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REFEIÇÃO A SÓS: MUITO PRAZER-PARTE XXIV – SERÁ MAIS SABOROSA A REFEIÇÃO A SÓS?

SERÁ MAIS SABOROSA A REFEIÇÃO A SÓS?

Observemos a pessoa que come a sós mais de perto, nessa correlação com os demais, o público ao seu redor. Não há diferenças na comida ou na bebida entre o comedor solitário e o grupo ao seu redor. Ou há? Sim, as evidências indicam que o comensal solitário come e bebe melhor. Mesmo comendo o mesmo prato do menu, ou bebendo o mesmo vinho servido na mesa ao lado. A coisa vem das origens, na preparação dos pratos, na cozinha. Não há como provar a olho nu, talvez, mas há esmero maior no atendimento da comanda para uma pessoa do que na comanda para várias pessoas. O fato é que as atenções do cozinheiro e do chef se distribuem pelo numero de pratos da comanda do grupo, enquanto o atendimento individual receberá atenção total—no momento da preparação. Preciosismo? Não creio. Pergunte a qualquer um que tenha trabalhado numa cozinha digna desse nome. Há o respeito do chef , do maître e demais atendentes por aquele que come a sós—nos referimos a restaurantes de certo nível, como tive a ocasião de relatar.

 Ademais, sem ter que dividir a mente entre os prazeres que experimenta ao comer e a conversa com os demais comensais em sua mesa, o indivíduo pode melhor apreciar a refeição, naturalmente concentrando-se na qualidade, em detrimento até mesmo da quantidade. E será melhor servido do vinho que escolheu, pormenor importante.

 Compreensível que coma menos, a ênfase está na qualidade e no gosto.  Estamos no plano da gastronomia, é certo, e porque não? E quando me refiro a restaurantes de certo nível, não quero dizer necessariamente preços e luxo (Deus nos livre), mas à qualidade. Agora, admito que, na refeição solitária, a pessoa pode—e na verdade, deve—sentir-se livre e tentada a pedir bons pratos, e um belo vinho, indulge, dar asas mais soltas ao prazer que tem na refeição.  Em grupo, há sempre alguma hesitação ou restrição, de natureza financeira, ou pessoal, na perspectiva de dividir pratos e contas, há os que bebem e os que não bebem, os que comem mais, outros menos, os que pedem entradas, os que não querem uma sequência de pratos. Que dizer daqueles que, por fazerem parte de grupo numeroso em volta de uma mesa onde se convencionou a divisão da conta final em partes iguais, pedirem o que há de mais caro? Enfim,  há de tudo, até mesmo numa mesa a dois, com o resultado previsível: salvo as exceções de praxe (grupos ou casais bem integrados e/ou dispostos a divertirem-se, encontros comemorativos ou de negócios, em especial os pagos pela empresa ou com patrocínio, ou ainda considerada a exceção dos comilões aproveitadores acima referida), opta-se por comidas e bebidas mais econômicas. Como numa regata, o velejador solitário, com seu barco leve e sofisticado, vai muito à frente dos demais, pesados de gente e de lastro. Perde em convívio, que pode ser criativo, interessante, poético, amoroso, engraçado, divertido, produtivo, utilitário, ideológico; mas que, confessêmo-lo, é muitas vezes forçado, tenso, ou desagradável, se não fútil ou superficial—muito raro ver pessoas em grupo discutir filosofia à mesa de um restaurante–, mas ganha em liberdade pessoal e abertura de pensamento, para além de integrar-se melhor com os prazeres da boa mesa, com a gastronomia.  Portanto, come melhor aquele que faz a sós a sua refeição. Não quer dizer que coma mais. Ao contrário, pratica-se, consciente, ou inconscientemente, a seletividade, a boa escolha. A experiência levará o comensal solitário a comer mais lentamente, e apreciar mais o alimento.Tem as condições para tal, e com certeza o endosso de seu médico e de seu nutricionista.

Tais observações valem para outros contextos da refeição solitária. Em casa, no escritório, na praça, no parque. Sim, sempre há aquela crença: os solteiros, as donas de casa, os idosos, os executivos em viagem, enfim, pessoas sozinhas, mas que ainda não se despertaram para os prazeres da condição de comer a sós, tendem a simplificar suas refeições, «comer qualquer coisa» em casa, no quarto do hotel, encomendar uma pizza, comida chinesa, ou a japonesa (horror dos horrores se for à base de peixe cru, pois este alimento fatalmente chegará deteriorado ao cliente), comprar um sanduíche na loja de conveniência da esquina. Os anoréxicos e boa parte dos que vivem em dieta (psicológica ou efetiva), nem isso. É uma crença e,pena, prática generalizada. Uns querem economizar, a pessoa caseira prefere comer a tal «qualquer coisa» em casa a dar-se ao trabalho de cozinhar com carinho, de sair, e assim por diante.

Há método nessa indiferença perante a refeição, muito ligado à percepção de desconforto. Nada mais caricatural do que ver a pessoa desacompanhada, e ainda inexperiente das benesses do comer solitário, entrar ansiosa em algum restaurante, ser levada a uma mesa de canto obscuro ou perto da cozinha por atendentes ainda preconceituosos acerca de quem faz a refeição a sós, pedir o primeiro prato que lê no menu, sentir os minutos de espera transformarem-se em horas intermináveis, sem saber o que fazer com as mãos e com os olhos, comer rapidamente, pedir a conta ainda enquanto mastiga os últimos pedaços da omelete ou do bife com salada, e sair, com o olhar fixo em direção à porta, incapaz de dizer se havia muita ou pouca gente no lugar, sentindo-se observada, e apenas aliviada quando deixa o restaurante.

Tal como a descrevo, essa caricatura representa, com mais ou menos ênfase, situações corriqueiras dentro da percepção tradicional do que seja a refeição solitária. Encontram-se, na internet , numerosas entradas ou sites com «dicas» para fazer da refeição solitária algo menos penoso—se vista nessa perspectiva tradicional. Ajudam, de fato, a que se possa encarar positivamente a ideia de comer à sós. Nesses mesmos contextos da refeição solitária, muitos se deram conta de seu valor, descobriram os segredos ali escondidos, encontram-se perfeitamente adequados e felizes com a prática da gastronomia solitária. Vi um podcast da BBC há pouco, a respeito do tema «eating alone» , onde entrevistam uma senhora viúva, de mais de noventa anos, que vive sozinha em seu cottage em algum sítio romântico a beira mar na Escócia. Faz todas as refeições em casa, com enorme prazer, curtindo a boa culinária que aprendeu em tempos que viveu na Toscana com o marido. Inevitável, aqui, falarmos das «dicas» para «amenizar» os «desconfortos»  daqueles que «enfrentam» a sós uma mesa de restaurante. Uso as aspas por incorporarem, esses vocábulos, as acepções e percepções mais comuns pelas quais são vistos em geral os que comem a sós, sobretudo em sociedades menos familiarizadas com o conceito. Não custa nada dar uma olhada nessas tais dicas. Já, já.