Contos

O HOMEM DESCALÇO.CONTO EM DOIS ATOS

 O HOMEM DESCALÇO-CONTO EM DOIS ATOS

RESUMO

ATO I– Zinjian faz bom negócio em país imaginário no Ocidente. Quer relaxar. Ignora estar contaminado pelo novo vírus. Em seguida a voo acidentado até uma cidade atraente, visita um museu, perde-se, vê-se em meio a um conflito entre facções criminosas. Descalço desde o voo, foge assustado pelo bairro degradado, fere o pé. É maltratado e roubado de seus pertences. Sem conseguir fazer-se entender, perambula. Já febril, acomoda-se num banco em lugar ermo, é picado por inseto venenoso e falece em meio a delírios, inconformado com a sorte.

ATO II–Morto, Zinjian e seu alter ego dialogam, a caminho do Nirvana. Quais os motivos da má sorte, da queda contínua? Seriam os princípios conformistas do taoísmo, caros a Zinjian, ou a própria Covid-19, doença oportunista? Interfere no diálogo o «Grande Inquisidor», interessado em desfazer, em favor de sua própria redenção, a correlação entre a Queda do Paraíso, ou seja, o livre arbítrio, a vontade divina e o destino dos homens. Zinjian e seu alter ego permanecem na dúvida sobre as verdades e mentiras proferidas pelo «Grande Inquisidor», ele próprio morto pela Covid-19. Apostam, entretanto, em um mundo pós Covid-19 luminoso e carregado de afeto.

O HOMEM DESCALÇO—CONTO EM DOIS ATOS

PRÓLOGO

Quantas expressões mágicas pelas costas de uma palavra triste, a quarentena. Diante do perigo, o virus infinitesimal, recolhemo-nos à casa. Enquanto o mundo lá fora se fecha, o mundo interior se abre, está à nossa disposição e temos tempo para descobrir um novo universo de águas límpidas, ar puro, matas verdes, flores, sonhos infinitos. Um dia desses da quarentena, sonhei de verdade com Zinjian, uma história triste, mas de final esperançoso.

ATO I—O fim de semana, ou , a visita ao museu

Zinjian queria descansar. Reunião difícil, mas conseguiu fechar o contrato. Dez milhões de dólares em exportações para a sua firma, em Shangai. Adereços de Natal. Só em fios, com luzinhas LED, mais de US$ 3 milhões. Sentia-se recompensado pelo esforço. Veio sozinho, longa viagem. A pandemia apenas começava, na China. Conseguiu desembarcar, sem a quarentena que veio depois, apenas lhe tomaram a temperatura, estava normal. Já não fala bem o inglês, complicado negociar aqui, o inglês deles é bem duro também de entender, e a língua, nem pensar. Finalmente, o trabalho concluído. Agora, relaxar um pouco. Queria conhecer algo do país. Contratou uma agência de viagens, recomendaram para o fim de semana essa cidade que tem de tudo, praia, monumentos históricos, bons restaurantes. «

Deu tudo errado, o que vou fazer?», balbuciou para si próprio, encolhendo-se todo num calafrio pré-febril. Completamente perdido e ao relento na cidade, com o pé ferido e com princípio de infecção, à procura de socorro, Zinjian se recosta no banco de praça, defronte a uma estação de trem abandonada. «Que ideia a minha de aceitar a proposta de ir ao museu descalço, como sou ingênuo », lamentou-se baixinho, quase sem forças para falar, ele, cinquentão, dedicado ao trabalho e à empresa. Sem ter para onde ir, tentando sublimar a dor no pé, esforça-se para não imprecar a sorte. Ali, sentado no banco, com o olhar vago de quem busca o nada, meio adormecido, rememora o que lhe passara nas últimas horas. As imagens e as cenas rememoradas têm mais nitidez do que seria razoável imaginar, pois incidentes se seguem a outros, numa causalidade estranha.

Nas últimas horas, passaram-se muitas coisas, uma triste aventura, Zinjian recorda-se no sonho, a começar pelo voo: tinha uma expectativa prazerosa. Pede outro gin tônica. Servem-lhe apenas água: «sinto, senhor, já estamos em procedimento de descida», diz a 3 atendente de bordo. O voo é relativamente curto. Zinjian está aliviado, foi um bom contrato. Aceita o copo de água. Espreguiça, se estica. De compleição média para magra, não tem pernas compridas, mas, mesmo assim, o assento da frente, reclinado ao máximo, acaba por pressionar-lhe os joelhos. Ao sentir a pressão súbita nas costas, o passageiro fez um gesto de desdém com a cabeça, de soslaio. Zinjian apronta-lhe um sorriso amarelo, não vê motivos para desculpar-se. Olha para os pés descalços. Havia tirado os sapatos logo no início do voo. Moveu os dedos sob a meia, massageando. Delicia-se descalço. Sente no contato com o chão a proximidade com a harmonia do tao, entre o ser e o universo. A sensação vale para o piso do avião, está nas nuvens. Faz leve reverência a Confúcio. Pela janela, vislumbra adiante, abaixo, à esquerda, a cidade, meio coberta pela bruma escura da poluição. Viu logo, não era uma cidade pequena. À margem, o azul-verde do mar se estendia, chamativo, ao horizonte, chamuscante sob o sol do meio dia.

Turbulência repentina sacode sua letargia. Sente a água derramada que desce pelo colo. A atendente, com o saculejo do avião, abraçou-se à poltrona ao lado para não cair, em meio aos gritos abafados de passageiros. Mais outro baque forte, mais gritos. Zinjian endireitou o assento e, pela janela, viu um princípio de fumaça saindo da turbina debaixo da asa. Sentiu logo o avião inclinar-se à esquerda, e logo endireitar-se. A fumacinha tinha desaparecido. «O piloto desligou o motor antes que pegue fogo», deduziu, enquanto lhe descia, por dentro da barriga molhada, um frio angustiado. Pelo autofalante de bordo, apenas os avisos insistentes para apertar cintos e endireitar os assentos, até que, a três minutos do pouso, o comandante informa ter havido pequena falha, já contornada, em uma das turbinas e que a aterrisagem será dentro de minutos.

Ladeado por carros de bombeiros ao longo da pista, o avião afinal desceu e parou, em local afastado dos terminais. Abriram-se as portas, inclusive as de emergência, e todos, em obediência quase muda às instruções dos tripulantes, foram evacuados pelos tobogãs infláveis, em segurança. No terminal de saída dos passageiros, Zinjian identificou, pela placa de papelão erguida com o seu nome, o representante da empresa de turismo que o esperava. O senhor Morvan, apontando para o crachá no peito, esforçando para expressar-se em inglês, deulhe as boas vindas: «serei seu guia, durante sua estada na cidade. Vejo que houve pequeno atraso. Ouvi comentários de emergência a bordo. O senhor está bem? Tiveram que sair do avião pelos tobogãs, susto, não? O avião ficou estacionado longe do terminal, por precaução e vistoria técnica, conforme nos informaram, e as bagagens estão retidas, por enquanto. Serão entregues nos endereços dados pelos passageiros, ou aqui mesmo, disseram, talvez daqui a uma ou duas horas, mais ou menos. O senhor Zinjian trouxe bagagem? Vejo que ainda está sem sapatos.»

Só agora Zinjian se dá conta de estar descalço. «Sim, maleta de mão, apenas. Teremos então que esperar pela bagagem?»  

«Como disse, eles a entregarão mais tarde, no hotel, mas, caso prefira, ocorre-me a seguinte sugestão: levo-o agora mesmo a um sítio belíssimo, não longe daqui, é um palácio-museu com muitas obras de arte, ademais de um esplêndido jardim. Deixo-o lá, pelo tempo de espera, enquanto retorno ao aeroporto para pegá-la. Iremos em seguida ao hotel. O que lhe parece?» «Mas, assim, sem sapatos?» «Justamente, nesse museu os visitantes devem retirar os calçados, é uma exigência. Explicam lá que buscam mais silêncio por conta de uma ´proposta artística`. Não entendi muito, mas vale a pena, o senhor Zinjian não se arrependerá.»

O «palácio-museu», de fato, não era longe, mas o trânsito intenso neste início de tarde na autoestrada cobrou-lhes algum tempo. Tiveram que percorrer, desde a saída da via principal, várias vielas tortuosas, típicas de um centro urbano periférico pobre e degradado, e que em nada prenunciava o destino da incursão: o empresário chinês já sentia o incômodo da demora quando, ao final de uma dessas vielas, em descida, avista, protegidos por muros de pedra, um extenso parque com árvores e jardins de mata, e, ao centro, um palacete neoclássico ligado a um bloco disforme em concreto aparente, mais abaixo. Zinjian, sem o saber, estava contagiado pelo virus, mas sem qualquer manifestação, fora uma leve tosse persistente.

«Ali está o museu», disse o guia, o senhor Morvan, a Zingian: « impressionante, não acha? O palacete, mais aquele pavilhão abrigam sobretudo obras contemporâneas e exposições, com atividades diversas. O museu é uma propriedade privada. Um grande empresário, amante das artes e dono do palacete, resolveu fazer na área, já depredada, com muitas invasões, esse centro cultural, preservando assim o local de mais degradação. Não deixe de percorrer os jardins, que congregam estilos diversos. Mas, veja que fora da área do museu, mais para baixo, aos lados e para trás, há uma ocupação urbana desordenada e bastante pobre. Um bairro muito violento, controlado pelo tráfico de drogas».

O senhor Morvan despediu-se de Zinjian à chegada, junto à bilheteria, com a promessa de retorno, com sua bagagem, dentro de duas horas: «divirta-se , estarei aqui por volta das cinco». Zinjian, ao percorrer as salas e galerias, sentiu-se cansado e com ligeira dor corporal. Percebeu que as instalações de vanguarda tratavam da temática da alternância de sons e de silêncios num permanente contraste qualitativo e quantitativo. Achou interessante: «muito musical. É justo que peçam aos visitantes para usar esses propés». Seguindo, ainda calçando os chinelos descartáveis, pelas áleas dos jardins em leve declive, maravilhou-se com a variedade de plantas e flores. Andou a esmo, admirado com as cores e o verde intenso dos arbustos, aproveitando-se das sombras das árvores, muitas delas floridas, como os flamboyants, os ipês e jacarandás roxos, que faziam, aos seus olhos, um jogo desconcertante de chiaroscuro, mais ou menos intenso conforme caminhava . Era uma réplica, agora em tintas de luz, do jogo alternante de silêncios e de sons que apreciara dentro do museu. Lá, onde as salas se mantinham em diferentes tons de penumbra, ficara atordoado em meio ao jogo sonoro. Uma zonzeira. Agora de novo a sensação de tontura, uma leve náusea benévola, como numa cadeira de balanço, parecida mesmo com a vagueza mental que experimentara no voo, antes da forte turbulência que quase derrubara o avião.

De momento a outro, sente-se perdido. Entrara numa espécie de labirinto, as paredes formadas pela vegetação entrecortam os caminhos, por mais que procure não encontra a saída. Sente-se fraco, de repente. Anda um pouco mais, vê um portão. Caída, a placa sinalizando «museu», não aponta para qualquer direção confiável. Tinha sido arrancada, parece. Ninguém à volta. Resolve abrir o portão, mesmo tendo deduzido os dizeres «saída de emergência». Meio tenso, sai e vê o portão trancar-se sob pressão da mola. Não consegue reabri-lo. Mal nota que está fora das dependências do museu, numa rua lateral.

O barulho ensurdecedor de um helicópero a baixa altura, com policiais que trocam tiros com três homens fugitivos em sua direção o assusta. Instintivamente, põe-se a correr, perde os chinelos, entra por uma rua lateral, olha atrás se os homens armados vêm na sua direção. A rua é arborizada, terá sido asfaltada há tempos, mas a cobertura está gasta, depredada, é quase uma via de terra batida. Zinjian pára, ofegante, mas, de novo, o ronco alto do rotor do helicóptero o faz retomar a corrida, desce pela rua debaixo das árvores, vê os homens armados, à distância, seguem também pela rua, sente uma fincada no pé, pisara num caco de vidro, a dor forte e o sangue que escorre pela sola do pé. Continua correndo, mesmo sem poder, vê uma casa grande, aberta, algumas pessoas, resolve entrar e pedir ajuda.

É recebido quase à bala. Homens armados o cercam, o imobilizam, revistam-no de alto a baixo, tiram-lhe o casaco, junto com carteira de dinheiro, o celular e o passaporte, seu único documento. Tenta dizer-lhes quem é, explicar algo, mas não o entendem, apenas o interpelam rudemente, na língua local. Não há como entender. Jogam-no para o canto, continuam agachados pela varanda, parece que à espreita do outro grupo de homens armados. Sente o cheiro da maconha, «parecem drogados, seriam grupos rivais, por certo traficantes», começa a raciocinar o empresário chinês, agora turista frustrado e ferido. E doente da Covid 19, sem o saber. Chamam alguém, a moça aparece, olha para seu pé ferido, volta com uma toalha com álcool e depois com gelo, amarra um lenço. Gesticulam para que ele saia dali e o fazem entender a mensagem aos empurrões. Vê que a moça lhe faz um gesto, apontando com o dedo e os olhos a direção, «siga para o lado de baixo da rua…».

Manco do pé, despojado do «blaser», do dinheiro, do celular e dos documentos, Zinjian desce a rua a esmo. Numa esquina, segue por outra rua mais movimentada, não consegue andar muito, entra num pequeno bar, tinha sede, lembrou que nada tinha comido desde cedo, antes do voo. «Deveria ter ficado no aeroporto», pensa, «almoçado por ali qualquer coisa, e esperar pela bagagem. Que ideia, desse guia, senhor Morvan, 6 de o trazer para a visita ao museu». Por sorte, tirou uma nota de 20 dólares do bolso de trás da calça, os bandidos que o revistaram não notaram o dinheiro, fora da carteira. Não consegue expressar-se, gesticula pela água e pelo alimento na vitrina sobre o balcão, um pastel de carne, que devorou sôfrego. O dono do bar fez-lhe uma careta, quando viu a nota de 20 dólares, e depois de um diálogo surdo e opaco, onde um não entendia o outro, aceitou os dólares e o despachou como a um mendigo que ocasionalmente encontrara a fortuna na nota de 20 dólares, sem dar ouvidos aos seus insistentes pedidos de «police, police!».

Não sabe o que fazer. Sente febre, com o esforço da corrida. De novo na rua, quase não consegue andar, o pé dói muito, o lenço todo coberto de sangue estancado. Adiante, segue até a pracinha, atraído pela vista, defronte, de uma estação de trem. O tempo mudou, veio uma chuva rápida, mas forte, o suficiente para refrescar momentaneamente, senão o corpo, ao menos a cabeça do viajante chinês. De novo, como durante o voo, após a turbulência, a água escorre pelo peito e se confunde com o suor da camisa, proteção frágil para o calafrio que começa a brotar da pele. «Acho que estou com febre», diz em autoconfissão, com voz entrecortada de algum soluço e bastante tosse. «Caso tivesse vindo acompanhado da mulher…, não, seria pior, ainda bem que vim sozinho, mas não sei para que lado ir, não consigo caminhar…».

Sentou-se no banco da pracinha. Terá talvez adormecido e tido esses pesadelos, que insistiam em retornar à mente como rápidas fotomontagens: «a viagem, a turbulência, os gritos dos passageiros que depois evacuam o avião em silêncio, nos tobogans, o guia Morvan, o jogo de luz e sombra nos jardins do museu, o ronco do helicóptero que desaparece no silêncio e depois retorna, mais raivoso, depois some de novo. As turbulências no voo, briga de gangues. Tudo descendo, as ruas, a vista, o avião, a visão…como pode ser?, a correria, assalto, ferimento no pé. Agora, só me restam essas fincadas de dor, esse frio febril, esse banco molhado. Vontade de urinar, garganta seca, sede».

Muita tosse. Antes de adormecer, tinha procurado, em vão, distinguir uma farmácia. Nada, só prédios velhos, casas desajeitadas, fechadas nas fachadas de grades e muros. Tem alguma dificuldade para respirar: « nunca corri tanto na vida. E essa febre, não pode ser da ferida, cortei o pé faz tão pouco…»

Acorda com as pancadas que lhe dá por todo o corpo com um velho sapato o mendigo, esbaforido, aos gritos de «saia, saia, este banco é meu, hora de deitar!». Zinjian, não o entende, mas compreendeu logo os gestos. As pancadas doíam, também. Levanta-se de um salto, tartamudeante, cede o banco ao mendigo, que logo se acomoda aos resmungos e ameaças. Com o olhar ainda turvo da sonolência, distingue um táxi, à distância. Pulando com um só pé, sai em direção ao táxi, aos gritos, «táxi, táxi». O taxi não o escuta nem o vê, desaparece na esquina. Zinjian quer chorar, mas a garganta segue seca.

«Vou até a estação de trem». Atravessa a praça com muito custo, não vê vivalma. Começa a dar-se conta de que a estação está abandonada, trilhos enferrujados, janelas com vidros quebrados, um ou  outro morcego para lhe dar as boas vindas, a ele e ao por do sol. A tepidez do inverno local contrasta com seus calafrios agora mais frequentes. Num segundo de desespero, dá um murro na parede. Mais morcegos, com o barulho, voam por baixo do telhado na plataforma da estação. Deixa-se sentar num banco, não sem antes olhar em volta, para verificar caso houvesse algum outro mendigo pretendente ao assento. Ninguém. «Aqui, pelo menos, estarei protegido da chuva», tenta raciocinar, e conclui: «vou dormir, amanhã tento achar pessoas, uma farmácia.» Recosta-se. Imagina a poltrona do avião. Tenta espreguiçar-se, volta o dor no pé, fincadas. A cabeça também lhe dói, respira quando pode entre surtos de tosse. Sente mais uma fincada de dor, mas desta vez na mão direita, apoiada na parte de baixo do banco. Retrai-se e vê a pequena aranha no espalmar da mão. Com o gesto brusco do outro braço, raspa para longe de si o inseto, que desaparece num átimo pelas fendas de madeira do chão.

A mordida da aranha lhe deixa uma dor ainda mais forte do que as dores na cabeça e no pé. Piora com o passar do tempo. As dores, e mais a tosse e o cansaço o enrijecem no banco, tenta deitar assim mesmo. Com um resto de esperança no olhar vago, segue os trilhos enferrujados, apostando na miragem da chegada de um trem. Sente, aos poucos, o entorpecimento, primeiro, da mão ferida, em seguida do braço, e mais algum tempo—terão sido horas, ou minutos?—depois, falta-lhe ar. O coração parece explodir de calor, em fibrilações descontroladas, o corpo treme, Zinjian desfalece. Só, doente, perdido e abandonado, como na tragédia operística.

Era uma aranha pequena, mas muito venenosa, requer antídoto rápido. Por aquelas bandas, essas aranhas são conhecidas como «armadeiras», pois «armam o bote». Na sequência de tantos fatos adversos, a picada do inseto foi o golpe final. E fatal. O guia Morvan, tendo perdido o contato com seu cliente chinês, notificara a polícia de seu desaparecimento, «ao que parece nas cercanias do museu, pois lá o havia deixado horas antes». Policiais encontraram o seu corpo na manhã seguinte, o sol já ia alto, graças à ajuda do mendigo que o expulsara do banco da praça e o vira seguir em direção à velha estação de trem.

FIM DO ATO I

ATO II—A caminho do Nirvana

Personagens: fantasmas incorporados de: Zinjian; Alter ego de Zinjian; o Grande Inquisidor.

 (Zinjian e seu alter ego seguem a caminho do Nirvana. Estão sentados à mesa de um bar, numa esplanada. Tomam gin tônica.)

Alter ego

–Finalmente nos encontramos. Sinto-me como se estivéssemos em uma luxuosa carruagem do século XVIII, em voo pelos céus, a caminho do Nirvana, que nem o Papai Noel entre as estrelas, no seu trenó, em descida para a terra, para entregar os presentes às crianças.

Zinjian

 –Deixe de brincadeiras, por favor. Não bastasse a minha morte assim de maneira tão trágica. Nem sei bem do que morri, se da picada da aranha, da infecção do pé, ou do vírus.

A.

–Só a morte vê a Covid-19 a olho nu. Você, por exemplo, morreu sem saber que estava com a doença. Mas convenhamos que é difícil escapar ileso desse coquetel de Covid-19, ferida no pé, e picada de inseto venenoso. Você não tinha essa empresa de produtos natalinos, e morreu, por assim dizer, em viagem de negócios, ainda que num momento de lazer? Pois aproveitemos essa viagem sob a luz do Natal, em meio a essas estrelas tão lindas.

Z.

 –Mesmo agora, depois de morto, ainda me dói essa ferida no pé. E a picada da aranha também. Não pensei em estar contaminado pelo vírus. Nunca podia pensar que uma aranhazinha tão pequena pudesse causar esse estrago todo, mas é verdade que eu estava desnorteado (toma um gole do gin tônica) Ah…, delícia! Que Lao Tsé não nos veja, a nós, assim tão relaxados, a desobedecer os preceitos de temperança. Estou feliz agora, sem tosse nem febre.

A.

 –Seu nome nos protege. Seus país deram-lhe esse nome não só em honra do grande mestre homônimo: «Zinjian» não quer dizer «tu és»? Igual à letra daquela música, verdadeiramente universal, de um compositor brasileiro, o Alfredo Vianna Filho, alcunhado Pixinguinha, dedicada a uma mulher chamada Rosa. «Tu és!, divina e graciosa, estátua majestosa…». Tu és, você é o caminho; nós, porque eu faço parte de ti, de você, nós integramos esse caminho, nós o fazemos. E estamos nele agora, à procura do Nirvana. Quem sabe esse barzinho aqui não é parte do Nirvana. Estamos muito bem com nosso gin tônica. Você devia ter tomado gin tônica antes, em sua viagem, pois dizem que o quinino é bom para proteger da doença. Antes, protegia da malária, agora, do vírus. Há mesmo uns governantes que querem enfiar, por goela abaixo, um componente do quinino, a hidroxicloroquina, em todos os infectados. Os crentes sempre compram o elixir, mesmo que os mate, por conta dos venenos que traz junto.

Z.

 –Devia mesmo ter tomado mais, se soubesse. Até que pedi um segundo drink a bordo, mas não deram. O avião já estava em descida.

A.

 –Você de fato se deu mal, heim, nessa viagem de fim de semana. Deu tudo errado. Foi culpa sua?

 Z.

 –Fui-me deixando levar, como a água do regato que desce até encontrar o lugar de repouso.

A.

 –No caso, a morte. Não carecia de exagerar…

Z.

— Não é assim nosso preceito taoista? Curioso, fui mesmo descendo, do avião para o aeroporto, da estrada para o museu, do museu para o jardim, do jardim para a rua, que descia. Agora, do caco de vidro, não tenho culpa. Tampouco de estar infectado, e sem o saber. Aliás, como, culpa? Desconheço essa ideia, você bem sabe.

A.

 –Ah, a queda do homem, foi aí que inventaram a culpa. Isso é bíblico, Adão está fora de nossas crenças, mas é verdade que buscamos o paraíso. Nós aqui, por exemplo, a caminho do Nirvana, que eu não sei pra que lado fica, se para baixo , para o lado, ou para cima. Para o lado de fora é que não, com essa pandemia do novo corona vírus.

Z.

 –Talvez o Nirvana esteja dentro de nós. Confesso que tudo me deixou meio zonzo, desde a turbulência no voo até o museu de sons estranhos, o jardim de luz e sombras e seu labirinto, o helicóptero voando baixinho com aquele barulho ensurdecedor. Não me dei conta da doença.

A.

 — Precisava de andar descalço o tempo todo?

Z.

–Eu gosto de andar descalço, mas essa ferida com o caco de vidro me derrubou. Fiquei muito assustado com tudo, fui meter-me justo num covil de assaltantes drogados. Apanhei até de mendigo, antes de aquela aranhazinha sacana dar a picada de misericórdia. (dá outro gole prazeroso no gin tônica)

A.

 –Podemos dizer que estava tudo escrito, tudo bem, nos conformamos com a nossa sorte. Mas a verdade, se me permite, é que nos estamos ocidentalizando demasiado, começamos a falar em culpa, livre arbítrio. Em vez de amarmos, de nos identificarmos com a natureza, a vemos como algo falso, fora de nós. Você, por exemplo, ganhava a vida com essa empresa de valores ocidentais, fabricando e exportando produtos natalinos. Já, já, acreditamos no Deus cristão.

(Entra o Grande Inquisidor)

Grande Inquisidor

–Com licença, boa tarde, posso juntar-me a vocês por um momento?

A.

 –Boa tarde, pois não, tenha a bondade de sentar-se. O senhor…?

G.I.

 –Sim, me apresento, sou o Grande Inquisidor. Sabem, em alguns países católicos, desenvolvemos o nosso tribunal da inquisição, para punir e condenar os ateus para a morte na fogueira.

 Z.

–Na fogueira?

G.I.

 –É, foi a forma principal de execução. Antes os suspeitos eram presos e torturados, naturalmente. Muitos, até à morte. Nem dava, muitas vezes, tempo de levar até o condenado ou a condenada à fogueira. A condenação era automática. Bem, mas isso foi sobretudo lá pelo fim da Idade Média. Éramos uma organização sólida, dando e recebendo apoio dos potentados dos Estados católicos. A inquisição não acabou, apenas se multiplica, vejam a perseguição aos judeus, um genocídio, sob a Alemanha nazista. Hoje está mais sofisticada, trabalhamos sob outras condições. Como podem ver, estou vestido à ocidental, como vocês. Se até os chineses se vestem assim…É a globalização. Agora, com a Covid-19, esse conceito terá que ser revisto. O vírus não tem ideologia, não é racista. Sequer é visível. Mas, vamos ao que me traz aqui: perdoem-me, sei que estão a caminho do Nirvana.

A.

 –Interessante conhecê-lo, senhor Grande Inquisidor. Em que podemos ajudá-lo? Sim, estamos a caminho do Nirvana.

Z.

–É, morri há pouco, imagino que o senhor Grande Inquisidor, que é bem informado, pois é «grande inquisidor», conheça as circunstâncias. Este aqui é o meu alter ego, que sobrevive às piores pandemias, parece eterno, mas está sempre a dar-me o prazer da companhia. Como se diz por aí, não desgruda.

G.I.

–Fazem muito bem, nada contra buscar o Nirvana. Notei, contudo, certas referências, na conversa de vocês, e mesmo na sua trajetória para a morte, Zinjian–é este o seu nome, correto, posso chamá-lo assim?, à suposta identidade da fé cristã, nem digo católica, com o fatalismo e a queda do homem pela culpa. Verdade que mencionam, de passagem, o livre arbítrio, mas pelo visto sem muita convicção. Acha que foi vítima da pandemia ou do acaso, ou de ambos?

A.

 –As dúvidas estão aí, senhor Grande Inquisidor. Conversávamos a respeito desses temas, mas sem a pretensão de tratá-los com a profundidade que merecem, como parte do ideário universal. Apenas discutíamos. Em torno de um gin tônica.

Z.

 –…e nem queremos ser presos por isso. Nem pela sua imaginária «inquisição». Já pensou? Só porque digo que não tive culpa do que aconteceu, que fui levado pela doença, ou me deixei levar pelos acontecimentos, agora serei condenado ao inferno? E ser antes torturado? E arder na fogueira? O senhor Grande Inquisidor há-de desculpar-nos, mas algo aí não bate.

G.I.

 — Talvez, amigos, com certeza estão cientes da destruição que causa este vírus, essa mortandade; mas, não vim até aqui para inculpá-los, quem sou eu, isso é coisa antiga, como digo. Gostaria, caso permitam, de acompanhá-los nesse gin tônica, que, neste por do sol, tem as cores do arco-iris, para nós uma representação do pecado, igualdade de gêneros, Deus nos livre. Aí vem a garconete. (pede o gin tônica; brindam). Tchin, tchin! (continua, após breve pausa) Mas você se denunciou, Zinjian, e isso me chamou a atenção, a ponto de vir até aqui falar amigavelmente com vocês.

 Z.

–Eu?!, pobre de mim, o que fiz para chamar a atenção do Grande Inquisidor?

 G.I.

–Deu um murro na parede. Lembra, lá na estação abandonada.

Z.

–Havia esquecido, não tinha mais o que fazer.

G.I.

 — Você estava entre desesperado e desnorteado, além de enfermo. Não interessa por culpa de quem, sua, da doença, do guia Morvan, que o abandonou até descobri-lo morto. Ao dar o murro, você investiu contra Deus, contra a fé, mesmo sem ser cristão, invocou até contra o fatalismo. Contra a água que cai. Tomou decisões equivocadas e no desespero ataca a divindade.

A.

–Meu caro senhor, então acredita que a decadência do homem, cristão ou não, está à prova? Veja agora, com a Covid-19, a humanidade parece incapaz de reagir.

G.I.

 –No mundo inquisitivo, do qual ainda me é dado ter algum controle, não por nada, mas porque até hoje ninguém objetou seriamente, só a incerteza dos infiéis nos agride. Ou, se quiser colocar no positivo, só a certeza dos fiéis nos consola. Há gente por aí, muito poderosa, que diz que o novo corona vírus, esse da doença Covid-19, é um vírus comunista, fabricado pela China, antro de infiéis ateus.

Z.

 –Não vejo, sinceramente, o que temos a ver com essas considerações. Não somos nem fiéis, nem infiéis. Pareceu-me curioso, quando estive em Portugal, país bastante ligado àquele em que estava quando de minha morte, ver um restaurante com o nome «Matateu». Me diga uma coisa, Grande Inquisidor, você, sendo ateu–Deus que nos guarde—iria a este restaurante? Creio que sim, talvez tivesse até inspirado o dono em dar esse nome ao lugar. Pois, eu fui sem saber o que aquilo significava. E o bacalhau esteve excelente. Voltei lá, tempos depois, e vi que haviam mudado o nome, para o bem mais sugestivo, de «Vissidarte». E nem era um restaurante italiano. Vá lá entender.

A.

–Grande Inquisidor, não leve a mal o Zinjian.

G.I.

 –Claro que não. (para si só, sussurrando) In nomine patris et filii et spiritui sancto, amen!

A.

 –O que Zinjian está querendo dizer, se me permite, como seu alter ego , é apenas que, na nossa cultura, e na nossa crença taoista, nem sempre temos o controle da situação. Ele com certeza não quis invectivar contra Deus, ou contra o destino fatalista, ao dar, em desespero, um murro na parede. Todo mundo faz algo parecido, vez por outra, certo?

G.I. (levanta-se, meio exaltado, não sem antes dar uma bicada no gin tônica que trouxeram para ele)

–Podemos dar um murro na parede ou na mesa contra o chefe que nos azucrina, ou contra os subordinados a quem queremos impor nossas ideias toscas e inverossímeis. Mas, contra a vida, contra a luz? Por favor, não coloquem no mesmo saco Deus e o destino. Vocês querem ir para o Nirvana. Tudo bem, estão no caminho. Só que esse caminho se abre entre Deus e o destino. Só vim para dizer isso para vocês. Repito, vocês estão no bom caminho. A inquisição cometeu o maior dos erros, este sim, o grande pecado, a falta, a queda das quedas: condenar o pensamento, o espírito, e impor uma falsa verdade. De quem a culpa, dos ateus? Dos falsos infiéis? Nós, da inquisição, achamos que a culpa era dos homens que pensam, dos que não têm fé. Hoje, olhem ai à volta de vocês, a vida segue, com peste ou sem peste, as pessoas querem abraçar-se.

A.

–Nisso, estamos de pleno acordo. A quarentena, por ora, impede os abraços, mas nos torna mais sensíveis ao bom e ao belo, e mais ainda ao amor. Espero que a lição permaneça, depois dela.

 G.I. –Como último desejo, confessei, antes de morrer, pois eu morri há pouco, da vez mais recente que morri, da peste: quis vir a ter com vocês, que seguem o caminho do Nirvana. Eu também dei um murro na parede do hospital, antes de falecer. Tive forças para isso. Para mais nada. Não vou resolver para vocês essa discussão sobre fatalidade e causalidade, mas queria deixar meu grão de contribuição, de uma pessoa arrependida de todas as verdades mentirosas que defendeu a dentes cerrados. Será a verdade a maior das mentiras, ou, se quiserem, será a mentira a maior das verdades? Fato é que, por ora, a verdade tende a reduzir-se à infinitésima pequenez de um vírus. (retira-se)

(A. e Z. se entreolham)

Z.

 –Você entendeu?

A.

 –Não sei. Penso que o sujeito tem boas intenções. Quis vir a ter conosco, terá sido um ato de solidariedade? Saiu quase que chorando. Para um Grande Inquisidor, que já torturou e matou, na fogueira, milhares de inocentes, quem sabe se não se encontra num processo de redenção. Coitado, tem muito pela frente, via o mundo pelo prisma dos potentados, dos poderosos, daí que não aceitou ser ele próprio contaminado pelo vírus. Deu até um murro na parede do hospital, confessou.

 Z.

–Puxa, A., você sabe tudo. E acha que o deus dele o perdoará?

A.

 –O que você pensa ele anda fazendo por cá? Falando com gente estranha, em territórios longínquos de sua fé? No curto prazo, pelo menos, negociando apoios, fazendo proselitismo, claro. Jogo político. Quer se reeleger como Grande Inquisidor. Vai que ele consegue nos convencer do livre arbítrio conforme os ditames da fé cristã, o que quer dizer livre arbítrio só se for para jogar porrinha. Será reeleito Grande Inquisidor por mais alguns séculos. Livre arbítrio, nem para decidir com quem você vai casar, quanto mais acerca de seu destino. E todos sabemos que o jogo de porrinha é viciado.

Z.

 –Tenho dúvidas, mas não a intenção de resolvê-las. Morri assim, vou procurar o Nirvana assim. Quem sabe, lá elas serão esclarecidas.

A.

–Zinjian, escute bem, o caso, seu caso, por exemplo, foi obra do fortuito mesmo, só nas mãos do caminho. O caminho determina o acaso, o que quer dizer que Deus está à margem de tudo. Deus é um marginal, não interfere. No bom sentido, no sentido universal. Secularmente, as inquisições O querem de seu lado, não passam de banais usurpadoras, não fosse a destruição imensa que causam. Como as ideologias, todas elas, que, com o apanágio da divindade ou sem ele, pregam o caminho universal. Conseguem enganar muita gente. A Covid-19 surgiu, sabe-se lá como, e toma a dianteira a essas inquisições seculares. Como essas, é um anjo da morte. Como o sim se junta ao não, será também, pela sua negação, que virá, um dia, o prenúncio da nova vida, num jogo de luz e afeto com a natureza, o desconhecido e límpido novo mundo. Não mais a competição perversa, não mais mentiras que não digam a verdade, como todas as ideologias. Enterrada a Covid-19, e com ela todas as inquisições, a humildade, a compaixão e a igualdade solidária mostrarão o caminho para o abençoado Nirvana.