A REFEIÇÃO A SÓS: MUITO PRAZER-PARTE XX
COMER A SÓS NO NATAL? Celebrar a sós o «réveillon»?
A delicadeza do tema é evidente. Como outras datas festivas–Páscoa (para cristãos católicos, ortodoxos, protestantes, para os judeus, o «Pessach», Dia de Ação de Graças (esta data mais nos EUA, com o «Thanksgiving»), ou os diversos aniversários, inclusive datas nacionais, ou ainda a própria passagem do ano, com o «réveillon»–, Natal, em torno de um sublime momento religioso, pressupõe celebração, festa, encontros familiares e amistosos. E uma boa mesa partilhada por muitos, a família, os amigos. Mas, como em todas as refeições ordinárias ou especiais durante o ano, também no Natal vamos encontrar miríades de pessoas que fazem a sós a ceia natalina, ou no dia do «réveillon». Como nos demais dias, por necessidade ou por opção. Para essas pessoas, os desejos de «Boas Festas e Feliz Ano Novo» assumem um ar especial, quem sabe mais leve, e de uma pureza instigante.
Em não havendo, pelo menos na aparência, diferenças significativas entre essa refeição solitária e todas as demais, tampouco haveria comentários especiais sobre a condição do comer só no Natal. Talvez a distinga das ocasiões ordinárias, para quem seja sensível, por motivos diversos, à data do Natal, um capricho ou atenção especial com o alimento e, na refeição, uma sensação distinta, um sentir-se particularmente isolado, quando todos em volta buscam justamente o convívio e a reunião. Admito que possa acontecer, afinal trata-se de uma data muito especial para muita gente, mas certamente, não será, como se diz na física, uma condicionante necessária nem suficiente. Ou seja, basta estar a sós na noite de Natal—ou no «réveillon», ou no dia da Páscoa, ou até no «Thanksgiving», para se sentir isolado? Longe disso.
Estar só, com efeito, é uma condição da individualidade, que presumo neutra e que apenas em termos relativos se apresenta como isolamento: assim, é apenas uma percepção nossa com relação ao indivíduo, e do indivíduo com relação ao seu entorno. Claro que pode haver isolamentos «forçados», digamos assim, por exemplo por alguma enfermidade: o indivíduo deprimido, ou com alguma doença contagiosa, que se isola. Mas não é disso que se trata aqui.
Acho engraçadinho o dito, que sempre repito quando a ocasião se apresenta, em algum bar, café, ou restaurante, à mulher da limpeza (só com mulher) que, ao varrer distraidamente o local, quase toca com a vassoura os meus pés: –«senhora, por gentileza, não varre o meu pé se não eu não caso.» Frase curta, com três negativas e um desviozinho no uso do imperativo. A mulher da limpeza, pessoa humilde, recebe sempre com humor o meu comentário, depois de certo espanto inicial, agraciando-me com um furtivo olhar conivente. Fico a imaginar se dissesse a ela, em vernáculo camiliano: –«mulher, varra o meu pé, e eis que não caso!»
Cito o episódio por motivo bem simples: locais de restauração, bares e cafés dificilmente procedem à limpeza durante os horários «de pico». Claro. Então, se estou num desses locais quando ameaçam varrer-me os pés, é porque lá fui fora dos horários de maior demanda. Procedimento típico de quem faz de forma inteligente a sua refeição solitária. O paralelismo com a situação de quem faz a sós a ceia natalina, ou escolhe ficar quieto em casa no «réveillon», quando todos mergulham nas praias e no mar de festas, surge então naturalmente. Seria um «isolamento inteligente»?
Deixemos de lado, portanto, a referência a esse tipo de sentimento. Não nos toca falar de solidão, e sim de alegrias. Nosso objeto de estudo, convém sempre ter presente, é a refeição solitária e a descoberta de prazeres insuspeitos que oferece a quem a faz, e não o ser solitário. Em uma família de amigo próximo, há um senhor, lá de seus 60 anos, que sistematicamente passa o Natal a sós. Opção individual. Outra pessoa da família, psicóloga de formação, o considera um caso de depressão. Pode até ser, respeito o diagnóstico, que certamente terá levado em conta outras características e outros sintomas do diagnosticado; mas porque não uma escolha? Dando-se a apreciação apenas com base nessa atitude, pareceria por certo prematuro, pelo menos a um leigo como eu. Pois há que respeitar-se a individualidade.
Motivos para uma opção individualizada para nos situarmos diante dessas ocasiões festivas não faltam, caso queiramos dar um relevo crítico mais acentuado a fatores tais como «a exploração comercial de uma festa religiosa», ou «a distorção de um momento religioso ou fraternal em uma festa de comilança». Neste calorento verão de 2019-2020, ouvi há pouco um «rapper» comentar , com muita inteligência, os transtornos que enfrentamos, nós os citadinos, (engarrafamentos homéricos, filas, restaurantes lotados, falhas nos serviços básicos pelo excesso de demanda, etc), apenas para gozar as delícias (?) de um feriadão na praia ou na montanha. Conselho do «rapper»: ficar quieto em casa é a melhor solução. E nada que ver com idades ou faixas etárias. Enfim, há de tudo. Sabe-se lá.
Muito justo uma pessoa optar por estar só em ocasiões especiais. Para meditar, descansar, o que preferir. Não precisa de estar doente, ou deprimido. Vale repetir: não creio que a opção pelo isolamento espontâneo e circunstancial tenha que estar necessariamente explicado por fatores negativos, seja enfermidade ou necessidade. Se estamos de acordo com essa sugestão, então podemos retornar ao ponto central referente à ceia solitária no Natal: será um momento ainda mais propício para fruir de prazeres insuspeitos?
Normalmente, quando celebramos algo, pressupomos companhia. Partilhar momentos alegres. A vida é—de verdade—uma festa, e lá estamos nós, prontos para celebrá-la. Sempre que possível, reunidos, em fraternal convivialidade. Se tiver uma praia por perto, e o nosso time tiver ganhado o campeonato, melhor ainda. Com um chope gelado, então…
Agora, se a festa natalina, que de resto carrega um costado pagão, é a maior festa da cristandade, a celebração, com toda a justiça, se impõe maravilhosamente, dentro da tradição, como uma das festas mais alegres e iluminadas. O cenário, que lá nas Minas Gerais está tão bem representado nos presépios, impressiona. O nascimento de Cristo, nada mais, nada menos, numa manjedoura, cercado dos pais e de animais domésticos, um pastor ao longe, e os reis magos que se aproximam guiados pela estrela de Belém. O nascimento Daquele que veio para nos salvar, e que mudou o mundo, centrando nessa data até o calendário da história para boa parte da humanidade!
Talvez esteja sofismando, mas reparem bem: o Natal é celebrado em todo o mundo cristão. Ora, podemos ver as famílias reunidas pelo globo afora, nessa celebração, como unidades da família cristã, com seus apêndices de toda ordem. Como indivíduos em uma enorme congregação religiosa e laica ao mesmo tempo. Nessa imagem, não há como ver o indivíduo, ao fazer a sua refeição solitária, como alheio à grande congregação, à grande família, mesmo que ele próprio não esteja celebrando, seja lá por qual motivo.
Aí está, e o mesmo argumento poderá, caso queiram, ser estendido, com algumas poucas adaptações, às festividades de fim de ano, o «réveillon», ou às demais: a pessoa que come só, no Natal, está integrada numa grande família, queira ou não, espontaneamente gerada pelo tema da celebração. Será uma daquelas unidades, uma estrelinha na grande árvore. E mais, não se trata de que essa pessoa será apenas vista, pelos demais, como um indivíduo que se isola. Parece indiscutível que paira, no ar natalino, para além do comércio, dos feriados e das festas, a percepção do sublime, das coisas que estão para além de nossa compreensão. Na refeição solitária, na noite do Natal, quem come só, talvez mais do que aqueles que fazem a ceia na alegre companhia dos seus e de amigos, se dará conta dos mistérios que esconde esse ar puro que não sabe de onde vem. E sentirá uma estranha satisfação interna a cada gole de vinho e a cada garfada no pedaço de peru já assado que comprou pronto na padaria. E pensará com prazer em Deus, na vida e no universo, mesmo que seja ateu ou anarquista. Talvez até chore de alegria—mesmo que brevemente: uma alegria cativa diante das iniquidades que nos rodeiam.