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Presidente Bolsonaro na ONU e as uvas desbotadas

Presidente Bolsonaro na ONU e as uvas desbotadas

Nem chegaram a ser verdes. As uvas que tempos atrás imaginávamos colher ao pleitear um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas–CSNU haviam perdido a cor e murchado já bem antes de o Presidente Bolsonaro fazer triste papel ao falar na abertura da atual sessão da Assembléia Geral da ONU. Sim, o discurso foi de longe o pior pronunciamento de um chefe de estado do Brasil ou de qualquer representante de nosso país na tradicional abertura dos debates gerais das sessões ordinárias anuais da Assembléia Geral da organização. Nas palavras do Embaixador Ricúpero, em sua coluna na revista Veja: «Se a meta da diplomacia do presidente Jair Bolsonaro for o isolamento, o discurso, proferido no último dia 24 na ONU atingiu plenamente o objetivo: o país se apequenou, ficou isolado na extrema direita do espectro ideológico. (…) O discurso foi a expressão de uma diplomacia belicosa, de valentia em defesa da soberania nacional», nas linhas de Trump, (faz) «denúncia do globalismo, ataques ao socialismo, ao comunismo, à mídia, invocação de Deus, apelo ao eleitorado religioso (…). Ele (Bolsonaro) se revelou no seu pior aspecto, até na apologia da ditadura militar, na sua insensibilidade aos grandes temas diplomáticos mundiais, ambientais e de direitos humanos. Da mesma forma que Trump, nem sequer mencionou o tema central desta Assembléia-Geral: o perigo do aquecimento global causado pela ação humana. Não me parece que ele se importe com as consequências prejudiciais para os interesses políticos e econômicos do  Brasil de sua postura externa (…). Em alguns trechos, até parece falar numa campanha eleitoral, pois hostiliza seus adversários no Brasil, seus antecessores na Presidência, acusados de comprar parte da mídia e do Parlamento. Rompe com a tradição de todos os chefes de Estado de evitar tratar de disputas internas fora do Brasil (…). É preocupante a transformação do Brasil no principal vilão global, papel até então do presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte. Ele chamava atenção mais em razão de excessos na guerra às drogas (…). A postura extremada em matéria de meio ambiente, de povos indígenas e de direitos humanos liquida o pouco que restava do ´soft power` brasileiro».

Da mesma forma, nas palavras do Embaixador Adhemar Bahadian, em artigo no JB digital de 29/09/2019: «Coincido com as críticas ao discurso tanto no tom como na substância. Em ambos, fluiu um rancor contra a Organização, seus fins e seus propósitos. A afirmação do Presidente de que a Organização das Nações Unidas não deve preocupar-se com uma ordem mundial ´abstrata`  ignorou um princípio básico da Carta das Nações Unidas. A alegação de que entidades de direitos humanos e a própria Nações Unidas teriam dado respaldo ao trabalho escravo no ´Mais Médicos` certamente a ofendeu.  A Assembléia não se reúne para ouvir problemas internos  de seus países, mas para somar esforços na consecução de objetivos inscritos em sua agenda de trabalho.»

Tais comentários são apenas uma pequena mostra de um universo de pontos criticáveis, que tornam o discurso do Presidente Bolsonaro lamentável por inteiro, e que poderiam ser resumidos na expressão do isolamento e do descrédito do Brasil no plano internacional. O Embaixador Ricúpero, no artigo acima referido,  recorda que o Brasil, nos primeiros tempos da ditadura militar, viu-se igualmente isolado internacionalmente ao apoiar o regime salazarista na África, assim como a África do Sul do apartheid, e ao seguir os EUA no apoio isolado a Israel. São posturas características de modos políticos autocráticos, tanto na extrema direita como na extrema esquerda. Ricúpero poderia ainda e com certeza ter recordado nosso isolamento na ONU durante a década de 1970, em virtude de nossa posição contrária ao conceito de «consulta prévia», sobre o aproveitamento energético de rios compartilhados, no caso com a Argentina. A insistência brasileira, ainda o regime militar, na postura de soberania absoluta na definição do projeto de Itaipu, em contraposição à exigência argentina de «consulta prévia», em conformidade com o direito internacional, no caso de rios sucessivos, resultou em desnecessária disputa bilateral que, levada à ONU, gerou isolamento e descrédito internacional do Brasil, somente resolvido quando o Chanceler brasileiro Ramiro Saraiva Guerreiro sabiamente convenceu as autoridades  militares brasileiras a mudar de posição e aceitar o referido conceito e negociar com a Argentina uma solução consensual.

Disputa igualmente desnecessária vem marcando a questão da Amazônia, conforme me refiro no texto «Caldeirão amazônico: negociação ou canhão?», por conta do recente ativismo internacional em torno das queimadas e do desmatamento na região. Há um contraste com nossa reação em situações semelhantes no passado recente.  Contrariamente à agressividade e à hostilidade com que são recebidas por Bolsonaro e sua equipe de ministros as críticas ao comportamento governamental brasileiro atual de omissão ou descompromisso com políticas ambientais, sob a arguição de soberania, durante a década de 1980, em especial na sua segunda metade, os governos brasileiros, sofrendo críticas semelhantes por parte da comunidade internacional, a respeito das queimadas e do desmatamento na Amazônia, adotaram, em vez da agressividade nas respostas, tom conciliatório, a favor da cooperação, e mais, abriram as  portas do país ao resto do mundo ao se oferecer para sediar a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento—UNCED, com a proposta de que todos os temas ambientais fossem debatidos abertamente.  A Conferência, que contou com a participação de mais de cem chefes de Estado e de Governo, teve pleno êxito, havendo o Brasil em seguida adotado série de medidas e de políticas públicas sobre a Amazônia, com o consequente amadurecimento, de forma distendida e não conflitiva, do trato da questão amazônica no plano ambiental internacional.

Os prejuízos, inclusive econômicos e comerciais dessas agressões à ONU e do isolamento do Brasil, são bastante previsíveis e constantes de todos os comentários críticos do discurso do Presidente Bolsonaro na sessão de abertura da sua Assembléia Geral. Notem que abrangem uma outra área, a da pretensão do Brasil a um assento permanente no Conselho de Segurança-CSNU, instância política máxima da Organização, única com poder decisório sobre os países membros. Hoje colocada em situação marginalizada na agenda internacional, a questão da reforma do CSNU esteve em primeiro plano na primeira década deste século, sendo justamente o Brasil um dos mais ativos propositores dessa reforma, explicitamente candidatando-se a um assento permanente no Conselho. A reforma, como se sabe, era e é tida como necessária, de modo a atualizar a Organização, para que possa refletir a nova ordem internacional. Diante da óbvia oposição dos membros permanente do Conselho, velada ou explícita, assim como das rivalidades regionais, o tema caiu em importância, mas subsiste na agenda da ONU.

Nesse contexto, as dificuldades encontradas pelo Brasil para levar adiante sua postura, durante o período de ativismo da questão, poderiam encontrar algum consolo na atitude da raposa ao dizer que eram verdes as uvas que não conseguiu alcançar. De um momento para outro, o discurso bolsonarista tirou até mesmo a cor dessas uvas, deixando-as desbotadas. Seu discurso sepulta de vez essa pretensão do Brasil. Se os motivos porque havia hesitação no seio da comunidade internacional (não só dos poderosos cinco países que têm assento permanente no Conselho) em apoiar a proposta brasileira, fora as rivalidades regionais, e tirante a frase de De Gaule, aquela de que não somos um país sério, Bolsonaro fez o favor de deixar bem explícita essa ilusão, com suas palavras agressivas à ONU, a intemperança verbal e política com que se propôs representar o Brasil, e sua omissão completa acerca da agenda internacional.