A REFEIÇÃO A SÓS: MUITO PRAZER-PARTE XVI
A COMUNIDADE DOS QUE FAZEM REFEIÇÕES SOLITÁRIAS
Ou, quem sabe, em tempos próximos, uma «Associação». «Associação dos que Comem a Sós—ACS»; ou ainda: «Associação dos Sozinhos e o Alimento—ASA»; e, em inglês, «Sole Eating Association—SEA». Ao mexer com essas possíveis siglas, podemos criar o acrônimo «SASEA», o que nos lembra «SACI», nosso herói do folclore brasileiro, moleque de uma perna só.
( imagem Google/Facebook)
Hoje, a internet permite, com facilidade, criarem-se grupos ou associações os mais diversos com alcance global, sem os limites, claro, que a artificialidade das fronteiras nacionais impõe a muitos movimentos de integração ou de associação das gentes. A livre circulação de pessoas, de bens, de serviços, e mesmo de ideias, tem sofrido tanto ao longo das diversas eras, inclusive da moderna, em que pese os projetos de integração, como a União Européia, ou o MERCOSUL, para ficarmos mais entre nós. E o que dizer das migrações internacionais, movimento marcante nos nossos dias, como já o foi em outras épocas, e cuja espontaneidade, protegida e defendida por instituições sérias, governamentais, intergovernamentais, como a Organização Mundial de Migrações, ou entidades não-governamentais, se frustra violentamente diante de barreiras, muros, rejeições de variada ordem, quase sempre motivados por atitudes e políticas nacionalistas ou autoritárias, e desde há muito combatidos mas que sobrevivem nas carcassas políticas do racismo, da intolerância, do nacionalismo exacerbado, como mexilhões presos a cascos de navios velhos e em desuso, atracados a portos de outra forma reluzentes pelo mundo afora. É certo que o número das pessoas que fazem solitariamente as refeições vem aumentando por toda parte, em largas proporções, quando nada pelo contexto desagregador da sociedade moderna, o culto ao individualismo, os desequilíbrios e desigualdades sociais, mas também no contexto desagregador implícito na evolução exponencial da tecnologia da informação, e mais corriqueiramente, no contexto do advento do aparelho celular e de seu uso massificador. A imagem mais banal, hoje, no âmbito das interações sociais, é o das pessoas, de todas as idades, agarradas a seus celulares, em alienação quase completa do que se passa a seu redor. Os que fazem uma refeição solitária ou a cultivam têm todos os méritos, como comunidade, para ser o propósito de uma associação, em defesa de objetivos, direitos e deveres comuns. Como assinalado, há restaurantes que dão atenção especial às reservas de «mesa para uma pessoa», mas são raros. Pelo menos por enquanto. Vale lembrar a luta pela proibição de fumar em lugares públicos, a luta pelo uso de cinto de segurança nos automóveis, pela acessibilidade, enfim, pelos direitos do indivíduo. Da mesma forma, a condição da refeição solitária mereceria, tanto quanto o direito de sentar-se em um banco na praça ou no parque, o necessário relevo no debate sobre o uso do espaço público.
A agenda de trabalho de uma associação desse tipo seria decerto muito rica e densa, começando pelas atividades de pesquisa sobre o sujeito da refeição solitária, algo como o que fazemos aqui, nestes ensaios, mas de forma mais ampla. A consolidação de uma identidade própria, que permitisse o reconhecimento da condição de comensal solitário, para efeitos de tratamento especial—assim como há os cartões de milhagem aérea, ou de hotéis mais frequentados–, tanto nos espaços comunicativos, como as redes sociais, como em pontos e locais de interesse, como restaurantes, hotéis, etc. É a tal história do povo unido…. Esses e outros pontos da agenda de trabalho de uma ACS/SAE–SASEA teriam por propósito o enriquecimento do comportamento social específico a respeito de quem come só, em qualquer lugar ou circunstância. Conquanto a refeição solitária seja hoje em dia e cada vez mais praticada por centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo, a percepção corrente é a de que se trata de uma minoria de entes solitários, merecedores de nossa comiseração (com perdão pelo jogo não intencional de palavras). Fato, aliás, e é ainda mais triste reconhecê-lo, que se estende relativamente aos indivíduos solitários no espaço público em geral, verdadeiros Sacis de um garfo só.
A propósito, meu sobrinho Luiz Feldman, diplomata, historiador e pesquisador de temas e cultura brasileiros, além de solidário—solidário, com «d»– com meus escritos, recorda esse aporte às nossas considerações, que encontrou em Machado de Assis, em Quincas Borba:
«Nenhum dos habituados da casa compareceu ao almoço. Rubião esperou ainda uns dez minutos, chegou a mandar um criado ao portão, a ver se vinha alguém. Ninguém; teve de almoçar sozinho.
«Em geral, não podia suportar as refeições solitárias; estava tão afeito à linguagem dos amigos, às observações, às graças, não menos que aos respeitos e considerações, que comer só era o mesmo que não comer nada. Agora, porém, era como um Saul que precisasse de algum Davi, para expelir o espírito maligno que se metera nele. Já queria mal ao portador da carta, porque a deixara cair; ignorar era um benefício. E depois a consciência vacilava—ia da entrega da carta à recusa e à guarda indefinida. Rubião tinha medo de saber; ora queria, ora não queria ler nada no rosto de Sofia. O desejo de saber tudo era, em resumo, a esperança de descobrir que não havia nada.
«Davi apareceu enfim, entre o queijo e o café, na pessoa do Dr. Camacho, que voltara de Vassouras , na véspera, à noite. Como o Davi da Escritura, trazia um jumento carregado de pães, um cântaro de vinho e um cabrito. Deixara gravemente enfermo um deputado mineiro, que estava em Vassouras e preparou a candidatura de Rubião, escrevendo às influências de Minas. Foi o que lhe disse aos primeiros golos de café.
–Candidato, eu?
–Pois então quem?
Camacho demonstrou que não podia haver melhor. Tinha serviços em Minas, não tinha?
–Alguns.» (P. 138)