O 707 da VARIG faz uma aproximação lenta, sustentada pelo vento de proa, em direção ao aeroporto de Lisboa, num entardecer frio de Janeiro, 1972. Como será isso? Ajeito-me na poltrona, no rabo do avião, tinha preferido um lugar bem ao fundo. Teria sido falta de premonição? Na queda, nas cercanias de Paris, de um avião 707 da mesma empresa aérea, pouco mais de ano depois, somente se salvaram os que iam bem à frente, os demais passageiros morreram sufocados pela fumaça do incêndio a bordo, antes do pouso forçado. Nessa ocasião, já havia assumido minhas funções na Divisão das Nações Unidas, no Itamaraty, e por indução extemporânea, pensei, quando chegaram as notícias do desastre, ser sempre melhor evitar escolher assento ao fundo do avião. O silogismo disjuntivo falacioso durou até outro desastre aéreo, não me lembro quando nem onde, em que sobreviveram apenas os passageiros que estavam em assentos no fundo do avião sinistrado. Apertei mais o cinto de segurança e continuei pensando, com alguma excitação, como seria «isso».
Vejo a silhueta pálida da costa, o branco das ondas. Emoção forte, mas estranha diante do que conhecia só de ouvir contar, fotos, livros, filmes. Primeira viagem à Europa. De férias, na passagem do primeiro para o segundo ano no Instituto Rio Branco (IRBr), de preparação à carreira diplomática. Tomei emprestado o dinheiro da viagem no banco, os juros eram razoáveis nesse tempo. Dava para pagar com meu salário de professor de inglês no IBEU. Hoje, os alunos do IRBr já são funcionários públicos, empossados como Terceiros Secretários da carreira assim que passam no concurso de admissão, com boa remuneração. Na minha época, nós, os alunos, recebíamos apenas uma bolsa, o equivalente a uns R$ 800,00 , se tanto. O instituto ficava no Rio de Janeiro, na ala «nova», apelidada de «Niteroi», no antigo Palácio Itamaraty, o da Rua Larga, ao lado da Central e do então Ministério do Exército. O curso lá era de dois anos. Somente veio a integrar-se às instalações do Ministério das Relações Exteriores em Brasília tempos depois, em 1975, no anexo chamado de «Bolo de Noiva», outro projeto esdrúxulo de Niemeyer, e a cada período o curso encolhia de duração: ano e meio, um ano, seis meses, completados por «estágios». Em compensação, houve a exigência de curso superior completo para o concurso. Quando fizemos, a exigência era de ter o segundo ano superior completo. Chico Penna e eu, os dois mineiros matutos—ele talvez até mais matuto do que eu. Havíamos passado no concurso em 1970, alugamos a preço especial, de colega diplomata que servia no exterior, um dois-quartos jeitoso no Leblon. Dois problemas: um, dormir no mesmo quarto, o outro fechado, reservado para as coisas do proprietário; dois, aturar Chico, wagneriano fanático, ouvir música a toda altura (só música de Wagner, alguns prógonos, Beethoven, Schumann, alguns epígonos, Bruckner, Mahler) , num sistema de som que acabara de comprar e que eu invejava. Nada contra a música, bem ao contrário, sou músico, apreciador de música clássica e de ópera desde criancinha. Agora, Chico punha os discos – de vinil, estávamos na aurora do estereofónico–, a toda altura, impreterivelmente das oito às dez da noite, nem um minuto a mais, pelo que a vizinhança, decerto assustadíssima, não podia reclamar, ao menos não legalmente, daquela imensidão sonora que não tinha qualquer dificuldade em trespassar as finas paredes que separavam os demais apartamentos. Tivemos sorte, os moradores, gente educada, nunca reclamaram. Por gentileza para conosco, ou, o que sempre suspeitei, paralizados de terror com a tuba wagneriana ou com os maravilhosos, se percucientes, agudos de Birgit Nielson na Walkyria. Houve um vizinho de porta que acabou até por fazer amizade, interessando-se por música. De minha parte, a longa vivência com música e ópera, graças à minha família de musicistas e à presença constante da música em casa, e à presença semanal, durante a temporada de ópera—sim, havia uma temporada de ópera anual no Teatro Francisco Nunes, ali no Parque Municipal, em Belo Horizonte—, para acompanhar minhas irmãs, a Conceição, pianista na orquestra, a Thereza, bailarina, em apresentações de óperas e balés, a participação no Coral Ars Nova, e minha eloquente e vocalmente infundada pretensão a tenor operístico, ajudaram-me a conviver tão bem como possível com aquele fanatismo do Chico Penna. Verdade que discuti muito com ele, não me conformava com sua visão estreita da música. Uma vez, ficou muito espantado comigo quando comprei os primeiros discos naquela altura, peças barrocas do compositor português Carlos Seixas e a ópera Orfeo, de Gluck, em vez de comprar Richard Wagner; ou quando lhe mostrei, ao ouvirmos a abertura dos Mestres Cantores, e o coral que se segue, cujas sonoridades, de uma polifonia característica da forma «chorale», contrasta com a teia contrapuntísitica da abertura, que ambos tinham o mesmo material temático, trabalhado, um, em vigoroso contraponto bachiano, outro sob a forma coral a capella com vozes femininas angelicais. Ficou espantado ao descobrir que ambos eram feitos com a mesmíssima melodia, aquela que dá início à própria abertura da ópera. Na mesma ordem de ideias, fiquei bravo com ele por criticar e desprezar—imaginem, o Allegretto, segundo movimento da VII Sinfonia de Beethoven. Dizia que era só um ritmo enfadonho e repetitivo, não havia melodia. Arre! Mostrei-lhe calmamente a sublime melodia em tons descendentes em jogo com rápidas notas ascendentes que compõem num plano celestial toda peça. Ficou outra vez muito espantado de descobrir a beleza dessa música.
Confesso que foi nesse tempo que passei a me interessar mais por Wagner, cujas composições me prendem desde então de modo particular. Quanto a vivermos no mesmo quarto, bem, estava acostumado, fui «de Marinha», fiz o Colégio Naval e dois anos da Escola Naval , todo o tempo em internato, primeiro em alojamentos comuns, depois, na Escola, em «camarotes», com quatro alunos-aspirantes em cada unidade. Quando, no apartamento do Leblon, eu arranjava uma namorada, dormia com ela na sala, em cima de um cobertor para amenizar a dureza dos tacos do piso. Ademais, quase não via o Chico: eu saía muito cedo, para dar aulas, e retornava aí pelas onze da noite, pois de novo dava aulas após os cursos no IRBr, inclusive o opcional, de alemão, passadas as seis da tarde. Viajava pela Europa pela música e com as aulas de inglês que dava. Nos planos de viagem, me indagava como será «isso».
O voo fazia escala em Lisboa, depois Paris, mas meu destino primeiro era Londres e a Inglaterra de Shakespeare. Sendo apenas aluno do IRBr, o Itamaraty deu-me passaporte de serviço, ainda não fazia jus a passaporte diplomático. Agora, os alunos, já sendo Terceiros Secretários, viajam com esse passaporte, e com certeza não precisam de tomar emprestado dinheiro no banco para suas viagens particulares. O passaporte de serviço veio com a anotação: «o titular viaja em missão cultural». Mineiro matuto, tomei ao pé da letra esse protocolo, que de resto já era a minha intenção, e preenchi todo o roteiro da viagem, de passagem já comprada, e apenas munido de mil dólares em espécie e em cheques de viagem, mais o guia do Eric Frommer, Europe on Five Dollars a Day , que, pasmem, consegui seguir à risca e no limite, numa intensa atividade cultural que hoje esbarraria facilmente nos dez a quinze mil dólares em custos. Stratford upon Avon e o Royal Shakespeare Co., Covent Garden (Cavaleiro da Rosa, Othello) e dias inteiros seguidos na National Gallery. Fiquei, claro, maravilhado com a grama inglesa, que me ficara na memória desde as cenas no Hyde Park no filme «Blow Up», de Antonioni: certo dia, entrei num daqueles jardins de prédio público no centro de Londres, e perguntei ao guarda se dar uma olhada naquela linda grama, e obtive resposta em cockney, em voz rouca, dita de uma vezada sonora tão rápida como o movimento de quem mata uma mosca com um jornal dobrado: «so lon u don’t foot the grass». Levei quase toda a manhã para entender.
Visitei nossa embaixada, fui recebido pelo embaixador, Sérgio Correa da Costa. Tinha o olhar calmo, que denotava alguma estudada nobreza. Do alto de um terno para mim inatingível de tão impecável, olhou-me de cima abaixo, eu com meus cabelos longos como mandava o figurino à época, blusa de lã grossa de gola rolê, sapato de sola de borracha, como se perscrutasse seria aquele mineiro matuto digno de entrar para a carreira diplomática.
Pois me mostrou a embaixada, e me levou até a porta, onde se despediu, desejando-me boa estada em Londres. Soube depois que tinha o apelido «lord». Gentleman, devo reconhecer, e, pelo visto, terei passado na sua avaliação. Ao longo dos 45 anos de carreira, não tive a sorte de encontrar outros embaixadores educados, com uma ou outra exceção, Geraldo Silos, Rubens Ricúpero, Paulo Tarso, João Clemente Baena Soares, Celso Sousa e Silva, Sebastião do Rego Barros, talvez algum outro cujo nome me escape.
Lembro-me com muita afeição do embaixador Miguel Osório de Almeida, com quem trabalhei nos tempos da Divisão das Nações Unidas, cedido «a meio período» à Assessoria Especial do Ministro de Estado (AESP), que ele chefiava, em preparação da participação do Brasil em diversas conferências internacionais da ONU–nesse período, nas décadas de 1970 e 1980, intensificaram-se as conferências «temáticas» das Nações Unidas, em especial sobre meio ambiente e sobre população, no meu período na AESP junto com o Miguel Osório, quem me iniciou nas lides do multilateralismo. Aprendi muito com ele, e ali pude ver, na diplomacia multilateral, minha verdadeira vocação.
Miguel Osório tinha imensas qualidades, mas a educação, e ele sempre muito educado comigo, sempre dava lugar a diatribes contra delegados de outros países quando sofismavam sobre os temas da agenda, em oposição às teses–por vezes bastante radicais, defendidas pelo Miguel. Uma vez me deixou sozinho na bancada do Brasil, justo a primeira participação minha em reunião internacional, no caso a I Sessão do comitê preparatório da Conferência da ONU sobre População (Bucareste, 1974), em Genebra. Brasil com uma posição oposta aos EUA, que lideravam, no tema do crescimento populacional, as teses catastróficas emanadas do Clube de Roma que vinculavam o crescimento da população mundial ao iminente surgimento da fome no mundo. Pedi ao Miguel instruções, e obtive dele a seguinte orientação: « Preste atenção aos americanos. Sempre que o delegado americano pedir a palavra, você peça logo a seguir, e diga exatamente o oposto do que ele disser». Não conheço instruções mais claras.
Depois, Opéra de Paris (magnífico Tristão e Isolda , e dias seguidos no Louvre e nas Tuilleries, em meio a escargots, coelhos desossados e batatas recheadas com ervas, Quartier Latin, vinhos e chanson Chevalier de la Table Ronde a desoras e em alta voz, a ponto de sermos enxotados do bistrô, eu e os colegas recém encontrados, vindos do Brasil; Bernard Haytink e a Sétima de Bruckner no Concertgebow em Amsterdam, Pisa, Florença e a Ufizzi, Milão e o Scalla, Veneza e Roma. Lá comprei, com os últimos trocados, a sombrinha que a Thereza, minha irmã, me encomendara, antes de seguir, quarenta e cinco dias bem passados na Europa, para o aeroporto e ser informado de que eu me havia enganado, o voo já havia partido às dez da manhã para o Brasil, não era às dez da noite! E agora, sem grana?
Consegui trocar algumas notas de dez mil «cruzeiros novos», aquelas carimbadas, por sorte faziam câmbio da moeda brasileira no aeroporto Fiumicino- por conta do turismo ou já da imigração brasileira? Remarquei a passagem para o voo do dia seguinte, sem dificuldade e sem custos, nessa época faziam isso, ainda éramos todos civilizados, e passei a última noite na hospedaria do Exército da Salvação (dica do Eric Frommer), depois de enganar a fome do dia todo com a sopa salvadora que incluíam na pequena diária.
Então, foi isso. Mas, o que este «isso» tinha que ver com o a minha indagação, dentro de uma perspectiva diplomática?
Vivências de um diplomata mineiro matuto? Os mineiros, que a modéstia seja momentaneamente deixada de lado, sempre honraram a diplomacia brasileira, são tantos os nomes, José Sette Câmara, Paulo Tarso Flecha de Lima, João Guimarães Rosa. Sim, o João, como o chamou meu pai, colega de turma na faculdade de medicina de Minas Gerais, depois UFMG, onde perambulava, conforme o depoimento de meu pai, equilibrando livros da literatura russa debaixo do braço.
Depois de formado, clinicou por uns tempos na Polícia mineira, em Barbacena, antes de fazer o concurso para o Itamaraty e de mergulhar, em cheio, nas águas profundas e tormentosas da grande literatura. Como tantos outros diplomatas, especialmente de sua geração, como o pernambucano João Cabral de Melo Neto, conseguiu conciliar as carreiras de diplomata e de escritor. Até hoje, não poucos diplomatas desenvolvem atividades paralelas, como pesquisadores e estudiosos em diversas áreas, professores, jornalistas, filósofos, historiadores e igualmente nas artes (muitos pintores, como Sergio Telles e João Baptista Cruz) e na literatura. Música também, como Vasco Mariz; e eu até ouso incluir-me aí. Depois conto como foi isso.
Trata-se, contudo, de uma espécie, se não em extinção, pelo menos em franca diminuição, pela crescente burocratização do trabalho diplomático, que exige cada vez mais do funcionário dedicação exclusiva à complexa dimensão administrativa de suas funções. Guimarães Rosa terá sido uma exceção entre os diplomatas mineiros, na sua grande maioria dedicados exclusivamente às lides da diplomacia.
Convém, entretanto, perguntar como será «isso», de mineiros na diplomacia. Como explicar?
Pois, mineiro e diplomacia brasileira formam uma combinação nada fácil. Digna das «histórias santas e bárbaras» que conto alhures. Nem o mineiro é santo, e tampouco a diplomacia brasileira é bárbara. Mas uns puxam para um lado, outros tendem para o oposto. Os genes não se cruzam bem. Mineiro que preza o nome é desconfiado, honesto, acredita na bondade das pessoas, não mente para enganar os outros, só a si próprio, e sobretudo não puxa saco. Tem na sua integridade um valor muito alto. Nessas acepções, todo mineiro é matuto, uns mais, outros menos. O mineiro matuta, portanto é matuto.
Já o Itamaraty é uma expressão legítima do Estado brasileiro, a cada época, que, salvo em raros momentos, acaba por misturar a política como expressão, no plano externo, da defesa dos interesses nacionais e da busca pelo bem comum–e mesmo esta, tão distorcida e equivocada, como no governo Bolsonaro–, com a burocracia, a política pequena dos interesses pessoais e de grupo, e permanentemente tendo como referencial o calculismo barato.
Quando passei no concurso para a carreira diplomática, e admitido em 1971, junto com 13 colegas (eram quinze vagas, somente quatorze foram aprovados) no então respeitado e admirado Instituto Rio Branco, a Dona Carmem Pinto Fonseca, sogra de minha irmã Angela, ao saber da notícia, sobressaltou-me. Mulher muito franca, vivida em coisas brasileiras, doutora em química, com um dos primeiros brevets de pilota de avião no Brasil, foi logo me dizendo: «Passou no Itamaraty?! Ihhh…, aquilo é um antro de famílias conchavadas e de padrinhagem. Sem puxar saco e sem padrinhos, você não tem futuro lá».
Bem, tive o meu futuro lá, «carreira digna», nas palavras amigas de amigo insuspeito, sem padrinhos ou puxassaquismos. Mas, não é que a velha Carmem tinha razão? O seu neto, e também meu sobrinho, entrou na carreira diplomática anos mais tarde. Andou vivendo, ao que me conta, as mesmas situações por que passei, ao lidar, como matuto mineiro, com um sistema de traços bastante incompatíveis com nossos valores.
Eis a visão, significativa, de diplomata carioca, quando ainda era Conselheiro na carreira e antes de virar, bem cedo, embaixador posudo, e nem por isso menos competente, promovido por méritos próprios, mas não descuremos, nas promoções à época, as boas conexões com um Palácio do Planalto ainda rançoso a ditadura militar: confidenciou-me ele, na ocasião em que fomos colegas na Embaixada em Washington, meu primeiro posto no exterior, que o Itamaraty era—suspeito que já terá deixado de ser—uma expressão dos valores e comportamentos típicos da Zona Sul do Rio de Janeiro.
E acrescentava: «Zona Sul, depois do túnel», referindo-se aos túneis que separam os bairros de Copacabana, Ipanema, Leblon, Gávea e Jardim Botânico dos restantes da Zona Sul e da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro ). Como quem diz, ou você se adapta às estruturas comportamentais e aos valores apregoados e praticados por uma casta de classe média alta ou rica dessa microrregião do Rio de Janeiro, ou sua carreira estará comprometida.
Casta ultraconservadora, diga-se de passagem. Como toda casta que se preze. Isso porque lhe perguntei, um dia, o motivo de, nos despachos com o chefe, ser costumeiro e de bom tom o funcionário sempre começar contando uma piada. Talvez não seja mais assim, agora.
Os tempos são distintos, abriram-se muito mais vagas, salários melhoraram, há muita gente bem preparada que vem de outras regiões brasileiras, a tal cultura Zonal-Sul- conservadora marginalizou-se na instituição, ainda que subsista naquilo que dela se impregna o Estado brasileiro. Marginalizou-se, mas manteve a aura: há na instituição muitos diplomatas e outros funcionários de carreira que vieram de regiões vizinhas ou mesmo distantes, e que logo entenderam ter que emular e adotar aqueles valores «Zona- Sul- depois- do- Túnel» se quisessem destacar-se na carreira.
Tudo isso felizmente evoluiu, e a carreira, como digo, congrega gente de todas as partes do Brasil, com a consequente cultura de outros valores. Outro sobrinho meu bem mais novo (tudo indica que dei início, na minha matutice, a uma leva de diplomatas na família, diria já na terceira geração , ou quase), hoje Segundo Secretário, faz uma carreira promissora e já com muito brilho, sem descurar-se de nossos valores mineiros, ao contrário, vivencia muito bem esses valores junto com seu potencial de intelectual de escritor e de historiador.
Vejo agora, de meu posto de observação como aposentado, o Presidente eleito, Jair Bolsonaro, ter escolhido para Chanceler o diplomata Ernesto Araújo, embaixador jovem, visivelmente sem experiência, não tendo sequer assumido posto de chefia no exterior, com uma linguagem preconceituosa e de rasgos autoritários, herdada de um guru exótico, que pretende conciliar a defesa dos interesses nacionais com uma visão que se diz cristã-ocidental-conservadora das relações internacionais. Veremos no que dará essa mistura, desconexa de nossa história e de nossos valores diplomáticos, e carente de legitimidade diante dos interesses nacionais que se propõe defender, ao rejeitar princípios básicos norteadores de nossa política externa, como o multilateralismo, a cooperação e a integração regional, a não intervenção, universalidade nas relações externas, centralidade no respeito aos direitos humanos e ao meio ambiente.
Por óbvio, nada que ver com qualquer esforço para escoimar a instituição de ranços de personalismo acima mencionados, se fora esse o caso. Não será legítimo nem justo vincular tais vícios com a proposta, sempre seguida no trabalho diplomático brasileiro desde a década de 1960, quando nos afinamos com a criação da UNCTAD e com os demais países em desenvolvimento, no Grupo dos 77, na defesa de uma agenda internacional mais favorável aos nossos interesses, à guisa de uma «mudança de rumo» tida como necessária para «desesquecer» (conforme a linguagem usada pelo novo Chanceler de Bolsonaro no já citado discurso de posse no Itamaraty) os interesses, a história e as tradições pátrias.
O Chanceler Ernesto Araújo mencionou, várias vezes, no discurso de posse, não sem alguma dose de presunção, a necessidade de buscarmos a verdade, que considera distante dos conceitos e práticas da diplomacia brasileira em épocas recentes. Portanto, joguemos no lixo tudo acerca da politica externa do Brasil nas últimas décadas –e aqui vão juntos o joio e o trigo. Todos nos damos conta das distorções e dos graves erros cometidos, na condução de nossa política externa, durante governos passados, em especial os governos dos presidentes Lula e Dilma. A prática de concessão de empréstimos com fundos do BNDES a países com grau elevado de instabilidade política, e com base em interesses pouco democráticos ou partidários, e, pior, com o favorecimento de empresas determinadas, surge como um equívoco evidente. A própria opção, no plano da macro-política externa, adotada pelo Chanceler Celso Amorim, de privilegiar dois temas: o acesso do Brasil a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU; e as negociações comerciais multilaterais na Rodada de Doha, na OMC, neste caso com a ênfase algo desequilibrada nas negociações sobre agricultura, evidenciou-se um equívoco.
Ambas aspirações frustraram-se e com elas frustrou-se nossa política externa de uma visão mais ampla e equilibrada na consecução de nossos interesses no plano externo. Houve algumas iniciativas de natureza compensatória—o que chamamos em metodologia de medidas «band aid», que tapam erros na formulação de teorias, neste caso de políticas–, tais como o movimento em direção aos países árabes, ou o seguinte, em direção aos países africanos; ou ainda, a tentativa de injetar algum dinamismo à integração sul-americana, com a UNASUL e latino-americana, com a CELAC. Como os procedimentos do tipo «band aid», todas essas iniciativas, em si mesmas muito positivas, carecem de consistência, tomadas mais bem em função dos interesses do Chanceler em perseguir aspirações ligadas aos dois temas que privilegiou em sua macro-política externa.
Na mesma ordem de ideias, foi promovida, nessa época, a abertura de embaixadas em diversos países no Caribe, na África e na Ásia, e mesmo na Europa, cuja justificativa, em parte significativa dos casos, vincula-se exclusivamente ao projeto de conquistar votos e apoio para a pretensão de conseguir assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Como é obvio, erros, ainda que graves, não podem justificar o rompimento com os princípios fundamentais de nossa ação externa. No caso das posições declaradas ou tomadas pela nossa atual chefia no Itamaraty, de moto próprio ou alheio, não parece razoável, a não ser no contexto de políticas populistas e de um nacionalismo arcaico, renegar a trajetória de conquistas do Brasil no campo externo, inclusive e primeiramente o respeito com que o nome do Brasil é visto no contexto internacional, por conta do combate a «falsas ideologias» . Claro que devemos buscar a verdade, e não há como escapar dessa missão, se damos algum valor à vida. O problema é que temos muitas verdades, algumas—as boas verdades—acompanhadas de seu rabicho de ficção; outras–as falsas verdades–sempre encabeçadas por ideologias, as cabeças das hidras que, cortadas, sempre renascem, em vestes ora esquerdistas, ora direitistas, estofadas sempre do recheio do radicalismo.
Contrariamente ao que diz o novo Ministro das Relações Exteriores, não vejo o Itamaraty, pelo menos nas últimas sete décadas, afastado nem do povo brasileiro nem dos interesses pátrios ou de suas tradições, mais ou menos do que os governos a que serviu .Tampouco vejo os diplomatas brasileiros se valorizando mutuamente, oblívios ao que se passa no Brasil real, fora dos muros do nosso Ministério. Mas, posso estar equivocado e, como digo, houve enormes distorções. .Daí talvez a minha matutice. Como assinalado, chanceleres cometem erros, por vezes crassos, na execução acrítica de políticas externas, muitas vezes sob inspiração espúria.
É fato corrente, se bem nunca admitido oficialmente, que, durante a década de 1930 e inícios da década de 1940, por exemplo, o governo da ditadura getulista instruiu as nossas embaixadas e consulados a limitarem a concessão de vistos de entrada no Brasil a judeus, ou mesmo de se abster de fazê-lo. A partir de 1995, com a abertura dos arquivos do Itamaraty, pesquisas, como a da professora Maria Luiza Tucci Carneiro, da USP, não só confirmam essa política dos governo de Getúlio Vargas e, em seguida, Dutra, como revelam a extensão de seu endosso e aplicação pelo chanceler Oswaldo Aranha O mesmo Oswaldo Aranha que é meritoriamente reconhecido pelos israelenses pela sua participação, em 1947, na decisão da Assembléia Geral da ONU, por ele presidida, de criar o Estado de Israel.
Diplomatas brasileiros que se recusaram a obedecer a tais instruções foram punidos. O caso mais conhecido foi o do então nosso embaixador em Paris, Luiz Martins de Souza Dantas, que concedeu centenas de vistos a judeus sem informar o governo da origem étnica dos requerentes.
Em entrevista ao jornalista João Fellet, da BBC News Brasil, em 20 janeiro de 2019, a professora Tucci conta que «Vargas instaurou um processo administrativo contra o embaixador, que passou 14 meses detido na Alemanha após tropas nazistas invadirem a embaixada brasileira em 1942. Em 2003, (Souza Dantas) foi reconhecido como Justo entre as Nações pelo Yad Vashem (Museu do Holocausto), em Jerusalém». Retornarei mais adiante, na Parte IV das «Vivências» a essa importante questão da política do governo brasileiro de restrições à imigração judaica sobretudo durante os anos de 1937 a 1950.
De igual forma, é bom desesquecer, para usar linguagem do novo Chanceler, que o governo liberal e pró-ocidente de Juscelino Kubistchek de Oliveira, e–em seguida ao interregno Jãnio-jango Goulart, com a constrastante «Política Externa Independente»– como os governos iniciais da ditadura militar a partir de 1964, deram apoio permanente e incondicional às posições do governo salazarista em África, votando sempre e praticamente de forma isolada na ONU a favor de Portugal e contra os movimentos de libertação nas colônias portuguesas, posição somente revertida de forma tardia no governo Geisel, na década de 1970, com evidente perda de credibilidade para nossa identidade no plano internacional, de um país comprometido com a liberdade, a democracia e o bem estar e a autodeterminação dos povos.
E é melhor não pesquisar nosso perfil de votação na ONU nesse mesmo período, de apoio velado ou claro ao regime de apartheid na Africa do Sul.
Por outro lado, governos pouco ou nada competentes e de legitimidade questionável, como o foram os de José Sarney ou de Collor de Melo, com seus chanceleres portadores de uma perspectiva paulista, patrimonialista e empresarial (Olavo Setúbal, Abreu Sodré, Celso Lafer) , deram os passos iniciais para lograr ao Brasil a integração regional via MERCOSUL e a cooperação, com transparência total, nos respectivos processos de desenvolvimento em energia nuclear para fins pacíficos. Com a consequente evolução positiva no relacionamento bilateral entre os dois maiores países da América do Sul, assim como em toda a região do Cone Sul.
Deu-se ali, na verdade, um fenômeno altamente positivo. Os países da região, e notadamente o Brasil e a Argentina, passam de uma lógica de adversários competitivos, ou mesmo de confronto (já que os respectivos exércitos mantinham muitas de suas principais bases postadas umas contra as outras, ao longo da fronteira comum) para uma lógica de abertura e de integração.
Teríamos aqui um conceito bem diferente de «defesa»: em vez de uma «defesa» ex ante, com canhões dispostos uns contra os outros, numa postura tradicional entre países adversários, agora pratica-se, creio que ainda inconscientemente, uma «defesa» ex post, onde prevalece a amizade e o entendimento, com a abertura das fronteiras e a fluidez dos contatos, um pouco na linha da União Européia; e com o compromisso de utilização apenas pacífica da energia nuclear, sem precedentes até agora em todo o mundo, já que aceito de forma quadripartite, entre os dois países, Argentina e Brasil, mais a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e a Agência Argentino- Brasileira de Contabilidade e Controle (ABACC), organismo bilateral que completa o esquema de salvaguardas amplo então acordado.
O contrário do que tenta praticar a chefia do Itamaraty, hoje, com os países vizinhos.
Rejeita-se o MERCOSUL, e não consigo entender como essa atitude, como outras semelhantes, adotadas por Bolsonaro e Ernesto Araújo, possa receber o apoio do parque industrial manufatureiro brasileiro, sobretudo o de São Paulo, que exporta principalmente para o mercado MERCOSUL, e mais alguns outros países da América Latina, em especial a Venezuela, também hostilizada. Talvez não se dêem conta, quem sabe?
Caminhando na contra-mão de nossa história e do evidente interesse nacional em processos de integração, vemos a nossa atual política externa, se lhe cabe o nome, acalentar desentendimentos e dissensos, quando não instigar conflitos, a troco dos aplausos norte-americanos—questionáveis—pelo alinhamento automático com as políticas e os interesses dos EUA. O caso da Venezuela é por demais marcante, e dispensa comentários. Dentro dos limites do respeito à soberania do país e à autodeterminação dos povos, o governo brasileiro pode e deve condenar práticas ditatoriais e autoritárias, assim como a falta de legitimidade democrática, de conformidade com a Constituição e os compromissos internacionais assumidos, tais como a chamada «cláusula democrática», que pede a supensão ou exclusão de países com regimes não democráticos de associações, como o MERCOSUL, ou a CPLP, por exemplo. Daí a instigar conflitos ou intervenções para a mudança de regime é outra história.
Com respeito ao automatismo de alinhamento com os EUA (muitos dizem que nem é com os EUA, e sim apenas com Donald Trump; pessoalmente, penso que este tipo de reducionismo é enganoso, pareceria justificar sermos caudatários dos EUA, com ou sem Trump), penso que não carece estender-me, diante de um simples fato histórico: os EUA defendem os interesses dos EUA. Não me parece que estejam focados na defesa dos interesses ou valores cristãos ou ocidentais. Não por nada, mas conviria ter presente as políticas adotadas pela Argentina durante a presidência Menem, na década de 1990, quando seu chanceler Guido di Tella enfatizou o alinhamento automático com os EUA, definindo-o como de «relações carnais».
À época, e estamos falando, vale repetir, da década de 1990, ou seja, não faz tanto tempo assim, os argentinos passaram a integrar o Grupo Ocidental nos organismos multilaterais, abandonando sua postura (também radical pelo outro lado) de não-alinhamento, e ficaram felizes com o rótulo de «aliado extra-OTAN, que lhes agraciaram os norte-americanos. Pois perguntem aos argentinos se ainda consideram de interesse tal postura. Agora, somos nós que postulamos, pela mão trumpesta, ingresso na OCDE–pouco provável com as iniquidades sistêmicas no Brasil pela desigualdade social, inclusive de corrupção, discriminação e desrespeito ao meio ambiente e aos direitos humanos– e passamos a ser, nós, «aliados extra-Otan», ou seja, passamos a estar dispostos a aceitar conflitos e tensões internacionais que não nos tocam diretamente. Pagaremos um preço de moeda, e, bem mais caro ainda, um preço político.
O distanciamento proposital do MERCOSUL ataca frontalmente um projeto de integração fundado na solidariedade e no interesse comum dos países membros e associados em promover o desenvolvimento e melhores relações comerciais e econômicas entre si e com o resto do mundo. Com base nas críticas lançadas ao MERCOSUL, como inoperante, e em simbólicas medidas de rejeição a esse projeto de integração, como a suspensão da adoção, nos países do bloco, das placas MERCOSUL para os automóveis, e a eliminação da referência ao MERCOSUL nos passaportes brasileiros, foi positivamente surpreendente a conclusão do Acordo de Livre Comércio entre o MERCOSUL e a União Europeia.
Pode-se bem imaginar que a conclusão desse acordo, com aspectos positivos para o Brasil e para o MERCOSUL, se deve à liderança exercida nessa área pelos setores liberais do governo Bolsonaro, já que toca nas questões de abertura de mercados. Em que pese não serem ainda públicos os termos do acordo, cuja negociação se prolongou por cerca de vinte anos, prevêem-se dificuldades de lado a lado, pelo MERCOSUL e pela UE, na sua ratificação: críticas europeias ao descontrole ambiental no Brasil e mesmo à instabilidade política e econômica no país e na região; enquanto que, do lado brasileiro, as eventuais vantagens a serem obtidas em acesso de mercado para produtos do agro negócio se confrontam com uma indústria defasada, que mal consegue navegar num pântano de incentivos e de protecionismo, cujos preços recaem no consumidor, e que não estará tão ávida por aceitar a concorrência com os europeus que virá com o acordo. Seria, entretanto, uma conquista em termos de avanço e atualização de nossa visão do mundo e das relações comerciais externas do Brasil, dando efetivo sinal político e econômico de abertura do Brasil para o resto do mundo, em termos de liberalização do comércio e de integração mais fluida do Brasil ao sistema globalizado das relações internacionais, além de mostrar o reconhecimento da centralidade do multilateralismo no âmbito negociador internacional, justamente algo que vinha e continua sendo criticado ferozmente pelo novo Chanceler. Curioso, nesse contexto, o esforço notório do Ministro Ernesto Araújo de tentar assumir a paternidade do Acordo MERCOSUL-EU, quando a notícia do acordo veio a público.
Parecem no mínimo esdrúxulas as manifestações críticas com relação a temas tão caros aos princípios universais que o Brasil sempre adotou nas relações externas, tais como a confiança nas soluções pacíficas das controvérsias e no sistema da ONU, o meio ambiente e a mudança do clima, equilíbrio e respeito pelo Direito Internacional na questão do Oriente Médio, desconsiderados na proposta de transferência da embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém, migrações internacionais, autodeterminação dos povos, defesa do multilateralismo e das negociações comerciais multilaterais, não-interferência, desarmamento, solidariedade e cooperação internacionais. Tudo passa aparentemente a ser subordinado, na atual gestão, aos deveres impostos por uma alegada «cruzada» cristã-ocidental pela recuperação de valores minados pelo «globalismo». Veremos onde nos levará essa cruzada, mas voltaremos à questão mais adiante. Como, dados os parâmetros tradicionais da nossa política externa desde a Independência, como compreender esse rompimento?
RAMALÁ E ARAFAT
Abril-maio de 2003. Missão algo secreta na Terra Santa. Destino a Ramalá, capital (provisória) da Palestina, cidade sitiada por Israel. Minhas funções, à época, no Itamaraty, de Diretor Geral de área geográfica, compreendiam responsabilidades no relacionamento político com os países da região. Por causa disso, me propusera visitar o líder palestino Yasser Arafat em sua «Mukata» em Ramalá, «para levar-lhe mensagem do Presidente Lula», empossado há poucos meses em Brasília. O Ministro do Exterior Celso Amorim, também de viagem marcada para a região, mas não para a Palestina, aceitara minha proposta.
Na residência da Embaixada do Brasil em Tel Aviv, café da manhã caprichado, agregado com ovos escalfados em molho de tomate fresco bem temperado, o apreciado «chuk chuk» israelense, a cor local do prato algo desvirtuada por ter sido preparado por empregadas filipinas.
Durante o pequeno almoço, o Embaixador fala da Entifada II, a segunda revolta armada palestina em pleno curso, e das ameaças que o Primeiro Ministro Sharon andou fazendo, de considerar inimigo de Israel a quem fosse avistar-se com Arafat, ora acuado por tanques israelenses em seu «bunker», a «Mukata», o prédio sede da Autoridade Palestina em Ramalá.
Depois do café, o Embaixador, o Primeiro Secretário e eu saímos no Volvo oficial em direção a Jerusalém e Ramalá. Fins de abril, maio, tempo lindo. Tel Aviv se liga a Jerusalém por várias vias, inclusive férrea (é bonita a viagem, sobretudo em tempos de neve, a composição em subida lenta, para galgar os cerca de oitocentos metros circundando relevos ásperos, palestinos, dando tempo ao viajante para sentir as paisagens profundas em história e densas em conflito). Na época de nossa viagem, abril-maio de 2003, não há a opção pela estrada de ferro, em obras de modernização. Agora, soube que essa via férrea, que data dos tempos otomanos, foi permanentemente desativada, substituída por uma bela ferrovia moderna. Como seguiríamos para Ramalá, e em missão oficial, fomos de carro. Há duas auto-estradas de Tel-Aviv a Jerusalém. Uma delas corta território palestino ocupado, é ladeada em muitos trechos por muros altos. Em outros, podem-se ver aldeias e vilarejos palestinos, a cujos habitantes, claro, não é dado usar a auto estrada. Comunicam-se por vias marginais, estradelas milenares quase sempre interrompidas ao depararem-se com assentamentos judeus ilegais. A outra auto estrada, mais liberal, digamos assim, serve aos israelenses e também aos árabes dos territórios palestinos sob administração israelense ou habitantes de Israel. Caso essa estrada fosse como se estivéssemos comendo um queijo, a primeira de três partes seria bem indigesta: plana, a secura das areias em contraponto com plantações e fábricas diversas—uma delas, a de cimento, parece também ser responsável pelo ar cinzento e pesado que envolve o viajante. Sendo toda iluminada, a estrada nessa parte fica mais interessante à noite, por antevermos, ao regressar deJerusalém, as luzes de Tel Aviv ao longe. Ao começo da subida, vislumbramos ainda áreas planas, bem tratadas pela irrigação, ali mesmo onde se deram batalhas horrendas desde tempos imemoriais e, mais perto de nós, entre judeus e árabes, em 1949 e, depois, na guerra dos Seis Dias, levando, neste caso, os israelenses a «conquistar» Jerusalém, das mãos e armas dos Jordanianos. O caminho nesse segundo trecho é bonito, montanha acima. Ainda estão lá, contudo, como um museu de passagem a céu aberto, as ruínas de tanques e de canhões usados nessas décadas passadas. O terceiro e último trecho da rodovia tampouco se digere facilmente, mas por uma condição universal das grandes cidades: a canseira do trânsito lento, aqui recompensada pela chegada na Cidade Santa, trazida ao contemporâneo pela arrojada ponte-passarela estaiada, trabalho estruturista do arquiteto espanhol Santiago Calatrava.
Ali, vista desde o Monte das Oliveiras, a cidade compacta dentro das muralhas encobre as divisões religiosas, conflitos que vão pelo tempo adentro. E, triste dizer, por tempo adiante. Como diz meu irmão, uma «encruzilhada mal resolvida». A beleza é imaculada, e resplandece sob o domínio dourado da cúpula da Mesquita Al-Acsa, no Monte do Templo. Mas, o belo é também surreal. Forçam a vista outros muros, menos nobres. Conquanto nenhum muro esteja para contar casos alegres e bondosos, esses muros, construídos na corrente do tempo atual por Israel, separam, empurram as pessoas, tampam suas vidas com sombras de desesperança de que nem o sol truculento, verão, inverno, consegue dar cobro.
Tira-me dessas considerações o Primero Secretário da embaixada, que me acompanha junto com nosso Embaixador em Tel Aviv:–devemos seguir. O tom desconsolado de sua voz parece não se referir ao fato de deixarmos aquela bela paisagem, mas à suspeita que tem de que dali em diante a estrada é algo desconhecida mas com previsíveis dificuldades. Em plena Segunda Intifada, tentamos abrir o caminho, salpicado de franco atiradores, entre Jerusalém e Ramalá . Nosso carro, o oficial da embaixada, não era, nem nunca foi, blindado. Para chegar a Ramalá, tivemos que recorrer a um guia, um brasileiro-palestino, que nos trouxe, em meio a uma cidade marcada pelos destroços de guerra, até a residência do ministro palestino das comunicações, que se dizia, com orgulho, amigo do Brasil num português bem razoável que atestava de sua estada no Brasil como estudante de engenharia. Lá, aguardamos momento oportuno para ir até Arafat. A impressão surrealista volta à tona quando vejo a beleza de Ramalá. Mais alta do que Jerusalém, a cidade apresenta-se dignamente, espraiada em colinas suaves, envolta em um ar de montanha e relva verdejante, luminosa, nada que ver com as imagens postas na imprensa internacional de um aglomerado de casas afaveladas e gentes toscas. Destroços, sim, os havia por todo lado, ruas vazias, hotéis fechados com as janelas quebradas e os estilhaços de tiros nas paredes dos prédios. Vidraça, em matéria de destroços e vidraças rompidas e estilhaçadas, você não está infelizmente sozinha neste mundo; e, de uma forma ou de outra, por detrás desses destroços, a maior parte das vezes lá está o ser humano, como agente da destruição, e, «hélas», como vítima. Anos depois, nas ocasiões em que voltava a Ramalá, quando estive como embaixador acreditado junto ao governo de Israel, pude ver a transformação de Ramalá, recuperada do conflito, com vida diária ativa, mas infelizmente não desimpedida, de seus quase milhão de habitantes, gente sofrida mas altamente sensível e educada, cultural e economicamente próspera, marcada contudo física e politicamente pela presença sombria do muro.
Após um tempo de espera na residência do ministro das comunicações , fomos conduzidos à «Mukata», em veículo blindado do governo palestino. O edifício se via agora como um «bunker», já tendo sido semanas antes bombardeado pelos tanques israelenses ainda agora estacionados do outro lado da praça defronte.Já no edifício, compacto como uma verdadeira fortaleza, guiados por agentes palestinos, percorremos corredores praticamente às escuras, algumas lâmpadas nuas penduradas em meio a sacos de areia empilhados, ambiente de guerra mesmo, antes de chegar à única sala ainda intacta do prédio, sem janelas, onde Arafat nos recebeu em presença de assessores. O encontro foi muito cordial. Ofereceu-nos o lugar logo à sua esquerda, ele à cabeceira de uma longa mesa coberta com objetos de decoração, símbolos religiosos, muitos docinhos. Com o chá, vieram fotógrafos, que saíram depois da sessão de fotos tão discretos como haviam entrado. Para abrir a conversa, notei minha admiração com a beleza de Ramalá, sua luminosidade e topografia suave. Respondeu-me Arafat logo, em tom amistosamente impaciente: «but this is the holy land, this is the holy land!», sendo, claro, evidente sempre a beleza de um sítio sacrossanto. Transmiti verbalmente a Arafat o que seria a «mensagem » do presidente Lula, o reiterado apoio do governo brasileiro à causa palestina. Asser Arafat, visivelmente doente, a palidez e o tremer das mãos acentuados pelo presente confinamento, agradeceu muito as palavras e o apoio brasileiro, notando o isolamento a que Israel o havia forçado dentro da «Mukata». Falou enfaticamente da luta e do sofrimento do povo palestino. Pediu-me transmitir a Lula o convite para visitar a Palestina, o que somente ocorreu anos depois, ao final de minha missão como embaixador em Israel, em 2010.
Vale recordar, entre parêntesis, que esta visita se deu quando Lula estava em inícios do primeiro mandato, um presidente que demonstrava uma vocação internacional convincente e prestigiada pelos pares.
Terminada a reunião, Arafat, de mãos dadas comigo, à maneira árabe, acompanhou-nos pelos corredores semi-escuros, até a saída. Havia um batalhão de fotógrafos e câmeras de televisão à nossa espera. Arafat estava efetivamente confinado dentro da «Mukata» e as forças israelenses não o deixavam sequer sair à porta, o que fez comigo e meus acompanhantes, o nosso embaixador de então e o primeiro secretário da embaixada, calculo que pela primeira vez desde muito tempo. Disse em tom de confidência, antes de despedir-me, em frente a todos: «you see, there are a lot of Israeli sharp-shooters (snappers) around this square. I can be hit by them any time now». Institivamente, nós ainda de mãos dadas, achei por bem afastar-me fisicamente uns centímetros do líder, por tola precaução. Aí mesmo entregaram-me as fotos de nosso encontro, testemunho de uma experiência diplomática extraordinária. O ministro Celso Amorim, depois, quando nos encontramos no seu jatinho da FAB, no voo da Jordânia, onde estávamos para um Forum Davos Regional, em direção ao Líbano, viu minhas fotos com Arafat e bem o notei desapontado por não haver ele mesmo ido ter com o líder palestino. Uma experiência mais enriquecedora? Vamos adiante, em direção à Amazônia e ao fantástico mundo multilateral de Nova York e Genebra.