Foto: Terrina de cogumelos boletus com tamboril.
Ensaios

REFEIÇÃO A SÓS: MUITO PRAZER (PARTE XII)

A ÓPERA O TEATRO E A VIDA

Quando pensamos nestes termos sobre a condição do comensal solitário, o ponto de apoio é portanto a imagem. Cenários, imagens pensadas, vistas, recordadas, desenhadas. Pequenos grandes filmes, onde nos tornamos ao mesmo tempo atores e diretores. A relação entre teatro e a vida real é muito intrigante, e já foi como se sabe explorada, uns dizem, como Macbeth, que a vida é um palco, onde nós, atores, nos agitamos por um tempo e depois não somos mais ouvidos nem vistos; e outros dizem que o teatro e a vida não têm nada em comum, até que Cânio, ao atuar nas vestes do palhaço traído por Arlequim, descobre na «vida real» o amante da Colombina e o mata, e a ela, por ciúme e traição. Estamos todos metidos numa multiplicidade de espelhos, que jogam peteca com as imagens da vida real (?). Ionesco foi ban-ban-ban nisso e a arte do teatro nada é senão mexer com espelhos. Aliás, .a escrita contemporânea , quem sabe se na esteira da internet, redescobriu esse brinquedo e parece não querer outro. Com muita justiça. Pois bem, quem pratica a refeição solitária está bem no meio desse jogo, e pode tirar dele um enorme prazer. Prazer lúdico, mas de extrema sofisticação conceitual. Como? Antes, alguns passeios por afinidades eletivas—que me perdoe Weber– próprias de quem come a sós, inclusive nas áreas do silêncio e da dramaticidade, talvez ajudem à melhor compreensão da riqueza imagética, e mesmo vital, à disposição de quem faz esse tipo de refeição.

 Não sou perito em cinema, confesso, mas deixo sempre os entendidos sem resposta quando indago porque, em toda a história do cinema norte-americano, são raríssimas as cenas de refeições, almoço ou jantar, sem brigas, tensões ou disputas entre os comensais. Até mesmo o solitário, no cinema Hollywood, não é exceção: John Waine começa a deleitar-se  com o prato de feijão com carne, sentado no banco de trás de uma carroça no meio do faroeste , quando sente a flechada, dos índios que atacam de surpresa a caravana, passar-lhe rente à orelha. Essa observação, de que são raras, raríssimas, no contexto da cultura anglo-saxônica norte-americana, as cenas de refeições que não estejam carregadas de tensão, brigas, disputas, entre os que se sentam à mesa, não vale para um tipo de refeição, o pequeno almoço, o breakfast, única refeição condizente com os valores culturais citados. Para os americanos, o cenário do breakfast é sempre idealizado, sempre o retrato da família feliz, marca Hollywood anos 1950, o marido despedindo-se da mulher à porta da casa, filhos tomando o ônibus escolar, a mulher preparando-se para as tarefas caseiras do dia, os chores, tudo isso se passando na sequência imediata da feliz reunião familiar em torno da refeição matinal de bacon and eggs, cereals and pankake, coffee, toast and butter. Corta-se a cena. As demais refeições do dia , conforme esses valores culturais, são apenas de caráter utilitário, normalmente apenas refazer, com o sanduíche, a sopa Knorr ou o brown bag, as energias, ou simplesmente matar a fome, no máximo para fazer negócios, coisa tensa, torna-se natural que os instintos menos nobres prevaleçam, e sejam até mesmo cultuados pelo que valham na trama cinematográfica.  A diversidade cultural, entretanto, tende a prevalecer, com seus processos de feedback e de cross fertilization. Sabemos que, com a diversificação cultural, as principais refeições do dia ocupam lugar especial e cada vez mais valorizado. As artes, secularmente, são por demais sensíveis, como não poderia deixar de ser, a essa variedade de valores culturais ligados à refeição.

 Na ópera Tosca, de Puccini, a figura de Scarpia, o temido chefe de polícia na Roma Imperial, inescrupuloso ao matar e ao corromper-se: «io non mi vendo a prezzo di moneta». Quer possuir a Tosca, cantora sublime de corpo e alma, amante de um revolucionário, Mario Cavavadossi. Para mim, a cena mais chocante e luminosa de toda a ópera  é a ária «E lucevan le stelle» e o dueto de amor que se segue (em que Mario Cavaradossi, prestes a ser assassinado, é levado pela ficcção, induzida em Tosca por Scarpia, de que se salvarão). Scarpia, porém, é o dono de Roma. O que vemos no início do segundo ato? Scarpia, ceando solitariamente, exaltando a luxúria e a conquista violenta, desdenhando a sinceridade no amor e salivando para possuir Tosca: «Bramo. La cosa bramata perseguo, me ne sazio e via la getto volto a nuova esca. Dio creò diverse beltà, vini diversi. Io vo` gustar quanto più posso dell´opra divina»[1]    Janta a sós, em êxtase premonitório, lentamente sorve vinhos e vinhos, enquanto vislumbra e canta as formosuras corporais de Tosca. Tosca é trazida à cena, para um diálogo, na verdade monólogos que levam a um desfecho trágico para  todos, Scarpia, primeiro, e depois, Mario Cavaradossi e finalmente Tosca.  Bem, aqui, o que nos interessa nesse drama eterno, e que está pelos quarteirões de qualquer cidade, é a situação de Scarpia, que faz a refeição a sós. Parecida com aquela história de que «it is lonely at the top»? Saiba de uma coisa: chegou ao topo? Você tem uma dívida pessoal consigo. Só pode. Penitencie-se indo muitas vezes ver a Tosca, de Puccini. Talvez se redima, se não pelo libretto, com certeza pela música. Que dívida é essa? A partir daí, a refeição a sós com prazer o ajudará a descobri-la e a saldá-la.

Ópera lembra ópera. Mar agitado defronte a praia de Carcavelos, subúrbio de Lisboa. Ao lado daqui de casa, na Vila da Parede. Lembra-me Rigoletto, de Verdi, «La tempesta è vicina», canta o bufão, antes de tragicamente assassinar a própria filha Gilda, pensando que está a matar o seu, lá dela, amante. Jogo de espelhos. A tempestade não é a de chuva e vento, é a que lhe chega, premonitória, com matar a filha. Mas, ingênuo, pensa que a tempestade é aquela lá de fora, vai em frente. Verdi, com a música prenunciadora e o anúncio da tempestade próxima por Rigoletto antecipa aos espectadores a tragédia por vir, mas o bufão, ele, não faz a conexão.  Afinal, é um bufão. Como personagem, vê na tempestade próxima um fenômeno gratuito. Não identifica ali augúrios ou vaticínios.  Somos—quase– todos assim, que fazer, pensamos sempre que a tempestade está lá fora. E nem somos bufões. Ou somos? Se, como diz Falstaff, o mundo é uma burla, então… Julio César não escuta o vidente, que lhe diz para tomar cuidado com «os idos de março». Chegam «os idos de março», o dia da metade do mês, Julio César  passa pelo vidente a caminho do senado, onde será assassinado, e o interpela, duvidoso do vaticínio:  «Os idos de março chegaram»!, e recebe a resposta: «sim, mas ainda não se foram». Diz Sartre, «L´enfer, c´est les autres», como quem diz, «a tempestade está lá fora, mas vai cair justo em cima de mim». Hamlet conversa com os amigos, que sabe falsos, e que querem descobrir o que o príncipe está tramando. Passa por eles um flautista, Hamlet lhe toma a flauta e pede aos amigos que toquem. Como não sabem tocar, e o dizem assim a Hamlet, recebem de resposta a pergunta—aqui em referência muito livre: «se não sabem tirar notas musicais desse objeto de madeira, inanimado, como querem tocar a minha alma?» [2]

 Eu, nas dúvidas, olho por cima dos óculos para os ventos fortes, ondas mais ainda. Bem, estamos no inverno. Fui caminhar, chuva e vento me pegaram no meio do passeio, refugio-me no primeiro restaurante no calçadão da praia. Início da hora de almoço. O dono e sua senhora, em plena conversação, que me parece mais uma negociação, com um cidadão de traços indianos, me saúdam no restaurante, vazio àquela hora, como se fora um habitué eamigo. Não sou nem uma coisa nem outra, mas acolho de bom grado a saudação e a oferta implícita de amizade, sincera ou, mais provavelmente, apenas interessada.. Vejo uma ou duas postas de bacalhau na montra e aceito o desafio. Bacalhau a lagareiro, digo com convicção ao atendente, um rapaz brasileiro. Está no cardápio, na ementa, como dizem por cá, penso eu, bacalhau é sempre garantido, em restaurante que não se conhece seria a pedida mais conservadora; e mais barata, diga-se de passagem. De todo jeito, faço a questão de transmitir uma mensagem pessoal de bem estar ao garçom, depois ao dono, depois à sua mulher, que então vieram estar comigo à mesa num contexto de meio de campo, entre ataque e defesa, pela posse da bola, querem vender cinco ou seis acepipes de entrada. Aceito só o queijo Niza, que raras vezes vem fresco, cremoso, como é o caso agora . Estupendo. Ah, não resisto às pequeninas azeitonas saloias também, já que são sem sal e simplesmente maravilhosas no gosto. Passa-se um tempo, não estou com pressa, lá vem o bacalhau, bem à lagareiro, numa primeira visão. Visão que depois perdura e se confirma, pois estava muito bem o peixe, nem salgado nem sem sal. Esparramado por cima e pelos lados, generosamente fazendo ilhas nas batatas coradas à murro, o azeite quente com alho. Prefiro o azeite frio, fresco, posto na hora,  alho em separado, mas, bem.  A posta grelhadinha, com aqueles pontos e manchas pretas de crosta torrada na brasa e perfumada. Impecável. Mesmo com as espinhas.

O que não sempre é o caso das rosas. Todos os dias pela manhã, me levanto, mesmo naqueles em que a Cristiane ainda dorme, venho à janela da cozinha, onde há bom ponto de observação, e dou um bom dia às «nossas rosas», lá estão num canteiro debaixo da janela, no jardim do prédio. Estão sempre lá, chova vento forte ou faça sol de brisa árida. Não se distinguem os espinhos. Na verdade, as rosas estão lá, mas, uma de cada vez. Brancas ou rosas. Sempre. Fazem mais límpido e suave o meu dia. Por que diabos estou aqui, eu a sós à mesa num restaurante vazio, diante de um prato com um bonito bacalhau à brasa? Uma longa história, a de todos nós, que vejo refletida nas rosas debaixo da janela da cozinha, e na janela do restaurante—de nome engraçado: «Matateu»–, por sobre as ondas, que soltam rasgos espumosos eriçadas pelo vento a bater forte nas palmeiras. A vida é doce.


[1] «Desejo. E a coisa desejada persigo-a, sacio-me e abandono-a. Depois, volto-me para uma nova presa. Deus criou diferentes belezas, diferentes vinhos. Quero aproveitar o quanto posso da obra divina.» (tradução Maria Carbajal, Tosca, Giacomo Puccini, Coleção Folha Grandes Óperas, 2011 Editora Moderna, Ltda.)

[2] « Enter Players with recorders.

(Hamlet) Oh, the recorders: let me see one. To withdraw with you: why do you go about to recover the wind of me, as if you would drive me into a toil?

(Guildenstern) O! My lord, if my duty be too bold, my love is too unmannerly .

Ham. I do not well understand that. Will you Play upon this pipe?

Guil. My lord, I cannot.

Ham. I pray you.

Guil. Believe me, I cannot.

Ham. I do beseech you.

Guil. I know no touch of it, my lord.

Ham. ´Tis as easy as lying; govern these ventages with your finger and thumb, give it breath with your mouth, and it will discourse most eloquent music. Look you, these are the stops.

Guil. But these cannot I command to any utterance of harmony; I have not the skill.

Ham.  Why, look you now, how unworthy a thing you make of me. You would play upon me; you would seem to know my stops; you would pluck out the heart of my mystery; you would sound me from my lowest note to the top of my compass; and there is much music, excellent voice, in this little organ, and yet cannot you make it speak.  ´Sblood, do you think I am easier to be played on than a pipe? Call me wht instrument you will, though you can fret me, you cannot play upon me.» (Hamlet, Act III, Scene II, 366)