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REFEIÇÃO A SÓS: MUITO PRAZER-PARTE XXI-COMER SÓ E A RELIGIÃO

A REFEIÇÃO A SÓS: MUITO PRAZER-PARTE XXI

COMER SÓ E A RELIGIÃO

O «gancho» é a menção ao altar. Para a maioria das religiões e cultos, o altar, lugar de adoração, sempre foi também o lugar do sacrifício e da refeição sagrada: animais e gentes sacrificados em ofertório, pão e vinho consagrados partilhados pela congregação.

Enfim, elementos ligados à refeição. Não cabem generalizações, mas em muitos casos dá-se a refeição solitária do sacerdote, observada pelos fiéis e seguidores, que comungam em seguida com o culto celebrado. Em outras tantas religiões, há apenas o púlpito, sempre em plano mais elevado, onde se pretende cultivar o Verbo, a palavra sagrada, a arquitetura das torres altas, a refeição espiritual. Tudo temperado, claro, com recitativos, rezas, ladainhas, hinos e músicas, e em muitas, com mirras e incenso: o sentido teatral e do drama, por vezes operístico, sempre presente.

Hoje, a coisa evoluiu. Religiões diversas não praticam mais a diferença de planos, aboliram ou nunca aceitaram o altar, ou seja, não exteriorizam as hierarquias, sempre subjacentes. A estrutura de teatro, contudo, ou seja, a correlação palco e audiência, participativa ou não, mantém-se como um traço permanente.

Afinal, drama e religião têm tudo a ver. No geral, ainda encontramos a fala de cima para baixo, imposição sutil de ideologias, sugestões de fé. O Papado, então, com o Papa falando do alto do púlpito da Basílica de São Pedro, e emitindo verdades eternas, as «Bulas», ainda está lá. Bem faz o atual, Francisco, que não emite «Bulas».

Mas, à parte o fenômeno do culto religioso, em que o Verbo e a sagração muitas vezes envolvem—dramaticamente–a refeição individualizada, qual a relação da religião com a pessoa que come só?

Há uma tendência, verificável em muitas religiões tradicionais, de rezar no momento das refeições diárias, preces em geral de agradecimento ao Senhor pela comida.

 Muito justo. Eu agradeço sempre, intimamente, ao nosso bom Deus. Como digo, é um momento sublime, veja-se o que digo mais acima acerca da refeição a sós em ocasiões como a do Natal, momento de transcendência que quase todas as religiões cristãs sabiamente enaltecem.

Há, é certo, a tendência à «apropriação» de Deus pelo indivíduo, como referido pelo filósofo Karnal outro dia, no programa televisivo «Café Filosófico» da TV Cultura de São Paulo, mas não será nessa perspectiva, de um Deus que queremos atenda as nossas vontades e acorra às nossas expectativas, que se coloca o nosso comensal solitário. Seu diálogo com Deus ou a espiritualidade desprende-se de qualquer caráter utilitário ou interesseiro. Estará mais no âmbito da gnose e da agnose.

Voltamos em nosso argumento ao ponto de render sempre preito à Palavra divina, «O Pão Nosso de Cada Dia». Admito haver alguma redundância nessa prece antes ou depois da refeição, ainda que seja sempre uma atitude e um momento espiritualmente muito positivos. Porque?

A refeição sempre será identificada, queiramos ou não, com a oração. Independentemente de se ter fé ou não. Mesmo para os descrentes ou agnósticos, o momento de saciar a fome, ou de fazer uma refeição cuidada, carrega consigo algo do sublime: a celebração da vida.

Simples: ou nos alimentamos ou morremos, por mais que os anoréxicos ou os faquires queiram provar o contrário. Por isso, prece e refeição se confundem, são uma coisa só. E não exigem companhia, podendo, até melhormente, ou não, dela prescindir. Consideremos ademais os que, diante da mesa posta e servida, esquivam-se momentaneamente, por alguma aptidão de vaidade obscura, mas que pode esconder o receio à prece.

Aí está, pois, um dos caminhos para experimentar o prazer espiritual, íntimo, pouco conhecido, que a refeição oferece—e, mais, ainda, a refeição a sós.  O eu e o universo. Pão e vinho.

E nunca será demais lembrar, com a Bíblia, que o Verbo foi o começo de tudo. Podemos até substituir uma pela outra, a refeição pela prece, como fazem os penitentes no deserto. Ou, como se pratica na religião muçulmana com o jejum diário durante o Ramadan, ou os cristãos tradicionais com quarentenas e dias jejuáveis.

O jejum, nesses termos, é parte da oração, e ao mesmo tempo a contradiz, por negar temporariamente a refeição. Será assim?

Olhemos para os vegans, hoje (religião?) tão em moda: entendo que para eles a comida é a comunhão com a natureza, e portanto com Deus. Se a comida é a comunhão com Deus, devem comer com muito prazer: quanto mais próximos da natureza—e aí a individualidade tende a adquirir  valor intrínseco, em contraste com noções de produção e consumo em massa–, mais perto da divindade. Seguimos, novamente, ao encontro do ser com o meio ambiente, de que falamos mais acima.

Nada de hóstias insossas e além do mais industrializadas. A todos, católicos ou não, simbolicamente, podemos dizer: tomemos o vinho e o pão que o sacerdote nos oferece—como se fazia, e com certeza se faz, em muitas igrejas católicas em países onde há asseio na partilha do pão e do vinho.

Mas, nada de comilanças. A glutonaria não tem nada que  ver com nossas considerações aqui. Nem para a mesa gregária, convivial, com muitos comensais, nem para a mesa de um só indivíduo.

O glutão expressa decadência, ou desconhecimento de limites, o que não se aplica a um ser humano em sua transcendência. Respeitadas as restrições que as ideologias ou as tendências alimentares propõem, como as carnes e laticínios, entre muitos outros, para os vegans ou os vegetarianos, ou a carne de porco e muitos outros produtos para muçulmanos (para estes também a proibição de bebidas alcoólicas) , e para os judeus—no caso dos pretendentes à terra canaã considerando sacrilégio a mistura de carnes e laticínios: nem pensar em um bom filé ao molho roquefort; tomadas em conta, confessadas e professadas todas essas e outras restrições, ainda assim, para nós, seres encarnados, como quer o credo espírita, ou seja enquanto seres vivos, a refeição e a prece surgem como um dos mais importantes momentos de identificação do ser, em tanto ser indivíduo, com o universo, além do nascimento e da morte. E surgem juntas: refeição e prece.

Há muitos outros momentos, claro, e as artes aí estão para comprovar. Podemos comprar o ticket para a revelação da inteireza universal em vários guichês, até mesmo no Maracanã. A escolha é do freguês. E a mega sena de fim de ano, com trezentos milhões, não deve ser desprezada.

 Diante dessas circunstâncias, quem mais próximo da oração, e do mundo espiritual do que o comensal solitário? Nos monastérios medievais, no momento da refeição, imperava o silêncio, o Verbo tinha seu momento de identificação com o prato de comida.

Fora de qualquer dúvida, a Última Ceia do Cristo foi um momento síntese dessa identificação do Verbo com a refeição—refeição a sós, como tenho proposto ao longo desses ensaios, com pão—e, ao dar crédito às pesquisas, diversos outros alimentos, quem sabe até mesmo um bom ensopado de cordeiro ao perfume de hortelã, tâmaras e frutos secos–, também vinho. Sim, vinho, bebida eleita para consagrar o sangue do Cristo.

Está muito longe da proposta destes ensaios negar ou confrontar os legítimos prazeres e a satisfação que podemos experimentar na refeição gregária, de família, entre amigos, num bom tête à tête amoroso, numa reunião de confraternização, com vizinhos e familiares ou amigos em torno do fogão na cozinha de casa ou do restaurante, nos refeitórios, enfim, nas múltiplas situações que vivemos ao nos alimentarmos diariamente em companhia de outras pessoas.

Mas, é fato que, na maioria dos casos, a refeição gregária, por sua natureza de convívio social, por mais que a prefiramos, será menos propícia à incursão no mundo nosso subjetivo. Neste, a palavra, ou seja, nossa expressividade, deixa de ser linear, e passa a vagar por regiões talvez menos conviviais, porém mais prazerosas, em geografias diversas, à escolha, tanto intelectuais, como emotivas, ou ainda, espirituais. Serão talvez regiões mais próximas do conhecimento, inclusive o autoconhecimento, e do Verbo, como quando a refeição a sós se integra à oração, como o cordeiro sacrificado a Deus.