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REFEIÇÃO A SÓS: MUITO PRAZER. PARTE XXII. A PANDEMIA, A MÚSICA E O IMPOSTO DE RENDA NEGATIVO

COMER A SÓS: MUITO PRAZER-PARTE XXII. A PANDEMIA , A MÚSICA E O IMPOSTO DE RENDA NEGATIVO

Como será o mundo após covid-19? O que será de nossas refeições? Por ora, tempos trágicos e de terror, nunca experimentados pelas gerações vivas, diante de um inimigo desconhecido até pela ciência, e que somente encontram ecos, pela sua dimensão, nos conflitos mundiais, pandemias e pestes—tudo o que nós, em nossa pretensiosa e arrogante identidade com a realidade virtual, pensávamos ultrapassado. O mundo, ou quase todo—pois que, com ou sem razão científica, há os virocéticos, do tipo Trump, Bolsonaro, Obrador (exemplos da turma que aparentemente tem como lema: «que morram os idosos pois já iam morrer mesmo, e viva a economia»)– em guerra contra o novo corona vírus, o covid-19. Em meio a essa guerra, cabe importante e respeitoso destaque para as endemias que sistematicamente matam com igual ou pior ferocidade em países pobres e periféricos, como, no caso brasileiro, a febre amarela, a dengue, o zicavirus, a chicungunha, ou o próprio vírus da gripe. E a pior das endemias, a fome.

Confinados sabe-se lá por quanto tempo em nossas cafuas, «encafuados», na linda e lídima expressão de minha amiga G. (lembrou-me ela que o termo «cafua», tão poeticamente usado no imaginário cultural brasileiro, e que tão bem retrata a simplicidade e pobreza—mais bem dito, miséria—de moradias de tanta gente do nosso povo, derivou-se do galego para o vernáculo), vimo-nos na contingência de adiar o início dos ensaios de um promitente e, com a ajuda de Santa Cecília e sua bênção sempre especial aos músicos amadores, como eu, um também promissor duo de flauta e piano.

Continuamos, durante o afastamento social ditado pelas autoridades, a planejar e a ensaiar individualmente, e de forma ambiciosa, começando com a sonata em ré maior, Op. 94, de Prokofief. Para nos juntarmos em duo quando for possível.

Tive o prazer de conhecer G., escritora e pianista, e o marido, A., médico aposentado e também renomado escritor, há coisa de mês e pouco, em um excelente-mas-só-para-conhecedores restaurante de peixes à beira do Tejo, aqui em Lisboa, onde ambos residem. Encontrei-os junto com meu sobrinho Luiz em almoço ao qual, convidado, não pude chegar senão pouco antes da sobremesa por conta de não sei que compromisso.

Partilhavam, além do fresquíssimo linguado e um branco Duas Quintas, histórias de muito além-Tejo, coisas de nossa comunidade dos países de língua portuguesa. A. relatava experiências suas, como médico-militar, nas guerras coloniais em África, sempre muito marcadas por endemias.

Luiz havia recém chegado da Espanha, tendo participado de colóquio na universidade de Salamanca, com um «paper» sobre algo relativo às tendências imperialistas no lusotropicalismo de Gilberto Freyre. O Luiz, nas horas de folga da diplomacia, é um estudioso da história das ideias no Brasil, com importantes obras já publicadas, concêntricas a Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda.

 G. é carioca, nascida em linhagem do grande epidemiologista brasileiro, Oswaldo Cruz, e que tanta falta nos faz nos dias pandêmicos de hoje. Foi ela por um período funcionária do serviço exterior brasileiro.  Frequentou as rodas da livraria José Olympio, na companhia de escritores como Gilberto Freyre e Pedro Nava. Casou e radicou-se por cá. Regularia comigo em idade de muitas décadas vividas. Ela e  A. conectam-se ao mundo intelectual lisboeta e carioca.

 Pianista profissional—colega de Nelson Freire nos estudos de piano na Áustria– tem concertos agendados em São Paulo, para dentro de dois meses e tal, agora com certeza já adiados. Iria tocar um programa inteiramente dedicado a obras de Cláudio Santoro, o que, por si só, já é um feito.

O nosso encontro se deu poucos dias antes de as autoridades em Portugal determinarem o «estado de emergência» no país, com confinamento domiciliar e fortes restrições ao contato social (menos mal que, pelo menos por cá, em Portugal, segue-se respeitando o contrato social democrático). Fato é que já estávamos com um novo almoço marcado, ocasião em que apresentaria minha mulher, Cristiane a eles, e aproveitaríamos para dar seguimento aos nosso planos de música,  uma olhada em repertório, para começar. Luiz já havia regressado à cidade do México, onde serve presentemente junto à nossa embaixada. Adiamos devidamente nosso encontro.

O isolamento ex-abrupto, deveras, nos leva à mudança de planos, ao improviso, à interiorização do nosso que-fazer e do nosso que-pensar. Um pouco como nós, mineiros das Minas Gerais, gente das montanhas. Gente que matuta, por conta do afastamento sugerido pela geografia. Este confinamento pelas montanhas, em  contraste, não é repentino, que ainda assim sirva a lição, e  com ele nos acomodamos prazerosamente pela história nossa adentro e afora.

Acomodação prazerosa. Aí está talvez a chave para nossa convivência singular nestes tempos de pandemia. E não me escuso, neste contexto, de apontar para a convergência entre essa acomodação e a crescente probabilidade das refeições a sós. Ou, melhor dizendo, não me escuso de propor que a refeição solitária, a que certamente com mais frequência nos dedicaremos, por força mesmo das circunstâncias (menos socialização, com restaurantes fechados, por exemplo), vai ao encontro dessa acomodação prazerosa. Será talvez uma, entre tantas outras, de suas modalidades, mas uma forma importante, pois afastados uns dos outros, ou não, temos que nos alimentar.

E há uma inegável tendência, agora prática forçada pelas circunstâncias, ao crescimento das refeições por «delivery» e «take-away». Os termos usados, claro, são em inglês, o que revela, nas circunstâncias de hoje, a marcante presença da globalização, ou «mondialisation»–como preferem chamá-la os franceses, nos rumos que parecem tomar as formas de nos alimentarmos.  Não só de pizza, como ainda sói ocorrer mais bem no Brasil. As refeições por encomenda, ou «para levar», ao crescerem em número e diversidade, sempre estiveram, pela comodidade que apresentam, associadas, em boa porcentagem, às refeições solitárias. Estas, por seu lado, conforme dizem as estatísticas, têm aumentado muito, em boa parte graças à prática da encomenda ou de «levar para casa». Será somente por necessidade ou comodidade?

A proposta destes ensaios consiste, vale referir, justamente em ver a refeição a sós pelo ângulo dos prazeres, muitos deles pouco conhecidos ou pouco explorados, que pode proporcionar.  

Um parêntesis: encontrará considerações cuidadas sobre a matéria no site: mineiromatuto.com/ensaios/refeição solitária: muito prazer, partes I a XXI; ou no fb:  (at)pedromottapcoelho, ou ainda  na plataforma: https//medium.com/refeição-a-sós/comer-sozinho-muito-prazer-parte (I a XXI). Detalhe: com direito a versão, pelo autor, dos textos adaptados em inglês: tanto no mineiromatuto.com, como no: medium.com/eating-alone/the-hidden-and transcendental-pleasures-of-eating-alone

Sempre falo de quem come só, por precisão ou por conveniência, ou mesmo por opção. O confinamento claramente acarretará a elevação do número de pessoas que se encontram nessa condição, de fazer a sua refeição solitariamente. Mais emprego não só no e-comércio, mas também no «e-food».

Então, nada de exasperações, ao contrário. Convido-os, a aqueles que se sentem porventura aturdidos com o simples pensar em estar a sós numa refeição, a passar os olhos pelas diversas partes anteriores destes ensaios, e assim partilharmos as aventuras da descoberta de prazeres que se escondem nesse tipo de refeição, para além dos prazeres inerentes ao ato de alimentar-se. O futuro pós covid-19 nos espera.

 Questão de descobrir-se, dentro de uma perspectiva própria. Podemos fazer isso em qualquer situação de retiro ou de plena vivência espiritual, ou de plena vitalidade, claro, mas o que sugiro é que a refeição a sós estimula uma introspecção prazerosa, mais ainda se acompanhada de um bom vinho, independente do peso do diálogo, elemento intrínseco à refeição convivial. É um momento com mais liberdade para o pensar com imaginação, sem as presilhas da sociabilidade. Como dizia Millôr, o pensamento é livre. Já as palavras, se postas em linearidade, são um tormento. Só os poetas levar essa linearidade adiante, mesmo assim com dor, a dor que o poeta de Fernando Pessoa finge sentir, mas que deveras sente.

Ademais, no caso, a refeição solitária se coloca em perfeita sintonia com as restrições impostas pelas autoridades diante da necessidade de combater a enfermidade.

Dizem os entendidos, e certamente com razão, que o mundo pós-pandemia não será o mesmo de antes. Sim, haverá tempo para chorarmos e cultuarmos nossos entes queridos falecidos, bem como os milhares, dezenas ou centenas de milhares, Deus não permita, destruídos pelo covid-19.

Haverá algum tempo para a reconstrução social e para a recuperação econômica, depois da inevitável recessão global. Nesse novo mundo, espera-se que os Estados se identifiquem com as respectivas sociedades e, nelas, com os indivíduos, mas todos, sociedades e indivíduos como integrados num só conjunto global. Talvez seja este um dos ensinamentos dessa pandemia.  

Espera-se que venham, em virtude do que se passou, a criar redes de proteção para o indivíduo em escala global, econômica e socialmente, contra tragédias  e desastres imprevisíveis ou até previsíveis, e que deixam, antes de mais, além dos mortos, o rastro doloroso da fome e do desemprego.

Vejo, pela imprensa do Brasil, uma notícia auspiciosa a esse respeito: os 26, dos 27 governadores, reunidos, aprovam recentemente documento com a proposição de medidas a serem tomadas pelo governo federal, entre elas algo muito especial: o cumprimento da Lei 10. 835/2004, que institui a «renda básica da cidadania». Sancionada em 2005 pelo então presidente Lula, a lei prevê o «direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário».

 A referida lei prevê o pagamento mensal de valor do benefício, a ser estipulado pelo Poder Executivo, a todos os cidadãos, para atender as despesas mínimas de saúde, educação e alimentação. É certo que o «bolsa família» vai nessa direção, mas se restringe a famílias com rendimento precário, e além disso impõe condições para quem a recebe.

 A norma é equivalente ao «imposto de renda negativo», a ser «pago» a todo cidadão, rico ou pobre, sem qualquer condição. Quem liderou, no Brasil, a campanha pela aprovação dessa lei foi o então Senador Eduardo Suplicy. Durante uma viagem a trabalho de São Paulo para  Joanesburgo, na África do Sul, em voo em que me coube o assento ao seu lado, creio que em 2003, Suplicy discorreu longamente sobre a causa, entregando-me ali mesmo, no avião, exemplar com dedicatória de um de seus livros sobre a matéria, onde é tratada, tanto quanto posso dizer, com apoio sólido da teoria econômica.

É norma que se identifica com a criação, em nível mundial, das redes de proteção acima referidas, sendo o chamado «imposto de renda negativo» já  adotado, ainda que parcialmente em alguns casos, por diversos países.

 E poderemos lembrar que o indivíduo, ao ser-lhe efetivamente reconhecido o direito fundamental de saciar a fome, terá, mesmo e principalmente se estiver a sós com seu alimento, o direito de sonhar e ver-se como um ser humano livre e solidário em sua plenitude. E retomaremos, então, G. e eu, nosso projeto musical.