Ensaios

REFEIÇÃO A SÓS: MUITO PRAZER – O DRAMA NA REFEIÇÃO (PARTE XVIII)

Sim, a tragédia da fome, o drama maior, o traço doloroso que infelizmente cicatriza a história da humanidade, e por aí a pré-história também. A própria humanidade não parece querer dar fim a ela. Por mais que tenhamos nas mãos as condições para tal. Preferimos cultivar a desigualdade ao extremo. Somente dentro deste tema maior, e da plena consciência de que convivemos mal em todos os sentidos, inclusive criminalmente, com essa tragédia, ignorando-a ou pouco fazendo para evitá-la, poderemos, conforme referi ao início destes ensaios, falar de planos diferenciados de satisfação e prazer em nossas refeições. Pois, enquanto sobreviventes, nos alimentamos. Alimentar-se é uma condição biológica. Cuidar para que todos tenham acesso ao alimento deveria ser uma condição imanente a cada sociedade. Está até em nossa Constituição, de 1988. Recordo de novo Tucídides que, no V século A.C, mas com um realismo sintético típico dos tempos virtuais e binários de hoje, procurava entender as guerras e outras violações ao que depois se tornou o direito humanitário a partir da expressão: «a natureza humana sendo o que é…»

Passemos entretanto ao tema mais restrito, muito mais restrito, destes ensaios.

 Sim, há drama em toda refeição. Aqui, estamos à busca dos prazeres ocultos ou mesmo transcendentais na refeição a sós. Mas há drama, e como! E temos que dele nos ocupar por uma mera questão de equilíbrio. E mais, proponho que o drama nos ajudará a descobrir, por contraste, os prazeres da refeição a sós. Não vamos cultivar o drama, mas ele está lá. Viram que indago, e respondo: sim, toda refeição tem um quê de drama. Melhor, dramas, já que os elementos dramáticos se distribuem em níveis distintos: 

a) o da comida. Há sempre, ou quase, uma relação tensa do sujeito, aquele que come, com o alimento, por motivos diversos. 

Claro, o primeiro deles é ter acesso à comida. Voltamos aí a essa tragédia que marca a história das civilizações. Das civilizações, notem bem. Descendo, porém, à escala bem, bem menor destes ensaios, podemos referir a outras limitações, como as limitações dietéticas, o gosto pessoal (são bastante comuns, quem sabe mais em sociedades mais bem providas, e talvez menos nos dias que correm, os casos de crianças forçadas a comer verduras ou outros alimentos que não toleram, não admira que tenha tanta gente reprimida por aí). E há muita gente adulta que não come isso ou aquilo (eu, de minha parte, quando me perguntam de que eu gosto, respondo logo: gosto de tudo, desde que bem feito, e de nada que seja mal feito ou mal preparado, mas isso, sou eu. E vai nessa atitude muito drama, acreditem, pois comida mal feita é igual à ignorância, temos sempre em abundância–quando há comida). 

Freud tem explicações para quase tudo, deve ter para essas restrições, com certeza, mas o que nos importa aqui é a presença, em todos esses casos, do elemento de tensão. É, contudo, um ponto dramático que afeta menos quem como só, por definição, mas que, quando o afeta, pode ser de forma bastante intensa e dramática: o miserável, faminto, ou o prisioneiro no campo de concentração, ao receber um alimento, não creio que vá rejeitá-lo por conta de seu gosto pessoal.  

b) o da relação seres vivos com seus nutrientes vivos (animais, plantas) e não-vivos (os minerais). Como obter a energia necessária à vida sem agredir outros seres vivos ou não-vivos (neste caso pela sua função ambiental e seu eventual esgotamento). Não por nada, verificou-se, durante bom período da história das artes plásticas, uma tendência dos pintores, quando tratam do tema dos alimentos, em retratar «naturezas mortas». 

A natureza se sacrifica sempre pelo ser humano. Será? Muitos podem objetar, e com motivos, a essa afirmação, que carrega consigo um forte ranço do que se costuma hoje chamar de politicamente incorreto. Talvez possamos compreendê-la melhor pelo seu contrário: o ser humano precisa da natureza para sobreviver, mas nem sempre o faz sem sacrificá-la, de forma «sustentável», para usar um conceito tão importante como complexo e atual, e que só se desenvolveu há poucas décadas, quando o mundo, ou parte dele, se deu conta de que é imprescindível a conservação do meio ambiente. «Conservação» é um conceito que pressupõe a interação do homem com a natureza de forma sustentável; e não se confunde com «preservação», termo que pressupõe a intocabilidade do meio ambiente. Há uma tendência compreensível, mas equivocada, a tomar-se uma coisa pela outra. Todo o trabalho desenvolvido internacionalmente com relação ao tema ambiental, em especial no âmbito da Organização das Nações Unidas-ONU, gira resumidamente em torno desses conceitos. 

Pemitam-me um pequeno desvio do nosso tema, mas é pertinente. Recordo que o ponto de partida para o que se entende hoje por «meio ambiente» e sua conservação se deu em Estocolmo, em 1972, com a «Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano», a primeira do gênero, e que somente 20 anos depois teve, no Rio de Janeiro, a sua segunda edição, com a «Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento», a chamada Rio-92 .  Notável aí a inclusão da equação, ou binômio: meio ambiente e desenvolvimento, um dependendo do outro. Deu-se ali também a adoção do conceito referido de «desenvolvimento sustentável», ou «sustentabilidade», agora ao que parece já bastante difundido e praticado, exceto por alguns Chefes de Estado renitentes. A noção de sustentabilidade, mais ou menos óbvia hoje, ficou, por longos anos, adstrita aos círculos negociadores governamentais multilaterais, com alguma presença em círculos acadêmicos. Foi absolutamente ignorada pelos economistas e políticos, sempre alertas em apenas reconhecer a noção de desenvolvimento ou de crescimento «sustentado», termo da teoria econômica e que não tem nada que ver com crescimento «sustentável». Pois é essa noção equivocada que nos leva de retorno às nossas considerações sobre os níveis de drama na alimentação. 

 Do ponto de vista estético, a «Natureza Morta» esteve  vinculada à alimentação ao longo do período que vai, nas artes plásticas, da Alta Renascença até inícios do século passado, ou seja, durante o período em que predominava a arte figurativa. Dissolvida a figura, com Picasso e seus contemporâneos, dissolveu-se o vínculo. 

Onde, na pintura moderna ou contemporânea, está a «natureza morta»? Estará mais bem na denúncia dos ataques e da destruição da natureza pelo ser humano, nas queimadas, no desmatamento, na denúncia dos padrões insustentáveis de produção e consumo, na mudança do clima, na degradação dos mares e oceanos, de que vemos múltiplas instâncias por todo lado, especialmente em «instalações» em museus e galerias pelo mundo fora. Ou seja, «natureza morta» hoje, corretamente, é sinônimo da natureza destruída ou sendo ameaçada pelo homem. E aí entram os mundos animal, vegetal e mineral. Ouvi, há pouco, na TV, um engenheiro de alimentação relatar as previsões de centros de pesquisa avançados no sentido de que ainda neste ou nos próximos séculos estaríamos nos alimentando quase que somente de minerais.

 Seja como for, verifica-se tendência ao crescimento da relação tensa do homem com o alimento, com base nas noções de escassez, aumento dos custos, mudança (forçada ou não) de hábitos alimentares, luta contra o desperdício e a ameaça de fome. A propósito, vale a referência às previsões ameaçadoras desenvolvidas pelo chamado «Clube de Roma», um «think tank» europeu e norte-americano que, nas décadas de 1960 e 1970, formulou teorias sobre o virtual esgotamento dos recursos naturais por conta do excessivo crescimento populacional no mundo. Essas teorias futuristas, bem ao gosto da época, tomadas então como verdades mais que prováveis, provaram ser falsas, hoje seriam tipicamente campo fértil com as «fake news».  Nem os recursos naturais se esgotaram, nem a população mundial cresceu nas proporções que o tal «Clube de Roma» previa. Mas, geraram então grande comoção internacional, com os países ricos exercendo intensa pressão sobre países com altas taxas de crescimento demográfico, todos praticamente nos três continentes com países em desenvolvimento: Ásia, África e América do Sul, mais América Central, Caribe e México.. Ao que parece, os tempos que correm assistem a uma nova emergência desse tipo de teorias, algumas com fundamentos científicos mais sólidos, como as teorias sobre a mudança do clima.

c) o drama quase sempre contido no diálogo, ou nas conversas, durante a refeição. Por definição, esse nível estaria excluído da refeição solitária. Talvez não sempre, já que muitas vezes quem come a sós se qualifica como a pessoa que come em companhia de si própria. Mais acima, me referi à expressão «self-partnered person», que começa a entrar em voga na Califórnia holliwoodiana, e que já, já, estará em voga entre nós, como bons copiadores que somos de coisas «pop-culture» norte-americanas, como o «halloween», tênis «nike» e hambúrguer. 

Finalmente, há um quarto nível: d) o drama «situacional». Vamos ao restaurante e não há mesa disponível; o casal da mesa ao lado discute em voz alta; «quem vai pagar essa conta?»; «a comida chegou fria!»; o famoso «garçon, tem um fio de cabelo em minha sopa!»; « não pedi bife, pedi peixe!»; «meu Deus, como grita aquela criança!» «estamos aqui há quase uma hora e ninguém nos atende!»; em casa: «o feijão queimou, e agora?»; «estou com fome, gostaria de comer aquele cachorro quente, mas estou sem grana.» E por aí vai. 

«Pequenos inconvenientes, não chegam a ser drama», alguém com razão poderia dizer. Aceito o comentário, podemos ver essas situações como pequenos dramas da vida diária, como outros tantos, talvez inconsequentes, mas que introduzem tensão, em grau em princípio desprezível, mas que pode tornar-se significativo, ao ato de alimentar-se. 

O que fazer desses níveis de drama na refeição solitária? A resposta é simples, pois, nesse tipo de refeição, tais dramas podem ser mitigados, quando não anulados a partir de uma atitude positiva que decorre automaticamente do jogo de atenções—focal ou subsidiária-a que pode dedicar-se o comensal solitário, conforme referido mais acima. Torna-se importante, entretanto, para quem come só, estar consciente do contexto, ou do grau de dramaticidade que acompanha o momento da refeição, pois uma atitude de desprendimento com respeito aos pontos de tensão ou drama, e de ação responsável ou solidária, caso pertinente, permitirá a quem faz a sós a refeição reencontrar-se com os momentos prazerosos, nos diversos planos que pode experimentar. É o tal jogo dos opostos: drama x prazeres–que por vezes se somam.