A refeição solitária, por mais que ofereça prazeres extraordinários, parece cercada por um tabu nascido de estranha ideologia. Tende a identificar-se por meio de valores negativos, associados a noções tais como solidão, desprezo, inferioridade, reclusão, pobreza, falta de sociabilidade ou inapetência gregária, individualismo, patologias diversas, medo.
Ou bem será vista, do ponto de vista formal, da «narrativa», para ficar na moda, como tema pobre e desprezível, tema «menor». Um dos (pouquíssimos) heróis leitores dessa série de textos comentou-me uma vez: «…estudar tanto para depois escrever sobre isso?». A frase toda, em tom de quesito, é uma bondade dele para comigo, e agradeço-lhe; mas depreende-se na observação a inconformidade por de não ter eu melhor assunto para tratar em minha escrivinhação. Ter outros «assuntos», até tenho, todo mundo tem, aproveito para sugerir uma olhadinha lá no www.mineiromatuto.com , por exemplo.
Com todo o respeito pelo leitor inconformado, não creio que se trate de tema desprezível. Quem são, como se sentem, essas pessoas que, a cada dia, se encontram, às centenas de milhões, nessa condição de comer só, por vontade ou por necessidade, em casa ou fora de casa?
Muitas outras pessoas, em contraste, vêem nessa condição algo a evitar. A ideia mesma de verem-se diante de uma refeição solitária as repele. Provavelmente, pensam e agem de acordo com aquela ideologia estranha dita acima.
Mesmo que a refeição solitária fosse, e está claro que não é, tema desprezível, alguma prudência recomendaria reações menos aflitivas, como aquela do leitor amigo. A maneira de tratá-lo, aí sim, já é uma outra história, e as críticas podem ser muito mais justas.
Por vezes, como sabemos, qualquer tema que parece «menor» pode assumir dimensões significativas, seja pelo seu potencial intrínseco, seja por conta da conjuntura, seja pelo tratamento. A forma sempre foi importante, e hoje em dia ganha foros de reinado com a ênfase na comunicação internáutica visual. Vale tudo, forma, conteúdo, no equacionamento dessa ideologia estranha..
Quantas dimensões extraordinárias se apresentam a cada «insignificante» minuto de nossas vivências? Sem comparação, óbvio, mas é o tal «sambinha feito numa nota só», do Jobim.
E o tema principal da 5ª sinfonia de Beethoven, essa maravilha construída a partir de apenas 4 notas, três delas repetidas? Qual é o tema do «Grande Sertão: Veredas», de Guimarães Rosa? O tema é Nonada», a palavra inicial dessa obra grandiosa, e que, em bom mineiro do sertão profundo, quer apenas dizer: «Não é nada». O átomo, antes da explosão atômica, era bem insignificante.
Pode ser uma questão de foco (atenção central por oposição à atenção subsidiária), como nas teorias da Gestaldt, mas é fato que as artes sintetizam bem a tendência de mostrar ou revelar o importante no que parece não importar. Cada vez mais na arte contemporânea, onde as figuras e os conceitos se desvanecem, se misturam, e mesmo desaparecem, como em quadros ou obras onde não há mais traços, ou mesmo cores. Nada. O pianista que fica diante do piano sem tocar. Silêncio. Dissipam-se as ideologias. .A palavra cessa: nonada. O nada, sobretudo o nada.
É por esse meio que podemos melhor enxergar a dimensão, ou a condição, de quem come a sós. Nela, não há muito espaço para uma ideologia determinada. Não há ideias prevalecentes, não há vencedores. Nem perdedores ou vencidos. Pela ausência, ou quase, do diálogo externo. Se há diálogo, ele é interno, talvez como numa prece, mas as ideias são livres, todas têm o mesmo peso, ou a mesma leveza (vem de novo à mente Millor Fernandes, com o «livre pensar»).
As ideologias, porém, têm vida independente do comensal solitário, e procuram envolvê-lo e entendê-lo conforme seus pressupostos, numa brutal distorção. Como consequência, dá-se o tabu, a rejeição da condição de comer só.
O tabu que parece cercar o tema da refeição solitária se apoiaria, dessa forma, em ideologias diversas, reduzidas àquela mutante ideologia estranha com base em fatores negativos acima referidos.
Em almoço para convivas em sua casa, o aristocrático Aleksei Aleksândrovitch, alto funcionário de Estado na Petersburgo czarista e marido traído de Anna Karênina, diz, na presença de sua mulher, recém chegada de breve viagem, do desgosto por ter que comer a sós: «Sim, a minha solidão acabou. Não ias acreditar que desconfortável (acentuou a palavra desconfortável ) é almoçar sozinho». Repetiu o que, antes, quando foi à estão do trem para buscar a mulher, lhe disse: «Até que enfim não vou almoçar sozinho—continuou Aleksei Aleksândrovitch, já sem brincadeira.—não imaginas que hábito ganhei…»1.
Aí está um retrato bem rápido, um momento da abrangente crítica que faz Tolstói dos valores (que perfazem a ideologia) da nova aristocracia russa em fins do século XIX. Cá entre nós, não se poderiam ouvir os mesmos comentários em diversos estratos de nossas sociedades contemporâneas, que se alimentam de outros caldos ideológicos?
A estranha ideologia pela qual enxergamos o comensal solitário segue seu curso sem maiores questionamentos…Um tema «menor», uma patologia que amedronta os que não sabem o que é não ter comida.
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1 Lev Tolstói, Anna Karénina, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Editorial Presença, Lisboa, 2014., p. 121 e 118.