Lisboa, José Aparecido de Oliveira, que a teve quase que como uma bandeira de natureza pessoal. Nunca foi um tema prioritário na política externa do Brasil, contudo, e somente com muita relutância, por parte de países ex-colônias ainda com os traumas de guerras recentes de libertação e de afirmação de independência, pôde ser assimilado como um desafio comum a todos.

Vindo justamente de Lisboa, onde passara dois anos como cônsul-geral do Brasil, removido para a Secretaria de Estado, em Brasília, para assumir a chefia do Departamento de África e Oriente Próximo, deparei-me logo em seguida com a II Reunião de chefes de Estado e de Governo da CPLP, assunto sob minha responsabilidade. Para mim, naquele momento, uma curiosidade, algo até mesmo exótico no plano de nossa política externa. Mas vi logo o desafio que consistia a busca, necessariamente conjunta dos países membros, de um espaço próprio no contexto internacional para a afirmação de valores caros a esse grupo de nações. Ouvia-se muito, e ainda, mas muito menos, a indagação, mesmo entre colegas diplomatas:

–CPLP o quê? O que é isso?

A notar que também o Mercosul, plataforma com objetivos mais bem voltados para a integração e a expansão comercial dos 4 países que originalmente a integravam, conformou-se igualmente na década de 1990. São arranjos com características e objetivos distintos, mas que podem desenvolver muitos pontos de semelhança, senão de convergência. De há muito que o Mercosul deixou de ser um organismo voltado apenas para a criação de um espaço comercial comum, uma área de livre comércio ou uma zona aduaneira: suas estruturas intergovernamentais permitiram uma notável expansão das áreas temáticas objeto de tratamento conjunto, para além dos movimentos de bens e serviços, como também de pessoas.  Temas diversos, como meio ambiente, educação, energia, transportes, etc.  são objeto de tratamento em foros governamentais e não-governamentais, sempre dentro da ótica da «marca» Mercosul.  Como na CPLP. Há mesmo, no plano político, o esboço de diretivas no plano supranacional, como é o caso da chamada «cláusula democrática»,  que condiciona a participação no Mercosul apenas a países com regime democrático. Essa cláusula fundamentou a suspensão da Venezuela e, por determinado período, do Paraguai. Significativamente, a mesma cláusula é condcionante da participação dos países na CPLP.

Findo o meu período em Israel, o chanceler Celso Amorim ofereceu-me a chefia de nossa missão permanente junto à CPLP, em Lisboa. O Brasil foi pioneiro em contar com uma missão permanente de representação junto à CPLP em Lisboa. Sucedi ao primeiro ocupante do cargo, o embaixador Lauro Moreira. Em abril de 2010, quando lá cheguei,  Portugal, país sede, já nos acompanhava com uma missão separada da chancelaria, com um representante permanente, como nós. Logo em seguida vieram Angola e Moçambique. Os demais países operavam, e creio que ainda operam, a partir das respectivas embaixadas, de forma cumulativa. Aceitei por amor que aprendi a desenvolver pela causa, e por tratar-se de posto multilateral, ainda que limitado em escopo e número de países. Ademais, era estimulante a  perspectiva  de voltar a servir em Lisboa, em condições bem distintas daquela de  cônsul-geral e, a bem dizer, daquela de embaixador junto ao governo português, esta uma função onde o charme  e a beleza da representatividade compõem a ampla moldura de um quadro onde relações políticas estáveis e os significativos investimentos portugueses no Brasil dão a tônica.

É fato que a diversidade e a desigualdade de escalas entre os países membros permitem um olhar cauteloso sobre o potencial da CPLP como entidade politica e economicamente singularizada. A mesma dúvida sempre esteve presente no Mercosul, onde também há um peso político e econômico bastante diferenciado entre Argentina, Brasil, Paraguai e  Uruguai. A rigor, o mesmo se poderia dizer da maioria dos arranjos regionais (EUA, Canadá, México) ou mesmo dos organismos multilaterais mais abrangentes. Até a própria ONU, evidentemente. Desse ponto de vista, a diversidade não terá valores positivos ou negativos, pois é um dado da realidade internacional e que se compensa na busca de convergências. Assim a teoria, assim a prática, com todas as nuances e contradições da realidade. Com efeito, a CPLP segue em pé, bem direitinho. Seu riquíssimo universo social tem sido de importância capital para o Brasil , seja  ao por em relevo nossa identidade africana, seja ao reconhecer, na sociedade brasileira, potencial de solidariedade no esforço comum pelo desenvolvimento e reconhecimento da dignidade do ser humano. Há sempre uma resposta ativa e atenta por setores diversos da sociedade brasileira ao trabalho da CPLP, não só no restrito âmbito governamental, mas por meio de seus desdobramentos na sociedade civil. Tem tido, em termos de política externa, uma utilidade comprovada com os bons resultados da articulação, por exemplo,  para o endosso  de candidaturas de nomes originários dos países membros a cargos diversos no âmbito internacional, sempre com êxito. Muito da expansão da língua portuguesa e da cultura comunitária em décadas recentes se deve à presença da CPLP, que se vê crescentemente integrada na comunidade internacional com voz própria. Não é pouco.