Vivências Diplomáticas

VIVÊNCIAS DIPLOMÁTICAS E AUTOBIOGRÁFICAS DE UM MINEIRO MATUTO: PARTE II

UM INTERVALO AUTOBIOGRÁFICO E DE AUTOFICÇÃO: A AMIGA VIDRAÇA

Antes, porém, de continuarmos, permitam-me apresentar-lhes a amiga Vidraça. Sim, Vidraça me viu nascer. Meu «alter-ego», alguém que me conhece por dentro, por assim dizer, e que não tem pejos em dizer certas verdades que eu, como diplomata, acostumado a duvidar das verdades que nos são ditas, tenderia a questionar, mas como vêm de meu alter ego, me prontifico a admitir, aceitar e endossar. Não daria um só tostão quando vejo o nosso Chanceler Ernesto Araujo dizer que busca retomar a verdade histórica no Itamaraty, e para isso questionar administrações passadas e as linhas mestras de nossa diplomacia. É certo que muitos erros foram e são cometidos desde Rio Branco e antes, mas revolver os fundamentos da política externa do Brasil, identificados com princípios basilares das relações externas, tais como o da não-inteferência, ou o da solução pacífica das controvérsias, ou a defesa do multilateralismo, é outra história. Faria muito melhor se buscasse eliminar as práticas costumeiras da instituição, de favorecer, por exemplo, o personalismo, inclusive o de natureza familiar (até Rio Branco, o Barão, se favoreceu disso, sendo o pai, Visconde do Rio Branco, diplomata). Vidraça é, como digo, um personagem de ficção. Mas, por favor, não desprezem sua presença em nossa realidade.

Como eu lhe dizia, a propósito da experiência relatada em Ramalá:

–Verdade, Jerusalém é uma história longa de caminhos que chegam, se cruzam e de caminhos que se abrem.

–Que lindo!

–Vidraça, não brinque. Jerusalém é mesmo uma cidade santa, mas também uma «encruzilhada mal resolvida do mundo», como disse meu irmão Ricardo quando lá esteve. Os caminhos se cruzam, mas as encruzilhadas estão marcadas por sangue e conflitos intermináveis.

–No Brasil de hoje, 2019, Jerusalém,  parece, está ficando na moda, com a declarada intenção de o Presidente Bolsonaro mudar a Embaixada do Brasil para lá, pelo que sei em pleno desrespeito ao Direito Internacional, às Resoluções das Nações Unidas e ao bom senso.

–Pois é, Vidraça, não se mexe com Jerusalém impunemente. Caso me permita dizê-lo, penso que Jerusalém, a par de suas dimensões históricas e religiosas, deste e de outros mundos, também tem, lá no rabinho de suas múltiplas e humanitárias dimensões, e diante do contraste entre Jerusalém como o cadinho de encontro das civilizações em meio ao deserto e sua sublimação nas religiões teocráticas, uma parecença com a Amazônia pujante de verde, água doce e povos primitivos: ambas são muito maiores que os projetos ali desenvolvidos pelo homem. Em Jerusalém, as histórias são verdadeiramente santas e bárbaras, enquanto na Amazônia, pelo menos por enquant,o o barbarismo tem prevalecido. Agora, você tem essa mania de dizer as coisas com uma ironiazinha fina. Jerusalém é realmente muito linda. Ignoro se você, nessas suas andanças históricas, por acaso esteve por lá. Não é impossível, sabe? Pois é, te descobri num lamaçal, você, uma vidraça com vidros de cristal (quando te achei, eram só cacos, um ou outro vidro, perdão, cristal, inteiro), muita poeira e lama por cima, e a moldura de madeirame, de quadrados iguais, bem ouropretanos, coloniais, de pau pesado, nobre, bem que poderia ter tido origem naquelas paragens. É sabido que D .Pedro II, quando peregrinou pela Terra Santa, pelos idos de 1875, trouxe, ao regressar, além dos entendimentos preliminares para emigração sírio-libanesa para o Brasil, muitas relíquias, entre elas alguns cortes e mudas de pau do Líbano, o famoso cedro.  Você e sua madeira, que, sem me gabar, descobri em meio daquele lamaçal, pode ter sido construída com algum elemento originário da terra onde se diz que o sol nasce, depois de passar pelo Japão e China. Para mim, você tem algo de santo, e não quer revelar.

–É uma possibilidade, talvez tenha mesmo sido fabricada a partir de um pinheiro plantado com muda trazida do Líbano, ou, quem sabe, algum pau que, de santo, será apenas o contato com uma relíquia que algum prelado à época esqueceu à minha janela. Sem querer esnobar, meu madeirame é do chamado pinho-de-riga. Riga,  Estônia. Vinham de lá essas madeiras, via Portugal, mas a origem no Oriente Médio também é plausível.Veremos isso depois, mas posso desde já lhe garantir que você não me encontrou por acaso.  Nosso encontro no lamaçal não terá sido mera coincidência, pois você, ao aceitar ser Embaixador do Brasil em Israel, de 2006 a 2010, seu primeiro posto no exterior como Embaixador, com certeza quis sentir de perto as densas fragrâncias do deserto marcadas pelos intermináveis conflitos e sacrifícios entre irmãos. E do sacrifício maior Daquele que se Fez Homem para dar-nos a Redenção. Sei disso, e lhe digo que estamos nisso juntos. Você me reencontrou, e vejo que precisa de minha ajuda para encontrar seu caminho, o verdadeiro, dentre todas as sendas, matutas ou diplomáticas, que você já percorreu e ainda vai percorrer.

 Vi você nascer. Você, claro, não se lembrará. Depois de feita, bem instalada em casarão de Ouro Preto, onde fiquei tranquila muitos anos, dali me tiram por conta de uma «reforma». Fui parar em Santa Bárbara, no casarão de seu avô, numa parte que foi ampliada para acomodar sua mãe, única filha do dono do sobrado, agora casada com o pai Luizinho. Anos depois, os avós mudam para Belo Horizonte, desiludidos e brigados com metade da população por causa da política local, e o casarão, vendido, vira colégio. Fiquei sem lugar nas novas instalações. Mudaram-me para Mariana, também para uma bela casa, demolida à revelia da prefeitura para também virar colégio, parece sina, hoje supermercado. Material de construção, você sabe, é material vagabundo, não no sentido de ter baixa qualidade, o que obviamente não é o meu caso, mas por não ter destino fixo. Vagamos como um navio à matroca. E fui aproveitada em uma casa simples, mas de bom gosto, em Bento Rodrigues, destroçada pela lama. Em seguida, com o primeiro sol, passadas a tempestade e a enxurrada, vislumbrei sua figura, de porte elegante, com algo de nobreza decadente, a face meio escondida pelo capacete de trabalho de salvamento, algo titubeante como pessoa, e com quem de certa forma me identifiquei. Dei-lhe uma piscada, quero dizer, ajustei-me para que pudesse refletir a luz do sol sobre você, para chamar sua atenção, e você me empurrou devagarzinho com o pé, como quem quer ver que objeto é esse, e com alguma relutância me apanhou, toda suja de lama, eu, vidraça nobre, ou, se não nobre, pelo menos colonial, nascida, isto é, fabricada em fins do século  XIX. 

E resolvi falar. Sei que as vidraças, como qualquer ser inanimado, ou os animais não humanos, menos o papagaio, claro, não falam; mas, por algum milagre lá da Terra Santa, sinto-me como um reflexo seu, que conhece sua história, tanto a interior, aquela lá de dentro, que você e todos nós por vezes sufocamos, como a exterior. Sinto-me como reflexo seu, digo, e agraciada com voz, Deus seja louvado.

 Ouvi há pouco você sugerir que tenho essa «ironiazinha fina». De fato,  conquanto a use parcamente,  é para o seu bem, espero que não se incomode, serve para assinalar com mais força os contornos de certas coisas imaginativas que você diz, e que se perdem por vezes  no emaranhado de um raciocínio tanto ou quanto barroco, queira desculpar-me a franqueza.

–Você acaba de usar o termo «barroco» como um qualificativo algo pejorativo. Poderíamos discutir horas, você sabe bem, conhece muito melhor do que eu o barroco como estilo de época, e toda a bagagem cultural e humana que esse estilo de época trouxe consigo, para a literatura, a música, a arquitetura. Você tem o barroco nas veias, quer dizer, na seiva que já existiu na sua madeira. Deixe de provocar-me. Aceito sua crítica, mas tenha presente que o termo barroco denota uma parte importante de nossa formação cultural e humana, aqui no Brasil, especialmente nestas nossas Minas Gerais, mas não só, veja o Rio, a Bahia, Pernambuco, mesmo São Paulo, e nos liga a algumas de nossas mais profundas raízes.

— Conheço as suas histórias, mas é importante que as conte, de viva voz, pessoalmente. Estou cá apenas para comentar, e lhe fazer companhia. Além, claro, de por um pouco de ordem nesses relatos. Vejo que está um pouco confuso, você fala de mim, em vez de concentrar-se nas suas histórias, na suas vivências diplomáticas e na sua vida. Sugiro voltarmos a Santa Bárbara, sua terra. No quarto onde tive a honra de ser janela. Naqueles idos de 1946, você nascia, das mãos de três médicos, pai Luizinho e compadres, muito chique, na casa mãe, o velho sobrado do avô, ´coronel` Pedro Motta e vó Cecília. Vi tudo. Cinco e quinze da tarde, dia 28 de maio. Naquele sobrado, quem nele entra pela Rua de Baixo, vê, passando pela varanda, uma escada à esquerda que desce ao porão, adega de vinhos e cachaças do coronel. E, pela direita, outra escada que, subindo, dá ao corredor longo, por onde se distribuem de um lado os quartos, de outro cozinha, sala de jantar.  Logo no  quarto do fundo, espaço ampliado com vista ao quintal, e em cuja parede nova  me haviam instalado, a mim, vidraça de alto coturno, vidros de cristal, madeirame nobre, como você talvez já se deu conta,  podia-se ver o agito do parto, água quente, toalhas.  Do lado de fora, penso ter visto um beija-flor.Talvez não saiba, mas essa ave era a sua outra mãe, seu anjo protetor.  Tempos depois, quando a Maria Motta morreu, o beija-flor veio visitá-la e a acompanhou quando seu espírito subiu aos céus. Um conselho: fique de olho nesse beija-flor, de vez em quando ele bate à sua janela, pois é a Maria Motta que vem te ver. Sabe como é, saudades.

Logo no início do corredor, à direita, em seguida a um vestíbulo, o salão de visitas. Muita politica do interior correu ali. O avô, fazendeiro, se impunha como coronel dessas paragens que iam de Bom Jesus do Amparo a Caeté, as divisas alinhando-se a leste por Santa Bárbara, Catas Altas e o Caraça, e a oeste pelos contrafortes do Espinhaço, na imponência das serras de granito e minério de ferro puro, que se olhavam frente a frente, separadas por um profundo desvão, agraciado com o nome de «Portão dos Mottas». Portão dos Mottas acabou por identificar, no linguajar da região, o conjunto soberbo dessas duas serras mais o desvão entre elas, a divisa a oeste das terras do avô coronel Pedro Moreira Texeira da Motta. A mulher, Cecília Figueiredo, vinha de outras bandas, as de Sete Lagoas, onde os Figueiredo, também fazendeiros, que remédio, eram família abastada. Casaram quando ela, Cecília, tinha treze anos. Sem comentários. Consta que foram felizes, mas imagino que naquelas alturas a noção de felicidade talvez não fosse um atributo a ser considerado nas relações de um casamento. Convém notar que o velho coronel Pedro Moreira Texeira da Motta, dono inconteste de muitas terras e de duas fazendas, acabou por deixá-las, numa ação tão suspeita e desconcertante como injusta,  para dois dos 6 filhos: Itagiba, Moacir, com a conivência—sabe-se lá em troca de que–, de um terceiro filho, Adair, este já bem instalado numa fazenda próxima, perto de Caeté, onde foi promotor por muitos anos. Ficaram a ver navios dessa herança os outros dois filhos homens, Jandir e Darcy, bem como a única filha, Maria do Carmo. Vencido no intricado e violento mundo político de Santa Bárbara da época pelos adversários «inimigos» políticos, os Moreira dos Santos, o velho Pedro Motta e a mulher Cecília, ele já septagenário, vieram viver com a filha e seu marido Luizinho em Belo Horizonte, depois de celebrar, com toda a pompa e circunstância, as Bodas de Ouro, justo na igreja, muito mais que capela, interna da fazenda do Rio de São João, centro do império de propriedades de mais de 1.400 alqueires mineiros. Na ocasião festiva, o velho coronel Pedro Motta, com toda a possibilidade induzido pelos filhos Itagiba e Moacir, a eles  cedeu as duas fazendas,  Rio de são João e Rosário, deixando deserdados os outros filhos. [1]

 Isso já faz tempo, corria o ano de 1954. Já, já, falamos mais dessa fazenda, sempre retratada na perspectiva dos magníficos pés de sapucaia que se elevam à frente do casarão, e que, com suas copas densas e altas de mais de trinta metros, preparam o visitante para a dimensão igualmente extraordinária do nobre prédio colonial, tombado, já quase em ruínas, décadas depois, pelo Patrimônio Histórico e Cultural de Minas. Com a decadência  econômica  e política das oligarquias regionais, cuja semente está na libertação da escravatura, o herdeiro do Rio de São João, nosso tio Itagiba viveu lá o quanto pode sem investir, sem modernizar, com um pequeno rebanho de gado zebu, subsistindo quase que somente da venda do mobiliário antigo e ilegalmente dos objetos de arte sacra da capela. O prédio está hoje restaurado e em mãos alheias à sua densa história—de que vale assinalar desde logo constar ter albergado «sob telha» toda a tropa de cerca de oitocentos homens de farda comandados pelo então Barão de Caxias e que a mando do governo central imperial havia ido a Minas sufocar a rebelião liberal de 1842 liderada por José Feliciano Pinto Coelho da Cunha, depois Barão de Cocais. A fazendo do Rosário, de construção mais modesta, teve destino algo distinto, menos trágico,por assim dizer, mas igualmente sofreu com a decadência inevitável gerada por proprietário que tampouco soube ou quis tomar conhecimento das novas transformações no mundo rural na região e no país.

— Tudo isso faz parte das histórias santas e bárbaras, vividas pelas duas famílias, os Motta e os Pinto Coelho, um quadro pintado com cores fortes e suaves ao mesmo tempo, e que nos tem, a nós, os filhos, inspirado em nosso aprendizado sem fim da arte da vida. E você, Vidraça, lá, quieta, na parede do quarto de meus pais, em Santa Bárbara, vendo e observando tudo, e depois indo parar no meio de um lamaçal, em Bento Rodrigues. Quem diria que experimentaríamos, décadas depois, uma tragédia que nos permitiu conhecer um à outra, a tragédia que atingiu Mariana e o Vale do Rio Doce em fins de 2015.

O TSULAMA DE MARIANA

Um escritor engajado, na transição do romantismo para o realismo, e já desenganado de suas artes literárias e das gentes políticas, veria a coisa assim, Vidraça:

Primeiro, vento miúdo, depois ventania, chuva fina, vento forte, trovões, trovoadas, tempestade. Dizem que até tremores de terra[2]. Dia 6 de novembro de 2015. Rompem-se as barragens Fundão e Santarem, de contenção de dejetos da mineradora  SAMARCO (subsidiária da CIA VALE e Anglo-Australiana BHP)  na região de Mariana, Minas Gerais. Num processo que, mal sabia  eu à época, se repetiria com ainda mais perdas de vida em Brumadinho, lá, 250 mortos, mais 150 feridose ainda outros desaparecidos, com o rompimento da barragem do Córrego do Feijão, a enxurrada explode pela encosta do morro, pelo vale abaixo, cerca de 34 milhões de metros cúbicos de lama vermelho-ocre da lavagem do minério de ferro atingem primeiro e de cheio o vilarejo de Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana, dela distante uns 35 quilômetros, matam, destroem, sufocam, à maneira de tsunamis, vendavais, incêndios, enchentes, terremotos, tudo junto,  vilarejos inteiros. 19 mortos. Uma pessoa ainda deaparecida, lama, lama, lama. Um verdadeiro «tsulama» . Barro que desce em ondas pesadas, estrangulando e enterrando gente, bicho e mata . Antes, Vale do Rio Doce. Agora, tudo inválido, detritado. Visão macro do que sempre desce pelas encostas de morros em periferias pelo Brasil afora, por conta do nada, só da chuva, sempre santa, mas nesses casos, miserenta. Aqui, por conta de mineradoras irresponsáveis e agências fiscalizadoras igualmente irresponsáveis e corruptas.  Horas depois, só  lama, detritos acumulados, casas destruídas  pelo barro aquoso. Maior desastre ambiental e humano no Brasil,até aquele momento, que infelizmente encontra equivalências no recente desastre em Brumadinho, ou na destruição que aflige a Amazônia, há décadas. Avalanche barrenta, aguada e lodosa, que penetra que nem sangue de ferido nas gretas e rachas do chão seco. As veias montanhosas do vale se enchem, jorram e acumulam detritos, corpos, animais, telhas e panelas, casas ruídas, escombros, galhos e carros flutuantes. Pobre Vale do Rio Doce, A mineradora –mãe dessa tragédia , a VALE, premonitoriamente retirou, há tempos, o  «Rio Doce»  de seu nome, ficou só «Vale». Sim, vale morte e destruição, mas segue, com orgulho, como uma das maiores empresas transnacionais brasileiras.  Pois o rio que era Doce virou mar de lama e foi enferrujar o mar, carreando junto a flora e fauna , a história e a gente da região.  Memórias. Tristes. E para a presidenta criminosa e ausente, nem isso. Um ano depois, um vale povoado de doenças de todo tipo geradas pela destruição. Um pequisador perguntou a um fazendeiro da região, em seguida ao acidente trágico, se ainda conseguia ouvir os sapos, e recebeu resposta que não. Assim como ouviu a narrativa sobre a mortandade dos peixes. Previu que as larvas de mosquitos, alimentos dos peixes e dos sapos, proliferariam em descontrole. Ano depois, se abate sobre a região do Vale do Rio Doce surto descontrolado de febre amarela. 

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 Dias mais tarde, no local, como voluntário de equipe de salvamento, vejo num lamaçal, já meio seco por conta da trégua na chuva, presos em um tronco caído, os restos de uma janela de vidro velho, com a parte da vidraça e do madeirame ainda bastante inteira.  O brilho  da luz do dia no vidro velho e ainda meio opaco dessa janela destroçada, no meio da lama ressecada, me chama a atenção.  Olho o vidro como quem visse um espelho e, não sei porque, dou uma piscada. De volta, recebo uma piscada (reflexo da minha?), digo, «oi!».  «Oi», diz de volta a vidraça. Minha primeira reação não foi de incredulidade, ao ouvir e ver uma janela falar. Foi apenas de pensar em janela com letra maiúscula. Isso, Janela.  E assim balbuciei, Janela. «Melhor me chamar de vidraça, que é mais o que sou. Da janela, restou pouco.  Porque não me dá uma limpadinha, meus vidros–de cristal, veja bem—se em más condições, são translúcidos, brilham e revelam muito».  Naquele lamaçal trágico, uma maravilha: uma vidraça falante!  É assim, penso. No meio dessa  grande tragédia, no meio do barro agora já endurecido surge um objeto com vida, e com brilho próprio, ainda escondido no meio da sujeira. Por certo, não estou no País das Maravilhas, nem isso é um conto das Mil e Uma Noites. Aqui não há monstros marinhos, mas uma lama monstruosa; aqui não há coelhos falantes preocupados com a hora. Mas é o país dos políticos corruptos, das grandes empresas corruptas,  e irresponsáveis com o bem público, que para elas não–Vale.  Dou-me o tradicional beliscão para ver se não era sonho, e Vidraça, agora será seu nome, sorri.

 — Tá bem.

Anestesiado ainda pelo fenômeno, e que interpreto como delírio meu, não tenho outro remédio senão separar da lama essa vidraça-que-fala , deixá-la num canto e ao fim do dia de trabalhos levá-la para casa. Confesso que estou tenso e ansioso, predicados que nesse momento fazem um contraponto de abertura mental com o meu cansaço muscular e meu desespero com a dimensão da tragédia em volta.

–Te conheço», me diz você, Vidraça, já em «casa», depois de uma primeira lavada e após enxugada com um trapo desdenhoso.  Trapo talvez até ciumento da Janela, recém admitida em nossa «casa», uma sala de aulas da «Escola Municipal Bento Rodrigues» . Por ficar na parte alta do vilarejo, o prédio da escola havia escapado do tsulama e agora serve de dormitório para nós, voluntários.  Tem sido a nossa «casa», umas vinte camas de campanha,  «de vento», como as chamamos, daquelas que se abrem e têm por estrado uma lona meio fina, meio grossa, sempre de cor azul-não-sei- porque, suportada por molas que rangem o tempo todo sob o peso de cada um de nós, que dormimos pouco e só quando dá. Todas ocupadas pelos voluntários. Por sorte é verão, não precisamos forrar as camas com jornal, para nos proteger do frio. Cobertor em cima; jornal em baixo da gente, forrando a cama, sabedoria de quem lida com camas «de vento». Problema, caso fosse tempo de frio, seria achar jornais por esta banda, nas atuais circunstâncias. O que ocorreu foi mais bem o contrário, os jornais do país, e creio de outros lugares também, se enchem com as notícias do tsulama, mas circulam em outras paragens. Reporteres, sim, que os havia muitos, chegavam aos bandos, com suas traquibandas televisoras, filmavam a devastação.

–Me conhece?, pergunto.

 –Claro!  Antes de Bento Rodrigues e Mariana, estive uns tempos em Santa Bárbara, fui parar na parede do quarto da casa onde você nasceu, aquele sobrado meio colonial da Rua de Baixo, onde  o Coronel  Pedro Motta, sempre muito bravo, e de quem você herdou o nome, se não a brabeza,  ainda regia a política local. Cecília, a mulher com quem ele se casou quando ela tinha meros treze anos, sabia também ficar brava e manejava como ninguém uma faca-serra de pão para ameaçar as crianças teimosas. 

 Lembra da janela que dá para os fundos?  Naquele quarto ampliado para acomodar  o Dr. Luiz depois do casamento dele com a única filha do casal, Maria do Carmo  Motta. Pois fui a primeira janela a ocupar aquela parede.

–Eu, recém nascido, e você já vivenciando o mundo.

OS MÉDICOS

Bem, querido amigo, já sabemos dessa circunstância, recordamos isso mais acima, ainda quando o tema foi Jerusalém. Pois é, vi seu parto, em casa, feito das mãos dos três–à época  inseparáveis– médicos, um luxo,  o pai Luizinho, o tio Darcy, irmão da Maria Motta, e o tio Zé Maria, casado já com Judite, irmã de Luizinho e que hoje,  do alto de seus 108 anos bem vividos, luta agora por conquistar a undécima década, assim seja, Deus a guarde na sua sabedoria, dela e na de Deus,  e vida longa.

–Tio Zé Maria dos Mares Guia! Sabe, Vidraça, nervoso, inteligentíssimo, criou, junto com Judite uma família extraordinária, sobre todos os aspectos. Gente bonita, inteligente, empreendedora, ativa—no sentido mineiro da palavra, o que quer dizer ultra sensível a oportunidades, mas sobretudo gente amiga. Cada um conquistou o que terá sonhado, e talvez até mais.

— Sujeito vibrante, esse Zé Maria. O engraçado é que criaram, creio que o pai dele ou o avô, o nome da família: Mares Guia. Os relatos são de que a avó, chamada Guiomar, foi a fonte de inspiração, apenas inverteram o nome «Guiomar» e deu «Mares Guia».  Beleza, não? Nome forte.  Mas, sinto  algo na sua narrativa que me incomoda. Tom laudatório? Não diria, sei que você relatará no mesmo tom, ainda que com uma dinâmica suavizada, a percepção da família Puntel  Motta, do tio Darcy, irmão da Maria Motta, e que também lhe assistiu no nascimento. A questão é o equilíbrio nas perspectivas, e em narrativas, confesso que não sei onde estará. Quem saberá? Olha, sou de algumas gerações acima da sua, lembre-se que fui feita no século XIX (bonito, assim, em algarismos romanos), tenho literalmente raízes no Oriente Médio, e portanto minhas perspectivas são forçosamente diferentes. Deixarei para escutar seus sentimentos (ora direis, escutar sentimentos!) quando amadurecermos nossa relação. Saberei então compreender melhor. Foi contudo boa a sua tentativa de mostrar a percepção que tem acerca de uma família próxima. Tudo isso é Santa Bárbara, Caraça, Catas Altas. Desacertos no mundo da política, que não é da vocação de vocês, muito engenho, acertos e sucessos no mundo empresarial, ou no ambiente intelectual e das artes, o mais das vezes precedidos de muito esforço e luta no nível pessoal.

–Vidraça, tio Darcy, médico sanistarista, um lutador na profissão, intelectual e gourmet . Muito da literatura brasileira e portuguesa que li foi nos livros que o tio Darcy me empresta. Sempre devolvi  todos, não se preocupe. Assina dois jornais, coisa rara à época, em Belo Horizonte, nos idos das décadas de 1950 e 1960. Vejo hoje nele o primeiro gourmet que conheci, com gostos sofisticados, herdados quem sabe do pai, o velho coronel Pedro Motta. Ele e minha mãe, Maria Motta, estão juntinhos nessa condição, de saber a comida não só como alimento, mas como expressão—íntima, posto que os alimentos são para ser ingeridos– das belezas da natureza e do equilíbrio que nela distinguimos. Tio Darcy contou, em apoio e incentivo a seu bom gosto, com uma grande cozinheira, a Sá Raimunda, a ser descrita inevitavelmente a partir de lugares-comuns, mas que no caso dela são expressões de uma figura incomum na beleza pessoal e na bondade: preta retinta de olhos esbugalhados e sorriso tão largo como sua constituição física. Darcy foi agraciado ademais com a herança do mais puro acervo da cozinha italiana que a cada dia lhe aporta a mulher, Tita Puntel, que ele foi encontrar, sabe-se lá em que circunstância, nas alturas de Guaxupé, foco de bom número de imigrantes italianos, nos confins entre Minas e São Paulo.

–E, junto com esses dois médicos, lá está seu pai, o pediatra Luizinho, todos cuidando de que você nasça direitinho…

–É o que consta. Agora, como falar de meu pai nesta nossa conversa? Não dá para referir-me à sua expressão, à sua dimensão de um humanismo profundo, em nossas palavras simples. Justo ele, no entanto, que cultivava a simplicidade. De momento, vejo-o ali, como o contador das estórias santas e bárbaras que ele viveu na nossa Santa Bárbara, e que você conhece tão bem.

–Penso que para bem contar histórias, sejam santas ou bárbaras, ou até aquelas de ninar, o contador tem que ter a vocação, e parecer, ou ser, pessoa muito inocente, ainda que o advérbio «muito» fica sem lugar perto de adjetivos como «inocente». Deixemos isso para discussão posterior, talvez? Você sabe bem, Vidraça, Luizinho foi um médico fantástico e inocente, seu compromisso com a medicina e com a vida pode ser resumido na palavra: integridade. Recomendo a propósito o livro «A Cidadela» («The Citadel»), de A.J. Cronin. Todo médico devia ler e nós outros também, para entendermos essa integridade e a inocência—ou a falta dela—na medicina.  Cronin foi médico, e seu relato nesse livro, publicado em 1937, como em outros que escreveu, como «O Médico do Interior» («Country Doctor») são um testemunho real  dos conflitos por que passa um médico, de luta em defesa de uma medicina íntegra, séria, «à antiga», agora gradualmente  engolida por uma medicina inescrupulosa, de comércio, do doutor que não olha para o paciente. Sintomaticamente, Luizinho praticou a medicina em toda sua integridade, mas viu, como Cronin, pois foram médicos na mesma época em situações parecidas, a profissão médica ser desvirtuada nos novos tempos por práticas menos que artesanais, digamos assim, e que, triste dizê-lo, começaram a marcar muito da medicina «moderna».  Como Cronin, o Doutor Luiz, médico pediatra, com formação brilhante na Universidade Federal de Minas Gerais, e o notável ser humano Luizinho, incapaz de pisar numa formiga, viu indignado essas transformações na medicina e nunca as aceitou. Nunca , tampouco, quis vestir-se da ambição empresarial , sendo suas incursões empreendedoras circunscritas, que me lembre, a duas aventuras curiosas: a primeira, como fabricante de manteiga, na Fazenda do Rio de São João (aquela que o velho coronel Pedro Motta passou para o filho Itagiba), onde numas salas ao rez do chão o velho Artur, surdo que nem grito de araponga ouvia, dessora o leite e fabrica a manteiga numa prensa de ferro preto ondulado, redonda e pesada. Foi no início de sua carreira de médico, quando me dei por mim já a tal fábrica não existe. O Artur, sim, ainda existia, lembro-me dele chegando todo dia à fazenda, montado num burrico tão surdo e tão pequetito como ele.  A segunda aventura empresarial do Luizinho foi mais adiante, com o filho, meu irmão mais velho, o Luiz, já em Belo Horizonte: montam, no barracão nos fundos lá de nossa casa, uma fabriqueta de envasar cachaça—que vinha da fazenda, claro. Logo cachaça! Luizinho nunca bebeu bebida alcoólica, e entender então de seu comércio, muito menos. Chegaram até a comprar uma camioneta, tipo Ford bigode, para as entregas. Acho que durou um verão.

Por essas e outras, vemos porque as estórias que conta, todas verdadeiras, nos cativam tanto.

— Pois foi essa  tríade, essa trindade médica e familiar, que cuidou de sua mãe e os protegeram, a ela e a você, no parto. Foi assim que você cruzou a primeira fronteira, a do parto e a da vida. Será a primeira de muitas ao longo de nosso percurso vital.

— Carregamos todos nós a nossa fronteira corporal, nossa pele, que separa nosso corpo do mundo exterior. Você, Vidraça, não tem pele, está feita de madeirame e vidros, mas se aproxima de minha fronteira dos olhos. Você mostra as fronteiras, alheias e as minhas, por dentro.

— Cuidado com o que você diz. Por ora, aceito que seja uma de suas peles de cristal, seus óculos nada portáteis, e que te mostram, ou revelam, coisas, as mais das vezes reais, que sua perspectiva não o deixou ver, ou que você não quis ver, e ainda outras que você talvez somente veja nos sonhos.  Não deixo de ser uma de suas fronteiras, você está certo; e vou te mostrar uma dimensão desconhecida de sua vida. Certo, você não pediu. Precisou de um lamaçal gigante para você me descobrir. As tragédias, é triste dizer isso, mas as tragédias, como as crises, muitas vezes são reveladoras de oportunidades, soluções, dimensões novas. Você mesmo mexe com essas ideias, ao narrar, no conto «Natal Amarelo»,  as experiências de Maria José ao defrontar-se com a herança de mina de ouro há tempos desaparecida e redescoberta pelos movimentos de terra nessa tragédia de Mariana. Ainda bem que me catou no meio da lama. Agora estamos juntos.  E lhe digo logo : você é um felizardo, pois o grande tema que perpassa sua existência são as fronteiras. Lidar com os limites, seus e da vida.  Não está mau como projeto vital. Apenas adianto que isto não é tudo. Mas, por enquanto, reconheço seu direito de contar as suas coisas. Vamos ver onde chegaremos.

O COLECIONADOR DE FRONTEIRAS

— Tá certo, Vidraça, aceito o desafio. Sou um colecionador de fronteiras. Há algumas muito engraçadas. Conto uma.

Ainda há pouco, falamos do tio Zé Maria e dos Mares Guia. Eles se instalaram em Belo Horizonte mais ou menos ao mesmo tempo que os meus pais. Só que arranjaram casa, muito boa, por sinal, estilo «ancien», algo pós-clássico em mistura com algo de «art déco», no bairro da Floresta, no outro lado da cidade, enquanto Luizinho se pôs a construir nossa casa, um belo dois andares na modernidade circunspecta da época, ou seja, estilo BH Anos Quarenta- Cinquenta, com direito a varanda ampla, garagem e terraço no quarto principal (casa de que nós, os filhos, tivemos muito orgulho enquanto crescíamos, vivíamos e casávamos), no lado «de cá» de cidade, no bairro da Serra. A referência sempre foi: rua do Chumbo (depois Estêvão Pinto, nome dado à rua em honra do Professor e Educador que morou ali na chácara, logo abaixo, hoje um Centro educacional), pra cima do Colégio Sacré Coeur (de Marie).  Ora, a Serra, bairro mais alto, prós lados da serra do Curral, tinha de fato clima melhor—tinha; e era ainda pouco ocupado–ainda. Ao escolher a compra de um lote na Serra, Luizinho terá seguido o conselho do irmão mais velho, tio Pintinho, emérito dentista, meio surdo, um milionário do humor, que gaguejava ao contar as piadas e que por isso, como todo piadista profissional sabe, ainda ficavam mais engraçadas. Foi colega de quarto de pensão em Belo Horizonte de papai, ele estudando odontologia, e o Luizinho  medicina, na UFMG. Ocorre que o Pintinho, já radicado também em Belo Horizonte, em um bairro central chamado Funcionários, terá muitas vezes alertado o irmão Luizinho para ficar deste lado «de cá» da cidade. Passada a fronteira definida pela linha do trem da Central, a «Estrada de Ferro Central do Brasil»,– ou, se se quiser, pelo ribeirão Arrudas, pois a estrada de ferro ladeava o ribeirão–, cruzada essa  linha divisória, o clima não seria tão bom, tampouco a qualidade dos bairros. E o bairro Floresta ficava do lado «de lá». Ponto.  Tenho por mim que ainda hoje essa fronteira perdura na cidade. Conceitualmente. Sociologicamente. E assim viveram as duas famílias, uma do lado «de cá» e outra do lado «de lá», felizes e contentes, cada qual à sua maneira, até que as respectivas casas fossem engolidas pela, digamos, dinâmica imobiliária da cidade e seus habitantes, fora tio Zé Maria e Luizinho já falecidos, os filhos dispersados como num jogo de varetas pelos diversos cantos de regiões do lado «de cá», conforme a preferência das famílias que iam constituindo.

— Bem, amigo, bela estorinha. Sei, porém, que o mundo das fronteiras para você está muito além dos limites de Belo Horizonte, e me permito interferir, inicialmente, em três das fronteiras com que lidou no seu pequeno mundo diplomático: a Amazônia, a Antártida e a fronteira da chamada diplomacia multilateral, no seu caso mais vinculada a Genebra e também a Nova York, mas também a Lisboa.  Adianto-lhe desde logo que, na minha qualidade de vidraça, você poderá beneficiar-se , em sua narrativa, de uma melhor luminosidade que lhe trazem as minhas transparências, mas lhe deixo a responsabilidade de contar não somente o que quer, mas de ver , como numa gestaldt, sempre uma multiplicidade de focos, pois assim é a vida.

— Muito peso sobre meus ombros, Vidraça.

Antes, contudo, de entrarmos nesse mundão da Amazônia, deixe-me referir um encontro importante ocorrido há mais de século e meio, em 1842, na Fazenda do Rio de São João. Escrevi um conto sobre o tema, com o mesmo título, «A Fazendo do Rio de São João». Foi por ocasião da revolta liberal de 1842, em Minas, liderada por um nosso antepassado, o Barão de Cocais, José Feliciano Pinto Coelho da Cunha. Vencedor da  batalha final em Santa Luzia, em 20 de agosto daquele ano, Caxias, à frente das tropas enviadas pelo governo central desde o Rio de Janeiro para debelar a revolta, hospedou-se por cinco dias, com toda a tropa, na Fazenda do Rio de São João, para descanso, antes do retorno à capital.E digo, importante, pelo seguinte: primeiro, porque mostra, nesse episódio,  o compromisso das minhas duas famílias, Motta, por parte da mãe,  e Pinto Coelho, por parte do pai, com a história de Minas  e do Brasil; segundo,  porque revela claramente os dois lados de minha genética política. Os Mottas são conservadores, defendem e apoiam o governo central. Grandes proprietários, com suas fazendas e lavras operando com base no regime escravagista, são menos letrados, expressam-se politicamente de acordo com os interesses das oligarquias. Já os Pinto Coelho, de veia mais independente, são liberais. Ainda que, no caso de José Feliciano, também integrem a classe de grandes proprietários rurais, são mais esclarecidos, com gerações seguidas de profissionais liberais. Defenderam os ideais democráticos e os interesses de Minas, em oposição ao governo central opressor, ainda que sem renegar a monarquia, coisa que à época de José Feliciano seria pouco admissível, pela falta de opções num Brasil recém independente, ainda aferrado a uma estrutura colonialista, politica e economicamente, tempos em que até no seu berço, na França, os ideais republicanos haviam sido violentados pela pressão ditatorial napoleônica. Ouso dizer sem relutância, que, apesar das distintas visões da vida e da política, tanto os Mottas, conservadores, como os Pinto Coelho, liberais, são gente corajosa e forte diante dos percalços da vida. Espero que a Vidraça concorde.


[1] Muito mais tarde, ao final da década de sessenta, Maria Motta e o tio Darcy receberam (a título de compensação?) de Itagiba e Moacir cada um nove alqueires em terras marginais de suas ricas propriedades herdadas. Darcy ficou com a parte superior dos terrenos, protegida à beira da estrada de terra que conduzia a Itabira por um frondoso pé de urucum. Coube à Maria Motta a parte mais abaixo, onde havia uma aguada, fonte puríssima,represada pelo doutor Luiz com suas próprias mãos, este meu pai que fez do «sítio» parte de seu corpo e alma pelo resto da vida, até vendê-lo para poder reformar nossa casa em Belo Horizonte.

[2] Fatima Pinto Coelho recorda que o Centro de Sismologia da Universidade de São Paulo registrou quatro tremores de terra pouco antes dos rompimentos (de magnitudes pequenas, entre 2.0 e 2.6 na escala richter) com epicentros nos entornos de Ouro Preto e de Catas Altas. Pinto Coelho, Fatima, «Catas Altas do Matto Dentro», op.cit., p.133