Ensaios

REFEIÇÃO A SÓS: MUITO PRAZER-PARTE XIX-A COLHER DE MOLHO E A LIBERDADE CERCEADA

A REFEIÇÃO A SÓS: MUITO PRAZER-PARTE XIX

A COLHER DE MOLHO, OS TALHERES DE PEIXE E A LIBERDADE CERCEADA

A REFEIÇÃO A SÓS: MUITO PRAZER-PARTE XIX

A COLHER DE MOLHO, OS TALHERES DE PEIXE E A LIBERDADE CERCEADA

Antes que me tachem de aristocrata decadente ou de alienado social ou, pior ainda, de conservador elitista místico-messiânico de direita radical e feroz combatente do «globalismo (?) e da grande imprensa, e que define a Europa como um «vazio cultural», alerto que as considerações a seguir se referem a objetos empregados em serviços de mesa de outras épocas e de determinados contextos sociais culturalmente sofisticados. Tendo caído em desuso, não mereceriam, pela suas afinidades elitistas, maiores atenções do que o devido lugar na história da gastronomia europeia, e o reconhecimento de suas funções bastante precisas em uma refeição clássica. Na verdade, são instrumentos, como outros mais plebeus, que nos ajudam no ato da alimentação. Como o garfo, a faca e a colher «normal», ou os pauzinhos da comida oriental. E digo plebeus porque continuam em uso. Talvez menos em países como os EUA, onde, de preferência em pé, andando, ou sentado em ban quetas, ou nas raras mesas sempre nuas de toalhas, se come quase tudo com a mão e se bebe quase tudo em embalagens ou contentores em material descartável—ou não, mas que se leva diretamente à boca. Claro, há mais da metade da população mundial que já come, ou sempre comeu (parece que até o século XI, todo mundo praticamente), com a ajuda simples da mão, árabes (há uma grande beleza em partilhar de um cuscuz marroquino ou argelino comido sempre com as mãos), bérberes, indianos—é a prática mais comum na Índia–, múltiplas sociedades pelo mundo fora, especialmente entre nós, nas Américas, Ásia e África. Tem até o caso curioso da Etiópia, país de invejável e saborosíssima gastronomia, onde se faz a «injera», espécie de panqueca gigante feita de um grão chamado «teff». Essa  crepe gigante serve como  toalha de mesa, sobre a qual é posto o alimento (carnes, verduras, legumes, grãos) , que se come enrolado em pedaços rasgados da «toalha» .  Sabemos que os franceses, os eternos—até quase recentemente– heróis da culinária, comiam, como todo mundo, também com a mão e no máximo uma faca, até a chegada, já no século XVII, da influência bizantina e italiana, de culinárias muito mais avançadas, em seus hábitos alimentares. Portanto, falemos dos talheres de peixe e da colher de molho sem preconceitos, reconhecido o caráter elitista pelo uso em círculos restritos durante um também algo restrito período de tempo—alguns séculos– na Europa e em suas áreas de influência cultural e culinária.

Talheres de peixe são instrumentos ameaçados de extinção. Quase não existem mais, só em casas com alguma tradição de gosto pela cozinha, em restaurantes com alguma dignidade e nos antiquários. A colher de molho já foi extinta há muito tempo, só pode ser encontrada nestes últimos, e nos museus, e olhe lá. Não, porém, o nome: dão agora o nome de colher de molho a peças de medir quantidades de ingredientes nas receitas culinárias. Feitas de material vário, plástico, metal, madeira, são medidores, encontráveis em  casas de artigos culinários.  Nada que ver com a verdadeira colher de molho, a legítima.

Como objetos em extinção, ou quase, o que comentamos de um valerá para o outro. Concentremos assim a atenção na legítima colher de molho. Para os que nunca a viram ou utilizaram, trata-se de colher do tamanho algo menor que o de uma colher de sopa, mas não é nem côncava nem convexa. É chata, plana. Sempre feita de metal nobre, em geral de prata, pode-se com muito esforço encontrá-la em algum restaurante, mais provavelmente em casa de comida francesa, única das culinárias que preza o molho no mesmo nível de outros condicionantes de um bom prato: textura e transparência, frescor, cor, tempero e combinação dos ingredientes (a respeito de combinação, um dos bons casos que conheço me contou um amigo francês residente em Brasília, casado com brasileira que o deixava à beira de um ataque de nervos ao trocar a combinação devida: — «faz sempre frango ao molho de mostarda, e coelho ao molho de creme!», dizia ele, indignado e desconsolado, argumentando que «na comida francesa se pratica o contrário, coelho ao molho de mostarda, e frango ao molho de creme». Ah, essa irreverência brasileira…) , respeito aos clássicos e inventividade, composição, equilíbrio e simplicidade—na complexidade (simplificar é sempre muito complicado): como dizia o político britânico Whitehead, «procure a simplicidade e desconfie dela».

A colher de molho, em seu leito de morte, na transição para o desaparecimento, andou sendo feita também de aço inox, o que a desmereceu em sua pretensa nobreza, mas que a fez mais difundida e vulgarizada, até certo ponto. Vai de par com a boa refeição–francesa. Como o vinho. Serve para que se possa degustar devidamente o molho. Na refeição, ajuda portanto a suscitar gostos, temperos e texturas especiais, o que são funções do molho em combinação devida com o prato. Aliada ao molho, estende e projeta sua relação com a espiritualidade, assim como com o prazer da gastronomia.

Porque falar da colher de molho nestes ensaios sobre a refeição solitária e seus prazeres? Em parte, acabo de responder ao mencionar sua relação com a espiritualidade e com os prazeres da gastronomia. Simplesmente porque o molho pode ser melhor apreciado por quem come só. Como parte íntegra da refeição, como tenho assinalado frequentemente em partes anteriores destes textos, o molho apresenta condições de ser melhor apreciado, física e espiritualmente, na refeição solitária, por ser esta menos sujeita a interferências.

Agora, assim como a colher de molho, o próprio «molho», em sua verdadeira acepção, encontra-se em vias de extinção. Ou, na melhor das hipóteses, encontra-se distorcido, transfigurado em líquidos ou sucos amazeinados, ou suspeitas formações pastosas ou gelatinosas, que nem de longe guardam qualquer relação com qualquer «molho» da culinária francesa, com a qual o «molho se identifica. Lidamos aí, então, com uma componente de identidade gastronômica, mas igualmente ideológica ao atribuirmos valor intrínseco à colher de molho.

Como a culinária francesa perde vitalidade, mesmo sendo ainda muito significativa, claro,  na França, mas adstrita a poucos restaurantes pelo mundo fora, a exceção do bom cultivo ainda praticado em cozinhas particulares, verifica-se uma perda também ideológica na valorização da refeição—com a preferência pela ideia da comida como apenas um alimento para saciar a fome, caracterísitca do mundo anglo-saxão–, e intrinsecamente a perda de serventia da colher de molho, sentida particularmente na refeição solitária. Estamos diante de um anacronismo social. Fora da França, dos restaurantes franceses,  e de um círculo de chefs, de amantes ou conhecedores da culinária francesa, alguém sabe o que seja o molho «Nantua», ou o molho «ravigote», ou o «Périgord»? Mesmo «baixando a bola», o que será o «vinaigrette»? Com certeza muito distante do «vinagrete» do churrasco brasileiro.  

Essa distorção conceitual do molho, ou seja, a dimensão ideológica do molho,  e por extensão da colher de molho—não dá pra imaginar, e nem seria aceitável comer a vinagrete do churrasco com colher de molho—fica com efeito mais evidente dentro de nossa ideologia capitalista: molho de tomate—não o verdadeiro, quanto mais falso e industrializado, melhor. O resto é  ketchup, mostarda e, eventualmente, molho branco, entre nós uma versão do mingau de maizena, com algum creme de leite de lata—que está feito de forma a nada lembrar o «béchamel». O mesmo se aplica a outros molhos básicos, como o «espanhol», ou o «demi-glace», ou aos molhos emulsionados.  Terreno puro da ideologia!

Vejamos os molhos por outro ângulo: numa mesa gregária, e desde que valorizados, em especial com a ajuda de uma colher de molho, podem ser um tema quase interminável de conversação, uma «conversation piece»; na mesa de um comensal a sós, passam a ser um elemento de diálogo íntimo, um catalisador entre o sujeito, o prato e seu potencial de prazer, não só gastronômico, mas de bem estar íntimo. Sou radical nesse ponto: pratos sem molho—não falo dos falsos «molhos » referidos acima, tendem à obscuridade, e até ao obscurantismo, já que a gastronomia por vezes assume ares de religiosidade. Devo dizer que entendo «molho» em sua acepção mais abrangente: em nosso arroz com feijão, bife e batatas, o feijão é legitimamente o molho. No churrasco, o molho, fora o caldinho da carne (de há muito suprimido na prática brasileira, já que a preferência é pela carne levemente esturricada, que chamamos de «ao ponto»!) é a salada com algo de azeite, limão e pimenta preta ( a «do reino») que deve acompanhá-lo. No Brasil, fala-se, quando preparamos churrasco, do «molho vinagrete». Espantoso engano! Outro dia, em visita a minha filha Cecília, em Brasília, fiz uma salada tipicamente israelense (é o arroz com feijão diário deles), de tomate e pepino frescos, cortados em pequenos cubos e misturados, apenas temperados com salsa picada, azeite e pimenta preta. Pode-se incluir também cebola cortadinha. Meu neto, Lucas, candango bem brasileiro, de 9 anos, viu a salada e exclamou contente: «oba, vinagrete!». O  molho que comemos com churrasco, nós brasileiros. É a tal da transfiguração ideológica do molho «vinaigrette».  

 Numa «cotoletta alla milanese», de longe o melhor prato ever que se pode comer em Nova York—e somente lá–, de novo, o molho será apenas os respingos de limão sobre a salada de tomates bem maduros e rúcula que costumam acompanhá-la . Respingos de limão e um fio de bom azeite virgem extra, spremutto a freddo, prima pressione, constituem um molho insubstituível ao peixe fresco português. E o molho «burro e salvia» para acompanhar os ravioles de abóbora?  E a trufa branca fresca cuidadosamente laminada por sobre a carne picada crua de vitela rosa-claro dos Alpes piemonteses, prato a ser degustado de preferência em Alba, perto de Turim, terra única dessa trufa?

Na feijoada, o feijão, esse grande ingrediente—não digo só o feijão preto ou mulatinho– de molhos  importantes bem para além de nossas fronteiras, é o prato e seu próprio molho. Felizmente.