REFEIÇÃO A SÓS: MUITO PRAZER
A POLIS E A REFEIÇÃO SOLITÁRIA-PARTE XVII (b)
Na refeição a sós, em princípio saltamos esse dilema, se podemos chamá-lo assim, ou seja, de termos que escolher um determinado sistema de ideias, embutido na linguagem. A pessoa desacompanhada—condição que agora na Califórnia hollywoodiana de Angelita Jolie passou a chamar-se «self-partnered person», ou, em tradução livre, «pessoa associada a si própria», ou «pessoa que se acompanha a si mesma» , enfim, para nossos propósitos aqui, a pessoa que come só pode pensar, deixar a mente solta. «Sócios de nós mesmos», não precisamos pensar no que vamos dizer, estamos livres. Politicamente livres, se aceitarmos a transparência da relação íntima entre política e ideologia. Mas, como digo, vivemos na polis , em sociedades politicamente organizadas, verdade que em graus distintos de organização política. Não creio arriscar muito em propor a correlação, na qual quanto menos avançada a organização política de uma polis, cidade ou Estado, maior a densidade de práticas populistas, entre elas as refeições públicas–financiadas em geral com dinheiro do nosso bolso– com participação, pessoal ou por meio de propagandas, de representantes parlamentares ou agentes do poder executivo, sobretudo em vésperas de eleições, com o propósito de conquistar votos ou as mentes dos participantes para suas propostas, quando as há, e para seus padrões de ação governativa, quando podem esse ser identificados; e, inversamente, quanto mais avançada a organização politicamente livre dessa sociedade, menor a densidade de práticas populistas, e maior a probabilidade de representantes e líderes políticos sensíveis reservarem espaços de agenda para refeições solitárias, em geral feitas longe de restaurantes, em seus próprios espaços privativos. Já mencionei a preferência que teria o atual Presidente de Portugal, senhor Marcelo Rebelo de Sousa, por exemplo, pela refeição a sós. Não estará sozinho nessa opção. Longe disso.
Na qualidade de «pessoa pública», o agente político, em quaisquer dos poderes, legislativo, executivo, judiciário ( no caso do Brasil atual, em escalas avançadas), carrega uma identidade aberta ao contato, ao reconhecimento de sua pessoa no espaço público, o que deve ser visto como um dado positivo, mais na essência dos regimes republicanos e democráticos, dando-se esse reconhecimento seja na forma de apoio e de aplausos, seja também na forma de vaias, críticas e mesmo de insultos. Numa democracia, a praça pública—quando há praça, está certo, Brasília muito significativamente não tem praça, apenas representações culturalmente limitadas desses espaços–, não é um patíbulo, mas um lugar de convívio político, ademais de social e cultural, e que pode ser crítico, ou agressivo, não importa. A transposição, portanto, do lugar público para o espaço privado individualizado, como no caso de uma refeição solitária, talvez seja bem mais consciente para um agente público do que para qualquer um de nós, em nossas vidas privadas. Sendo mais consciente dessa transposição, e eventualmente de seu custo político, a pessoa pública saberá até com maior facilidade experimentar os prazeres da liberdade maior que a refeição a sós oferece.
Admito que o silêncio, uma das marcas da refeição solitária, pode ser agressivo para os demais, ou mal interpretado. Gérard Dessons, em artigo intitulado «Le Silence du Langage», se opõe à ideia preconcebida de que ele é uma realidade negativa (ausência de palavras) , propõe ser o silêncio uma categoria plena da linguagem. Mas, ao contrário de outras abordagens que não rejeitam o silêncio fora da linguagem (o moralismo clássico, a retórica, a linguística programática), apresenta o silêncio dentro de uma abordagem poética,« aquilo que não sabemos ouvir na linguagem, mas que a literatura permite que se manifeste»[1] . Vale referir nesse contexto uma conhecida peça de teatro francesa, «Le Silence», de Nathalie Sarraute (1967, Gallimard): num encontro social, uma festa, um dos convivas permanece em silêncio. De início, mal é notado; passado algum tempo, os demais procuram incluí-lo nas conversas; sem êxito e, passado mais algum tempo, começam a hostilizá-lo e agredi-lo, acabando por expulsá-lo da festa. Tudo porque o conviva optou por permanecer em silêncio. Hamlet morre dizendo que «the rest is silence», e Richard Wagner chegou a sugerir que, quando as palavras («paroles») cessavam (nas suas óperas), seguia-se o «silêncio» da música, a ««melodia infinita»[2]. De minha parte, e com toda a humildade, permito-me fazer um paralelismo entre a macro-harmonia, na qual podemos ouvir momentos de silêncio na fuidez da música—sempre relativos, claro, prosaicamente poderíamos dizer, momentos mais «íntimos», ou «calmos» , e o silêncio –a maior parte das vezes também apenas relativo—na fluidez das conversações. Mais ainda, podemos sentir (ouvir) perfeitamente quando a macro-harmonia das conversas em uma mesa é quebrada, sem deixar contudo lugar à fluidez de um silêncio expressivo e harmônico. Que lições podemos tirar dessas referências muito rápidas à noção do silêncio, para quem faz a sua refeição a sós?
Terão percebido que estamos tocando no fértil terreno da Gestaldt. A atenção focal[3] de quem come a sós será a refeição e, por meio dela, alcançar a fluidez mental, enfim, a liberação da mente, para um grande prazer, que pode ser apenas o gastronômico, ou para uma fonte de prazeres que transcendem a mera ideia de alimentar-se, a qual se transforma, progressivamente, numa percepção subsidiária. O foco subsidiário se aplica igualmente para a imagem das pessoas em volta e suas conversas, e para o próprio ambiente do restaurante, caso a refeição a sós se der ali. Pelo outro lado, não se pode excluir a ocorrência, nos mais variados graus, de agressões ou hostilidades, bem ao estilo da peça teatral de Nathalie Sarraute.
Vivenciei, outro dia, num restaurante especializado em pratos de peixes em Lisboa, boa síntese desses contrastes: de um lado, a macro-harmonia, ou a falta dela, na mesa de seis pessoas em que me incluía; de outro, o silêncio, que eu diria expressivo, da linda moça, de seus 28 a 30 anos de idade, que ocupa mesa solitariamente ao nosso lado. Quando ela chegou, estávamos a meio de nossa refeição, as conversas soltas, mas divididas em dois grupos mais ou menos alheios um ao outro. Entretidos nessas conversas, ninguém da nossa mesa notou a chegada da moça, e o fato de estar sozinha à mesa, exceto eu, claro, que senti logo sua presença, por dever de ofício, digamos assim. Era bastante bonita. Não fora o lugar comum e não fosse politicamente incorreto, diria ter ela gestos de rara nobreza, sem ser pedante ou formal em sua atitude. Talvez convenha melhor falar, como pude notar em seguida, da linguagem corporal digna e relax, quase radiante de tão discreta, com sua atenção focal concentrada na refeição, e a atenção subsidiária no seu entorno ( em determinado momento reparou, por exemplo, que eu a observava de soslaio).
Foi-se como veio, sem chamar a atenção, por vezes leu alguma mensagem ao celular, bebeu água, comeu um peixe simples. Mas, em seu rastro deixou no ar aquela imagem fugidia do silêncio expressivo de uma pessoa de bem consigo mesma e confiante na sua condição de comer e estar prazerosamente a sós. Não preciso adiantar muito sobre o contraste com a nossa condição de grupo de seis comensais, onde os elementos acima descritos, de interferência na macro-harmonia dos diálogos, estiveram presentes, como sói acontecer.
De um ponto de vista conceitual, fazemos, voluntária ou involuntariamente, uso diário e muito frequente das categorias de «atenção focal» e «atenção subsidiária» acima mencionadas. Para praticamente tudo. Os exames para obter-se a carta de condução enfatizam a importância de sabermos usar nossa «visão» subsidiária, por exemplo. Os pais, nos seus afazeres domésticos, mantêm a atenção subsidiária na criança pequena que brinca a seu lado, quando não a têm sob sua atenção focal. E assim por diante. E, claro, podemos mudar de foco o tempo todo. Do ponto de vista sócio político, essa correlação entre o focal e o subsidiário pode ser percebida, ademais, como a de uma correlação do tipo «centro-periferia», mas deixemos essa questão para outra oportunidade. De mais a mais, infelizmente pouco se fala dessa correlação hoje em dia. Cheira a era pré-internet, a século XX, a ideologia cepalina, a Schumpeter, com suas categorias de «top-dog» e «under-dog» . Problema é que nossas realidades, em nossos países pobres—mesmo os de economias ricas com gentes pobres, que somos todos, ou quase, as desigualdades sociais e econômicas em vez de diminuírem, crescem em velocidade parecida com o surgimento de aplicativos na rede. Mas, e o drama, por trás de tudo isso? Há drama numa refeição? E numa refeição a sós?
[1] Artigo referido na Revista Gragoatá (Programas de Pós –Graduação em Letras, UFF, vol 10,n. 18 (2005), online, gragoata.uff.br
[2] WAGNER, Richard. Quatre poèmes d´opéras précédés d´une lettre sur la musique (1860), Paris, Mercure de France, 1941, conforme Gérard Dessous, Gragoatá, op.cit
[3] Tomo por referência, aqui, as elaborações metodológicas de Michael Polanyi, quando procura distinguir entre «atenção subsidiária» e «atenção focal» e as correspondentes categorias de «conhecimento subsidiário» e «conhecimento focal», em função da compreensão pessoal (POLANYI, The Study of Man, The Univ.of Chicago Press, 1959, p. 29). Na base de sua teoria do conhecimento, desenvolvida em obras como «Personal Knowledge», onde faz a crítica do argumento positivista de objetividade científica, estaria a capacidade perceptiva, numa (relativa) correlação com a teoria da Gestalt, dentro de um sentido de orientação do subsidiário para o focal e do entendimento de que nenhum conhecimento pode, justamente por causa desse movimento, ser totalmente focal: «(Personal Knowledge) commits us, passionately and far beyond our comprehension, to a vision of reality». In Personal Knowledge; Towards a Post-Critical Philosophy, London, Routledge & Kegan Paul 5th edition, 1983, p.64.