Ensaios

REFEIÇÃO SOLITÁRIA: MUITO PRAZER (PARTE VII)

Até que ponto são pertinentes as experiências pessoais, tais como a descrita no restaurante de Nova York (que, aliás, já fechou, creio), ou o relato do almoço a solo preparado com sobras da geladeira em casa? É o que se pode chamar de método indutivo, ou, até mesmo, intuitivo. Estamos aqui num processo de busca, de descoberta. Os prazeres insuspeitos em uma refeição solitária são intuitivos, antes de mais nada. Claro, há sempre o prazer próprio do ato de alimentar-se. Importante, mas não me refiro a esse prazer.

Então, interessam os depoimentos pessoais. Começo com os meus próprios. Espero que minhas experiências de prazeres insuspeitos quando como só possam ajudar outros comensais solitários a experimentar prazeres semelhantes ou a dar-se conta deles.

É a tal história, indução e generalização. Nada é garantido, nem o que eu induzo, tampouco a minha generalização, de casos particulares, mas é o que temos à mão.

Nos tempos atuais, de pandemia da Covid-19, creio que há uma sensibilidade maior para essas questões. Quando nada, porque aumentam significativamente os casos ou oportunidades da refeição solitária, pelo confinamento e pelo distanciamento social. Ademais, há, nessas situações onde o convívio é restringido, a tendência natural a valorizar as refeições, já que a atenção com o alimento não tem forçosamente que ser dividida com outros atrativos, como a conversa, por exemplo. Aparece aí então a oportunidade de uma «conversa» íntima conosco, que penso ser típica de quem faz a sós a refeição. Aí estaria o «locus» de novas descobertas, dos prazeres insuspeitos: na viagem ao nosso interior, que a refeição solitária nos oferece. Dois conceitos essenciais aqui: generalização e articulação.

Terão notado que, no início desses ensaios, deparamos com  caso muito pessoal e particular de texto, que escrevi a uma namorada há décadas, sobre certo «flamboyant». Era de início uma árvore específica, a do jardim de sua casa, e que se generaliza: serão todos os «flamboyants» de Belo Horizonte, de Minas Gerais, do Distrito Federal.  De repente, ao ser o texto novamente lido, decorridos todos esses tempos, acontece uma articulação de sua expressividade—supostamente para mim, mas quem sabe não apenas para mim– com a ocasião em que se dá tal leitura, uma refeição solitária. Nesse momento, potencializa-se o prazer de comer à sós.

Para Proust—longe de comparar—o elemento catalizador, articulador, digamos, seria a «Petite Madeleine», a peça de bolinho em forma estriada individual muito especial[1] E imaginei que aquela generalização bem adstrita a um conjunto de «flamboyants» pudesse articular-se na proposta que agora nos ocupa, de que os prazeres da refeição solitária podem revelar-se não só, mas também, a partir de depoimentos pessoais, mesmo que na primeira pessoa. 

Creio que vale a pena reproduzir aqui, puramente por prazer estético, a passagem do livro «Du Côté de Chez Sawnn», onde Proust, ainda jovem, ao provar uma «madeleine» distingue, na primeira pessoa,  os gostos de sua infância e de todo o passado, quando prova essa iguaria na casa dos pais em Combray:

« (a mãe) mandou buscar um daqueles bolos pequenos e roliços chamados «madalenas», que parecem ter sido moldados na concha estriada de uma vieira. E não tardou que, maquinalmente, abatido pelo dia taciturno e pela perspectiva de um triste dia seguinte, levei à boca uma colher de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no preciso instante em que o gole com migalhas de bolo misturadas me tocou no céu da boca, estremeci, atento ao que de extraordinário estava a passar-se em mim. Fora invadido por um prazer delicioso, um prazer isolado, sem a noção de sua causa. Tornara-me  imediatamente indiferentes (sic)  as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, do mesmo modo que o amor opera, enchendo-me de uma essência preciosa: ou, antes, tal essência não estava em mim, era eu mesmo. Deixara de me sentir medíocre, contingente, mortal. Donde poderia ter vindo aquela poderosa alegria? Sentia-a ligada ao gosto do chá e do bolo, mas ultrapassava-o infinitamente, não devia ser da mesma natureza. Donde vinha? Que significava? Onde  agarrá-la?»[2]

Talvez conviesse terminarmos neste ponto nossa argumentação, pois não conheço melhor ilustração do fenômeno relativo às revelações ou prazeres que uma singela refeição a sós pode proporcionar.  Não podemos, contudo, partir da premissa de que todos nós temos a alta sensibilidade relatada por Marcel Proust nesse episódio. Mas, deixemos momentaneamente Proust de lado.

 Depoimentos de terceiros, como este de Proust aparecerão. Os garçons, por exemplo, apresentam depoimentos extraordinários, e que merecem capítulo à parte.

Por ora, não consigo resistir em contar outra experiência singular, ainda que vivida a custo de preços pouco digestíveis.

Paris, de férias, anos depois do caso do restaurante em Nova York, vou ao «Ambroisie», outro carregado de estrelas Michelin. Sozinho. Aqui, a situação é outra. Place des Vosges, um vetusto palácio do século XII, salas em painéis de madeira ensombradas pelo tempo, que dão para um jardim interno. Dia de semana, outono. Lâminas finas de brócolis assentam-se no prato de entrada como um tapete verde e sustentam um núcleo leve de mousseline, também de brócolis, com saint Jacques grelhadas ao vivo a que se sobrepõem abundantes lascas de trufa branca, cujo perfume inunda a sala e me petrifica por um átimo de segundo. Toco naquele prato como se estivesse começando a executar o segundo movimento do concerto de Mozart para flauta e harpa em dó maior. Ta, tá, tá, táaaaa, tatá. Lento, por favor. Adagio.

Como digo, a situação é outra. Poucas mesas ocupadas. Preços de atmosfera rarefeita. Casais, grupo de duas mulheres. Olham-me com misto de curiosidade e respeito, afinal, um comensal solitário… Houve mesmo um casal (de franceses, de uma certa idade, não eram jovens) que não se conteve: estavam na mesa ao lado de minha e, pelas circunstâncias, curiosos sobre mim. Mas, esperaram delicadamente pelo final de minha refeição para puxar conversa. Trocamos comentários sobre o restaurante, de forma muito amável. Haviam-me dado uma ótima mesa—caso estivesse num salão de baile, certamente seria «mesa de pista», com vista a uma distância adequada do jardim, interposto pelos amplos cristais bisotês da sala. Portanto, perfumes, só os dos sabores, transfigurados pelas sensações despertadas. Cores outonais nesse jardim, ainda que seu conceito fosse mais de jardim inglês do que francês, por não me parecer tão arranjadinho assim. Sobre a minha mesa, um belo vinho Chambertin 1985. O maître que me atende sai em direção à cozinha plenamente satisfeito com o pedido que lhe fiz de pombo mal passado. Estava na ementa, como dizem aqui em Portugal, mas insisti em que fosse realmente «saignant». Veio aquela maravilha, uma vênus nua e quase crua. Assada lentamente, com certeza, em temperatura muito branda—antecipando tendências culinárias do século seguinte. Com seus sucos, veio para a mesa solitária, também: nada de acompanhamentos, respeito total ao prato, ao pombo e à sua preparação. Moral da história: serviço diferenciado para um comensal solitário? Nesses lugares, podemos não estar sozinhos, mas os pratos, sim, se diferenciam e se identificam com cada comensal: como o cachorro que reconhece «a voz do dono.

E outras ilustrações de alguma expressividade:

Ocasião de comer sozinho, em tempos pré-Covid-19 .  Almoço. Em Lisboa, no «Laurentina» (é mesmo com ´a`, no feminino), “Rei do Bacalhau”. Tive que esperar. Sexta feira, casa cheia. Tinha ido ao banco, firmar um papel, meu gerente só na segunda feira. Fim de semana «esticado»…Enquanto espero, leio os jornais do dia. Num deles, foto de uma apresentadora de TV, pernas seminuas relaxadas, mãos para esconder entre as pernas, decote sugestivo em cima de collant preto, com os dizeres: ” ele queria me comer”. A referência era do livro que ela acaba de lançar, com episódios como esse. Onde denuncia (?) a equação: ascensão social = flexibilidade sexual ( ignoro se a denúncia no tal livro se refere apenas às mulheres ou se seria uma denúncia a aplicar-se também no contexto da igualdade de gênero). Bem, não quis dizer quem foi o tal sujeito. Jornais especulam e vendem mais em cima da especulação.
 Até ai, tudo bem, tudo normal.

Chega o bacalhau . Pedi cozido, «com grãos» (de bico). Os entendidos pedem assim, então lá vou eu. Em volta, “the usual”. Dois homens em conversa de negócios, quem será que estava tentando convencer quem? Mas parecem boas pessoas, ” no harm”. Em frente, saiu um casal sem marca e instalaram-se, no mesmo espaço de mesa, cinco senhoras.

Felizes. Qualquer restaurante, do mais rico ao mais pobre, é assim. Mínimo denominador comum: normal é de ficarem os comensais entre tranquilos e excitados. Brigas entre casais, só de vez em quando, cada vez mais raro, aliás. Com muita razão, creio que quando um casal quer brigar, pode escolher outro sítio. Mas, para briga, dar escândalo num restaurante ainda tem charme. Sobraram pra mim os respingos de vinho do copo de uma amiga, quando vislumbrou o ex-marido, que pedia uma mesa para dois à recepcionista. Isso já faz muito tempo, nos idos dos anos 1990, numa cidade perdida no interior do Brasil. Acompanhado de sua nova namorada ,  o ex marido dessa amiga chegou, meio sem graça, à nossa mesa. Recebeu um copo de vinho tinto no rosto, jogado raivosamente.

Não me recordo de ter, nessa ocasião, visto alguém a fazer uma refeição solitária. Essas coisas acontecem em geral em restaurantes cheios de gente e de burburinhos, lugares caros ou baratos, mas que estão «de moda», «na onda», e que simplesmente não deixam lugares para serem cultivados por pessoas que fazem a sós sua refeição. Tampouco por gente que preza a gastronomia, pois aí, se os pratos não são de plástico, com certeza a comida tende a sê-lo. Que essa verificação sirva como uma «dica».

As «dicas» para pessoas que comem a sós proliferam na Web. Falarei delas mais adiante.

E o «Laurentina»?
Bacalhau ótimo. Da vez anterior que estive por cá, foi meio salgado demais a ponto de ter que devolver. Acho que estão lendo meus pensamentos, pois a cada instante vêm perguntar-me se está tudo bem. Sim, está tudo bem. Arranjam-me rápido um saco plástico–seeria melhor que fosse de papel–, para eu levar a garrafa com o vinho que sobrou. Vale a pena , um “Carm” Reserva 2012. Tomo um café, pago a conta e me vou. Os vizinhos do lado, gente boa pelo visto, já saíram. Ignoro se terão chegado a fazer algum negócio ou entrar em algum entendimento comercial. Aqui, um comentário adicional: ao fazer uma refeição solitária, não tenho maiores interesses em ouvir ou conhecer o que falam os vizinhos comensais. Mas sua presença suscita jogo de ideias, o que é divertido.

Verão em Cascais. Maravilha das maravilhas: uma criança, de seus oito anos, se delicia com os longos spaghetti. Brinca com a massa como se fossem os fios dos cabelos longos de Rapunzel, dourados ao brilho do sol da tarde que acalenta a mesa de varanda, onde está acompanhado, presumo que seja dos pais. Restaurante «Beira Mar». A mesa é fora, na esplanada, mas junto à parede. Do lado de dentro, pela janela, testemunho a cena apenas de viés. Estico o pescoço e vejo o casal, na casa dos quarenta. Conversam animadamente, os dois. Ignoro darem-se conta da beleza dos gestos do garoto. Pelo visto, não: pegam-no pelo braço e o forçam a comer. Ele quer brincar, os fios de spaghetti, que eleva com admiração e respeito ao alto com as mãos, como o sacerdote que eleva a hóstia na hora da consagração, são os seus deuses do momento.


[1]  «Elle envoya chercher un de ces gâteuax courts et dodus appelés Petites Madeleines qui semblent avoir étés moulés dans la valve rainurée d´une coquille de Saint-Jacques. Et bientôt, machinalement, accablé par la morne journée et la perspective d´un triste lendemain, je portai à mês lèvres une cuillerée du thé ou j´avais  laissé s´amollir un morceau de madeleine. Mais à l´instant même où la gorgée mêlée des miettes du gâteau toucha mon palais, je tressaillis, attentif à ce qui se passait d´extraordinaire en moi. Un plaisir délicieux m´avait envahi, isolé, sans la notion de la cause. Il m´avait aussitôt rendu les vicissitudes de la vie indifférentes, ses desastres inoffensifs, sa brièveté illusoire, de la même façon qu´opère l´amour, en me remplissant d`une essence précieuse: ou plutôt cette essence n`était pas en moi, elle était moi. J´avais cessé de me sentir médiocre, contingent, mortel. D´où avait pu me venir cette puissante joie? Je sentais qu´elle était liée au goût du thé et du gâteau, mais qu´elle le dépassait infiniment, ne devant pas être de même nature. D´où venait-elle? Que signifiait-elle? Où l´appréhender?» Marcel Proust, «A La Recherche du Temps Perdu», «Du Coté de Chez Swann», Gallimard, 1954, p.55

[2] Marcel Proust, «Em Busca do tempo Perdido- Volume I-Do Lado de Swann», tradução de Pedro Tamen, Relógio d´Água, Editores, Lisboa, 2003, p. 52