Conto dedicado ao querido amigo e colega , o embaixador Luís Cláudio Villafane Gomes dos Santos, e a sua obra «Juca Paranhos, o barão do Rio Branco», lida e relida com muito prazer e aprendizado.
O tempo soprou na brisa fria, ouvi a voz que dizia,
Eu sou o Rio das Velhas, meu berço é Minas Gerais,
O rio segue, chorando a sua dor,
Recebendo tudo que vão despejando,
Vai morrendo aos poucos, assim se calando.
Meu berço é Minas Gerais,
Se não deixarem que eu corra,
Um dia eu não serei mais.
(canção do Velho Rio, o Guaicuí)
RESUMO
Em entrevista a jornalista amigo, Cristófilo, filósofo Bissau-guineense, professor e pesquisador na Fundação Gulbenkian, expõe suas teorias sobre ´a duplicidade das coisas` e a ´transferência de energias` entre os seres humanos, bem como sobre a capacidade especial de absorção dessas energias por parte de pessoas inteligentes e talentosas. Como estudo de caso, examina alguns traços da vida e obra de José Maria da Silva Paranhos Junior, o barão do Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira. Trata-se de análise crítica sobre muitas das atitudes do Barão na construção da política externa do Brasil. Essa, a contribuição de Cristófilo, como perito em cultura brasileira, a documentário que a Gulbenkian prepara sobre Rio Branco. Assim, não faltará referência nesse trabalho a posições políticas equivocadas, talvez justificadas no contexto da época em que o grande diplomata viveu, mas que informaram, o mais das vezes de forma distorcida e anacrônica, muitos dos parâmetros adotados por subsequentes formuladores e executores da diplomacia brasileira. Para singularizar o ´drama´ envolvido nesses equívocos diplomáticos, Cristófilo toma por base suas categorias filosóficas, corporificadas em duendes e fadas, transmissores de energias, mas também de equívocos. Recorre adicionalmente ao artifício de criar uma ´segunda dimensão´, onde se encontra o «marquês do Rio das Velhas», espécie de alter ego do Barão. Nessa dimensão, onde passado, presente e futuro se misturam («existe o passado fora da gramática?», se pergunta, citando Steiner), e reciprocamente se negam («tenho ojeriza do imperfeito do indicativo»), evidencia-se mais claramente o ´drama`–em verdade, tragédia–de nossa realidade diplomática atual, ainda atrelada a conceitos anacrônicos de fronteiras, disposta à destruição da Amazônia em defesa de uma soberania nacional que se esvai na chama e na fumaça das queimadas.
Pessoa extraordinária, o Cristófilo. Expatriado, lá da Guiné-Bissau. Fizemos amizade por conta do Eustáquio. Sabem, o Eustáquio, filho de Zé Taboão e Maria José, meu ex-aluno, agora bacharel em Direito, e meu amigo há tempos. Cristófilo Bantuá Medeiros, filósofo, andou por bom tempo dando aulas de língua e literatura no Brasil e em outros países que hoje conformam uma organização internacional, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a CPLP, cuja sede é em Lisboa. O Eustáquio, pobre, de família dividida, foi aluno dele na escola secundária, em Santos. Cristófilo gostou do menino , achou-o promissor, arranjou-lhe uma bolsa para estudar em Coimbra pela fundação Gulbenkian, onde é pesquisador.
Vi o Cristófilo pela primeira vez em 2015 por ocasião da tragédia que atingiu, bem a meio caminho, a região de Mariana e Santa Bárbara, em Minas Gerais, com o rompimento da Barragem do Fundão, da mineradora Samarco, controlada pelas empresas Vale e Billiton-BHP. O desastre ocorreu em 5 de novembro de 2015, não há como esquecer. Os 43 milhões de metros cúbicos de lama com rejeitos da mineração vazam, atingem primeiro o município de Bento Rodrigues e em seguida outras dezenas de municípios , provocando a morte de 19 pessoas e destruição por todo o vale do rio Doce e por mar adentro, poluindo, matando a vida e enferrujando as águas. Por incrível que pareça, os movimentos de terra gerados na ocasião fizeram aflorar uma lavra de ouro, abandonada e esquecida há mais de duzentos anos.
Em Santa Bárbara, enquanto pesquiso sobre os antecedentes dessa tragédia para matéria em meu jornal, encontro Eustáquio, que não vejo há algum tempo, desolado e aflito com a mãe gravemente enferma de febre amarela no hospital. Sentado no banco da praça, em frente à igreja matriz, amparado por um senhor negro, mas de pele por assim dizer já meio grisalha, como os cabelos. Porte digno, meio magro e sem altura definida, de olhar entre terno e assustado por trás dos leves óculos, bochechas salientes, de criança mimada. Os dentes brancos na arcada ampla, como só os africanos a têm, sorriso contido pela tristeza do momento: o Cristófilo. Magro, sim, mas a convivência revelou-o um «bom garfo», posso afiançar. Sonhador e visionário também, já verão.
O desastre de Bento Rodrigues os havia levado, como a mim, mas por outros motivos, até Santa Bárbara. A mãe, Maria José, recebera notificação do cartório de títulos da cidade de ser herdeira de antiga mina de ouro que havia reaparecido ali perto, lá pelos lados do Congo-Soco, nas cercanias de Cocais, em meio à tragédia, um verdadeiro lírio nos campos devastados de lodo e lama Alertada dessa notificação pelo amigo e ex-namorado Vicente enquanto ainda hospitalizada em São Paulo com suspeita de febre amarela, evadiram juntos para Santa Bárbara para atender ao chamado urgente do cartório da comarca, mas o estado de saúde da mãe havia piorado, com a doença.
É uma história longa, parece ficção, mas verdadeira. Merece relato à parte, decerto. O Cristófilo é assim, convive com situações extraordinárias, ele mesmo trabalha com ideias fora do comum, assustadoras às vezes. Suas teorias sobre «a duplicidade das coisas», ou sobre «a coincidência absoluta» deixam aflorar a imaginação de qualquer um.
Em outras tantas ocasiões, se vê às voltas com o tragicômico. Pois não foi assim que ocorreu quando , dando aula de português numa escola de ensino médio em Aymorés, cidadezinha antiga bem lá no vale do rio Doce, insistiu com os alunos para não usarem, nas redações escolares, o imperfeito do indicativo. Alegava que o uso desse tempo verbal «envelhece a narrativa, retira energia e a perspectiva do enunciado». «Não por nada», dizia ele aos alunos, «é um tempo verbal muito querido e usado pelas pessoas de mais idade, em busca da memória de fatos perdidos». Dava como exemplo a obra de Proust, Em Busca do Tempo Perdido, coalhada de verbos nesse tempo «imperfeito». Marcava com lápis azul—vermelho não, pois não chegava a ser um erro– os escritos dos alunos nas frases onde usavam o dito imperfeito do indicativo, com uma observação ao lado do risco: «prefira sempre o perfeito do indicativo». Comentava em classe que o perfeito do indicativo é «muito mais próximo das pessoas, mais enérgico e direto. Mais apropriado para não envelhecer a narrativa e quem a produz ».
Resultado, criou confusão na escola: alunos e pais protestaram, recebeu da diretora reprimenda «pela atitude idiossincrática, quase autocrática, e desprovida de apoio seja na gramática, seja na literatura». Como insistisse, foi parar na delegacia de polícia, «por desrespeito à autoridade escolar e às diretrizes básicas da educação em língua pátria». Quase foi preso. Não sei se nesse caso teria havido alguma discriminação, por ser Cristófilo um homem negro. Preto retinto mesmo, malgrado os traços grisalhos, da etnia dos Bantuás, gente do mato, da floresta. O sobrenome ´ Medeiros` vem do padrasto português. Podem imaginar o quanto lutou o Cristófilo, para chegar onde chegou, professor, filósofo, pesquisador na Fundação Gulbenkian! Tem um grave defeito, na minha opinião: nunca quis ser um personagem. De nenhum escritor. Eu mesmo tenho uns escritos, já lhe disse que tem todo o potencial, toda a «pinta» de um bom personagem de histórias imaginativas e e imprevisíveis. Nunca quis. Sequer admite a hipótese.
Com efeito, sempre vi Cristófilo muito firme em suas convições, quiçá exageradas aqui e acolá. A respeito do emprego do imperfeito do indicativo nas redações dos seus alunos, a resposta dele ao juiz, quando confrontado com a ação de despedimento promovida pela escola, foi: «minha objeção é quanto ao uso frequente desse tempo verbal, não se trata de uma proibição», o que lhe favoreceu tão somente, como atenuante, a pena de repreensão. Fora as críticas desabonadoras no jornal local.
Histórias do Cristófilo. São muitas. A que a seguir relato, quase em segredo, por motivos que logo entenderão, me tocou profundamente, pois mexe com nossa compreensão da realidade e do que somos feitos, matéria e anti-matéria. Tem como referência e pano de fundo um grande personagem real, da história política e diplomática brasileira, um verdadeiro homem mito, o barão do Rio Branco, patrono da nossa diplomacia. O que nos relata Cristófilo, entretanto, parece uma ficção, mas que traz junto o espelho da realidade, para quem quiser ver. Um espelho crítico, o que é da natureza do pensamento do filósofo Cristófilo, um amigo que poderia dizer da infância; e que traz junto ademais a aplicação, «um estudo de caso», como diz, das suas teorias sobre duplicidade das coisas e dos seres, da matéria e da anti-matéria.
Devo alertar estarmos diante de uma aventura de grande paralelismo com traços da vida e obra desse admirável diplomata, responsável pela conformação pacífica dos limites do Brasil, Chanceler por cerca de dez anos, de 1902 a 1912, quando faleceu. Cristófilo é muito enfático a respeito do tema das ´coincidências` («a coincidência absoluta pode ser um dos caminhos para nosso acercamento a Deus», diz ele). Assim, ao falar-me das aventuras de um tal marquês do Rio das Velhas, num país imaginário chamado Xilb-Ra, com o mesmo tecido histórico, geográfico, cultural e sócio-econômico do Brasil, Cristófilo diz referir-se à dimensão da anti-matéria, onde, na vida real, se poderiam ver coincidências entre o Marquês e esse grande herói brasileiro, talvez com conotações surrealistas, metafísicas, mesmo. Mas aí terminam as semelhanças: meras coincidências de uma história que flerta com a ficção. Para Cristófilo, os fatos e observações narrados, pelos quais assume inteira responsabilidade, beiram a realidade, tanto quanto o espelho da água, visto de cima, beira o rio. Um rio de águas pedregosas e profundas, mas turvas, ameaçadas pela descrença de quem não o conhece, e onde germinam e se escondem suas pesquisas na Gulbenkian, seus modelos teóricos . É ouvir para, quem quiser, crer.
Véspera de Natal, uma Lisboa chuvosa e cinzenta, pouca gente na rua, por conta do confinamento pela Covid-19. Havia convidado o Cristófilo para uma entrevista para o meu jornal sobre suas pesquisas na Fundação Gulbenkian, e nos reunimos em um bar-café no centro da cidade.
–Então, Cristófilo, conte-me sobre suas pesquisas recentes.
«Prepare-se», disse ele, «para uma narrativa incomum, uma tese, na verdade, que desenvolvo, sobre o comportamento de grandes personalidades, heróis ou vilões, artistas, cientistas ou políticos talentosos. A premissa é a de que são todos dotados de uma energia mental fora do comum. As pesquisas de minha equipe na Gulbenkian, em associação com equipes do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares, instituto sediado em Genebra, apontam para fenômenos, nem sempre identificados, que se comportam como reagentes químicos, ou catalizadores mentais de energias inconscientemente recebidas do espaço exterior, enfim, do Universo.
«Por conta da existência dessas energias, posso elaborar minha tese de que a morte do marquês do Rio das Velhas, homem de excelência, tal qual o barão do Rio Branco, provocou o surgimento de um círculo de seguidores, nem sempre bem informados, mas, como duendes e fadas capazes de buscarem energias dos mestres, tendo tido, por exemplo, forte presença na política externa do país Xilb-Ra que, como disse, seria algo como o Brasil numa outra dimensão, na qual viveu e morreu o velho Marquês.
«Não é de se descartar que ambos tivessem afinidades. O fato de viverem em dimensões distintas da mesma realidade, e isso é importante frisar, terá favorecido a boa receptividade de José Maria da Silva Paranhos Junior para muitas dessas energias vitais que marcaram sua genialidade e seu talento diplomático. Paralelalmente, sabemos que Paranhos Junior muito se beneficiou, para além da herança natural do nome, das lições da arte diplomática e de política dadas pelo pai, o visconde de Rio Branco, tendo-o acompanhado em missões nos países do rio da Prata, Argentina, Paraguai e Uruguai. Viu, ademais, o pai, tendo ocupado os mais altos cargos nos governos do Segundo Reinado, protegê-lo, com sua influência, em diversas circunstâncias no começo de vida profissional, seja para elegê-lo deputado por Mato Grosso, província distante, quase que noutra dimensão, que dele mereceu apenas uma única e rápida visita, seja para conseguir-lhe, junto à princesa Isabel, em momento que substituía o monarca que lhe era arredio por ter-se juntado a uma dançarina de cabaré, a importante nomeação imperial para o cargo de cônsul em Liverpool, e com ela abrindo-lhe as portas para que pudesse desenvolver seu enorme talento diplomático.
Continuou, diante de meu espanto: «Tal como a energia solar no chamado efeito estufa, que gera as mudanças climáticas de origem antropogênica, essas energias provenientes do cosmo seriam capazes, uma vez absorvidas por indivíduos ou mesmo por comunidades inteiras, de gerar mudanças de comportamento, alterando sobretudo os parâmetros mentais da racionalidade.»
«Assim, de modo geral, estariam por detrás de guerras, violações de direitos e agressões, incertezas, das tendências ao extremismo político. Tais energias seriam igualmente atuantes na formação de mentes extraordinariamente inteligentes, de gênios de toda ordem, artistas talentosos, de pessoas e sociedades altamente capazes. Ademais, a natureza aleatória dessas partículas energéticas pode gerar duplicidades, informando ao mesmo tempo a matéria e a anti-matéria»
Entendi que as pessoas talentosas, os gênios e os mais sensíveis poderiam contar, para além de suas mentes altamente desenvolvidas e da inteligência extraordinária, com quantidades excepcionais de «receptores» dessas energias em seus DNAs , diferençando-se dessa forma do comum das pessoas.
Cristófilo vai além: «Visto que essas energias se interligam, formando um verdadeiro ´campo cósmico` , podemos ser afetados , em termos ´para-éticos´ ou ´metarreligiosos´, positiva ou negativamente. Como tais energias, o que se comprovou com a teoria quântica, nos chegam à Terra em «pacotes infinitesimais», e de forma aleatória, poderiam ser capazes de provocar o fenômeno da catalização: os gênios ou os grandes talentos, dotados desses ´quanta` adicionais de energia, acabam por deixar como herança, ao falecerem, «escolas» de seguidores. Mal comparando, obviamente, seria o caso de Jesus Cristo com seus discípulos. Como ocorre com os duendes ou as fadas, que pregam peças—e nessa categoria de transmissores Cristófilo inclui o que chamamos de «influencers» nas redes sociais, seriam bastante comuns os desvios ou distorções («fake news») dos pensamentos ou propostas originais, par a o bem ou para o mal.»
Dava para reconhecer sem maiores dificuldades os pressupostos que informam o raciocínio de Cristófilo, a «duplicidade das coisas», «polaridades e coincidências».
Cristófilo ainda insistiu muito nas referências à ´teoria dos quanta`, ou ´pacotes quantificáveis de energia`. Recordou ter sido amplamente divulgado pela midia, quando, recentemente, se verificou a existência das ondas gravitacionais, previstas por Einstein em sua Teoria da Relatividade Geral, o fato de que tais ondas carregam não somente energia, mas também matéria. Citou artigos de imprensa para reafirmar que «todo o ouro existente no mundo, por exemplo, nos chegou do espaço sideral por essa via, a das ondas gravitacionais.»
Nesse ponto, veio a novidade maior :
«Na minha proposta de tese, sugiro que, nesse processo, pode dar-se uma espécie de vampirismo social. As pessoas e as comunidades perdem gradativamente a força vital, sendo ´levadas`, deixando-se influir, por pessoas ou comunidades com outros modos de pensar, num grande intercâmbio de partículas energizadas, já absorvidas de conteúdos políticos, éticos, sociais e até mesmo econômicos ou artísticos. Inevitavelmente, haveria uma tendência à polarização, decorrente dessas trocas energéticas, na presença de maior receptividade por parte das sociedades envolvidas. Até certo ponto, tais conjecturas já se confirmam com as experiências em curso na transmissão e recepção de informações por via telepática. Na maior parte dos casos, entretanto, ocorre a presença de transmissores, que chamaria, para facilidade de compreensão, de ´duendes ´`, ´gnomos` e ´fadas`.»
–Bem, Cristófilo, interessante e curiosa a sua versão do talento e da genialidade. Quanto às sugestões de formas de interação social, se bem apoiadas na física moderna, que lhes dá nova roupagem, parecem já codificadas, desde há muito, naquilo a que se costuma chamar ideologias e na forma como elas são desenvolvidas, absorvidas e praticadas pelas diferentes sociedades .
–Pois assim é, disse, nas interações ´macro`. Nas interações mais individualizadas, contudo, por exemplo no caso do barão do Rio Branco e seus seguidores na Pasta de Política Externa no Brasil, ou mesmo no caso da interação entre o marquês do Rio das Velhas e o Barão, parece difícil desconsiderar a presença de duendes e fadas, que adoram pregar peças.
Continuou, num tom de voz que parecia conter verdades óbvias: «Numa aplicação prática da teoria no campo sócio-político, estamos presenciando, nos dias que correm, tendência ao ressurgimento de grupos e líderes de direita radical em diversas partes do mundo, e uma consequente polarização das sociedades , com grave potencial de conflitos, e ameaças mesmo de envolvimento de sociedades inteiras no quadro obscurantista do autoritarismo e de regimes ditatoriais.
–Não deixa de ser uma explicação, comentei.
Confesso que não fiquei muito convencido com as reconhecidamente engenhosas associações que fazia meu amigo sobre o porque dos gênios e pessoas talentosas. Mas estava ali para ouvi-lo, e não escondia minha curiosidade dos motivos porque escolhera vincular uma pessoa de gênio e de muito talento, como o barão do Rio Branco, à figura do marquês do Rio das Velhas, uma criação ficcional (?) de anti-matéria. Ocorreu-me inclusive pensar nos parâmetros da prática religiosa do Espiritismo, de acordo com os quais, segundo imagino, sendo leigo total na matéria, quem sabe Juca Paranhos não seria a reencarnação do marquês do Rio das Velhas. Fiz-lhe esse comentário, sem muita convicção, e senti que Cristófilo preferiu ignorá-lo. Propus mais um café.
–Ótimo, nada como um bom café lisboeta. E vou pedir «com cherinho», alguma aguardentezinha para nos aquecer. Combina com essa chuva. E como faz frio, arre!, diz também com algum exagero, como se seu corpo magro conservasse sensibilidade pátria ao calor equatorial da Guiné-Bissau, a ponto de sentir mais frio do que realmente faz no momento.
A chuva bate forte na vidraça da janela junto à nossa mesa. Vem-me à memória o título de livro do Embaixador Dário de Castro Alves: «Era Lisboa e chovia», que por sua vez parafraseia Eça de Queiroz e seu personagem Fradique Mendes, e o menciono a Cristófilo.
–Tenho ojeriza, diz , ao uso frequente do imperfeito do indicativo. Mais que ojeriza, continuou ele, rejeição. Não tanto nesse caso do título do livro do Embaixador Dário, que reflete uma mistura de GPS com informe meteorológico, mas mesmo aí poderia escolher dizer, de forma mais saudável, menos saudosista: « Ano tal. Estamos em Lisboa e chove».
–Ora, Cristófilo, acaso não vê poesia nesse título? Há, por certo, o saudosismo implícito que você menciona. Conheço sua aventura em Aymorés, quase foi para a cadeia por causa dessa rejeição ao uso do imperfeito do indicativo. Original, essa!
–Pode ser poético, mas, insisto:, antecipamos nossa velhice ao usar de forma abusiva esse modo verbal . É uma forma imperfeita de falar do passado, ele comia, ele brincava, nós pulávamos, eu dormia, vocês trabalhavam, tu cantavas: como, quando, de que forma? Muito menos vago, se quer falar do passado, empregue por favor o passado perfeito: ele comeu, ele brincou, nós pulamos, eu dormi, vocês trabalharam, tu cantaste. Mesmo jovens, ficamos mais velhos, bem mais velhos, com o emprego do passado imperfeito, aliás, a expressão ´passado imperfeito` já diz tudo. Não vamos, antes da hora, assumir os saudosismos que com muita justiça preferem os mais velhos, por conta do pouco espaço que podem dedicar aos modos do presente e do futuro, e sendo incapazes de aceitar o passado como a realidade gramatical que costumamos lhe atribuir e que parece ser a única verificável. Como se pergunta meu pensador preferido, George Steiner[1], «existe o passado fora da gramática?»
–Não é fácil, Cristófilo, digerir a sua objeção a um tempo verbal determinado, por motivos de substância. Sei que muita gente não gosta, por exemplo, de usar o futuro do pretérito, ou mesmo modos subjetivos, por uma questão de informalidade ou de dificuldade de conjugação ou de expressão. Mas, logo o imperfeito do indicativo, que me parece um tempo gostoso para falar do passado? Bem, misteriosa, essa citação de Steiner…
Cristófilo sorri:– É muito provocativa. Nem todos os filósofos são tão atentos como o George Steiner. Deus o tenha, faleceu recentemente. Estamos acostumados a «ver» ou a conhecer o passado por meio de narrações, da história escrita e falada ou das imagens e lembranças da experiência. Memórias. Disso tudo, muito pouco está fora da gramática, para além do que a ciência, ou melhor dizendo, as ciências, físicas, matemáticas e espirituais, nos contam, com apoio dos historiadores.
–Cristófilo, achei fabulosa, no sentido próprio do termo, a sua ideia de introduzir duendes, gonmos e fadas num campo tão estéril como o da política externa. Quem sabe não está preparando alguma peça você mesmo, em torno do Juca Paranhos, nosso herói da diplomacia?
–Justamente, continuou Cristófilo em tom condescendentemente professoral: –Tenho a narrar-lhe fatos que vêm do passado, mas que estão aí, diante de nós, bem presentes. Não caberiam no imperfeito do indicativo. Fatos extraordinários, com certeza vinculados a essas energias cósmicas a que me refiro, creia-me. E, de súbito, num tom de voz mais alto e estridente, como que a imitar um vendedor de feira livre, declamou:
–Morreu, morreu o marquês do Rio das Velhas! Faleceu de madrugada nosso amado chanceler. Extra, extra. Notícia de última hora, alarma! Gnomos, duendes e fadas acorrem à rua Larga de São Joaquim para velar o corpo do grande Marquês, comprem esta edição de última hora da ´Voz do Povo`!, cinco tostões!
Esperou para ver minha reação. Não tardei, passado o pequeno susto—que pelo visto foi partilhado pelos clientes mais próximos à nossa mesa no bar-café, ao ouvir-lhe, sem mais, encenar, alta voz, a frase com o anúncio da morte do marquês do Rio das Velhas e a nota de alarma sobre o surgimento de duendes e fadas na rua Larga de São Joaquim, em indagar-lhe o que era aquilo.
–Não se assuste, estou a imitar o garoto vendedor do jornal «A Voz do Povo», Rio de Janeiro, mas no Brasil da outra dimensão, de nome Xilb-ra . Deixe-me situá-lo nessa cidade carioca: estamos na rua 20 de abril, antiga Travessa do Senado, onde nasce , naquela data , em 1845, o Juca Paranhos. Centro histórico. Ali estamos, agora no ano em que faleceu, 1912, no dia 10 de fevereiro. A morte do velho Marquês dá-se, como sabemos, na segunda dimensão, enquanto a do Barão se dá no mesmo dia , hora e local, mas na dimensão em que costumamos viver. Como veremos, os gnomos e duendes é que começam a transitar para a dimensão de nossa realidade, invadindo figurativamente, por assim dizer, a rua Larga de São Joaquim e assenhorando-se dos caminhos de nossa política externa desde então. Falo de duendes, mas são ´parcelas` ou ´pacotes` de energia, obviamente invisíveis, herdados de mentes geniais ou talentosas, que vagueiam no espaço e tempo e que, quando ´recebidos` , ou ´absorvidos` por mentes menos talentosas ou capazes, dão margem à distorções nas ideias e atitudes produzidas nas mentes originais.
«Essas figuras da outra dimensão aparecem aqui em contrapartida ao nosso querido José Maria da Silva Paranhos Junior, o Barão do Rio Branco, grande herói da Pátria, patrono da diplomacia do Brasil, cuja notícia do falecimento, no Itamaraty, ali na rua Larga de São Joaquim, fez parar o Rio de Janeiro, tão querido era pela população.
«Seria por acaso uma coincidência que, na sequência da morte do barão do Rio Branco, e por muitas décadas, talvez até mesmo por um século, com raras interrupções, os formuladores, pensadores e executores da política externa do Brasil buscassem apresentar e justificar suas posturas dentro do imaginário do que foi o Barão? Sim, porque Rio Branco, tanto quanto se saiba, não deixou uma doutrina, ou um cardápio do que deveria ser a política externa do país, após sua morte. É uma herança inventada, mas que foi abundantemente copiada, com as distorções e adaptações previsíveis para justificar e dar conforto político às idiossincrasias de muitos dos chanceleres que vieram ao Itamaraty após Rio Branco. Verá esse tema tratado de forma séria e profissional em livros recentes do historiador e biógrafo do Barão, o embaixador Luís Claudio Villafane Gomes dos Santos. [2] Ele, e muitos outros, se referem a esse curioso, mas compreensível, fenômeno, como ´o evangelho do Barão` . O que digo meio ´torto` aqui, lá encontrará dito ´correto`.
Fez esses comentários com visível satisfação, ar de criança que esconde o chocolate quando a mãe a indaga sobre o que tem no bolso. E continuou com a mesma expressão matreira:
–O Barão faleceu ali, na rua Larga de São Joaquim, hoje rua Marechal Floriano, na sua sala de trabalho/quarto de dormir, no palácio Itamaraty. Edificação sóbria, de fachada imponente e única, por mais de 70 anos, desde 1899, sede da chancelaria brasileira. Noutra dimensão, no mesmo dia e hora, na mesma rua, falece o maquês do Rio das Velhas, e surgem, como que por encanto, duendes e fadas, ora visíveis, ora invisíveis.
–Quanta imaginação, Cristófilo. Precisava inventar esse marquês do Rio das Velhas, para falar do Barão e justificar seu talento?
–Explico: a Gulbenkian contratou equipe para fazer um filme documentário sobre o Barão. Presto assessoria a essa equipe, como pesquisador na Fundação, de temas afins à cultura brasileira e à própria Comunidade de Países de Língua Portuguesa, a CPLP. Esta será a primeira cena do documentário. Da rua do Ouvidor, onde estamos, vamos a caminho desse casarão, um belo palacete com muita história e que se confunde com a história de nosso herói, para mostrar cenas e lugares onde o Barão vivia e trabalhava, dia e noite, culminando com a famosa foto de seu gabinete de trabalho, onde também dormia, com mesas completamente atulhadas de documentos, papéis, mapas, numa aparente grande desordem. Conforme o testemunho de funcionário que lhe servia nesse período, o «criado Salvador», não foram poucas as vezes em que encontrava, por debaixo dos papéis, latas de marmelada, abertas, o doce preferido do chanceler. Conta-se também que até um formigueiro foi descoberto debaixo de um monte de papeis.
«A caminho do Itamaraty, faremos um rápido take na rua Uruguaiana, onde ficava o famoso Alcazar Lyrique du Père Arnaud, casa boêmia frequentada por Paranhos Junior na juventude, e onde encontrou a dançarina Marie Stevens, com quem afinal veio a casar-se, em longa convivência juntos, em Paris.
–Certo, mas essa dos gnomos, duendes e fadas…
–Sabe, caro amigo, minha contribuição ao documentário é apontar o Barão numa perspectiva atual, sem descuidar de seguir uma linha crítica, como de resto tantos outros fazem. Por felicidade, minhas teorias me proporcionam o encontro com o aparentemente ficcional maquês do Rio das Velhas, uma verdadeira anti-matéria próxima do barão do Rio Branco. Isso me dá mais liberdade plástica para ver e apresentar contrastes. Ambos são rios, águas que correm.
«De mais a mais, minha contribuição leva em conta, obviamente, as teses que desenvolvo sobre receptividades e polaridades das energias do campo universal , tal como as descrevi, resumidamente, no início de nossa conversa. Nem tudo está dito sobre o Barão, amigo. Tenho por mim que essas teorias podem nos ajudar a ver melhor o barão do Rio Branco e seu legado. Essa, a perspectiva que informa a minha contribuição ao documentário que ora preparamos sobre o Barão, de acordo com um contexto cultural bem brasileiro e o legado político da época. É por conta desse legado que noto o surgimento dos duendes e companhia. São uma imagem, podia usar a imagem do Saci Pererê. E nem estou seguro se o próprio marquês do Rio da Velhas não terá tido seus momentos de duende ou gnomo, como todos temos, como aliás o próprio Juca Paranhos—na accepção aqui exposta . O Barão, José Maria da Silva Paranhos Junior, foi um iluminado, disso não temos dúvidas. Herói nacional, amado e reverenciado pelo povo e pelos governos de sua época. Propuseram até mudar as datas do carnaval por coincidirem com a data de seu falecimento. Sempre respeitado, desde então, como o negociador que acordou, definitivamente, com os países vizinhos, nossas fronteiras, de forma pacífica. Como digo, Patrono de nossa Diplomacia.
–Muito bem, Cristófilo, o Barão merece. Mas, porque duende, ele também??!
–Duendes vagueiam e carregam um potencial de inteligência. Na accepção a que me refiro aqui, podem até ´incorporar-se´ por afinidades em pessoas sensíveis, como patógenos hospedeiros. No nosso caso, muito da energia do Barão se dispersou, após sua morte, em imagens e convicções irrealistas, anacrônicas, distorcidas ou parciais da visão de mundo de José Maria da Silva Paranhos Junior, muitas dessas já ultrapassadas ou equivocadas ainda enquanto o chanceler era vivo. E aí está um grande drama. Mas, vamos aos poucos.
«Que dizer da energia do Barão para passar noites em claro em estudos sobre o tema a que se dedicou, movendo-se na vida de maneira vaga, em andanças de um lado para outro, seguindo seus instintos, cultivando prazeres em tudo o que faz, até capoeirista foi na juventude, além de mulherengo, a ponto do amigo Francisco Torres Homem apelidá-lo de ´O Barão das Moças`. Teve apenas um referencial ao mesmo tempo presente e distante na lembrança da «pátria», que adotou no lema «Ubique Patriae Memor»–e que no fundo serve como desculpa realista sobre sua identidade brasileira enquanto prefere praticar fora da pátria, de preferência no velho continente europeu, sua vida pessoal e profissional.
–E essa ideia de anunciar a morte do Barão em sintonia com a morte do Marquês?!
–Matéria e anti-matéria. Quem morreu em 1912 foi José Maria da Silva Paranhos Junior. A pessoa do Barão. Num plano vulgar, não-cósmico. Caso facilite, veja a morte do Marquês como figura de linguagem, uma antítese paradoxal, digamos, um oximoro, meio cambembe, admito.
«O que interessa é chamar a atenção para o fato futuro: o Barão, vivo ou morto, ainda em vida, e depois de morto mais ainda, começou a viver. Certamente conhece a famosa frase, tornada profecia, de Álvaro Lins, na clássica biografia do Barão: «Sim, agora, morto, é que ele começava realmente a viver». Foi `ressuscitado´, diria eu, e muitos duendes e fadas, creio que com a melhor das intenções, puseram-se a acompanhar sua forte imagem e presença diplomática, ao longo de décadas, já se pode dizer por mais de século. Vários dos chanceleres brasileiros , e não só os chanceleres, mas a maioria dos profissionais e pensadores de nossa política externa cultivam e usam, em muitos casos de forma distorcida ou para servir a suas próprias visões do mundo, a velha imagem do Barão. Aí está o drama que considero importante documentar. Vai ser a cena principal do documentário. Graças ao seu inigualável legado, dando origem ao tal ´evangelho do Barão´, que cada um de seus ´discípulos` chanceleres, tendo como mentor algum duende do Barão original, interpreta de modo pessoal, para justificar as linhas que adota em política externa. Em especial a tal mudança do ´eixo` de nossa política externa, uma mudança atribuída a um Barão atento às novas realidades internacionais, passando a privilegiar as relações com os EUA, em detrimento das relações com a Europa. Incidentalmente, o marquês do Rio das Velhas, ao que eu saiba, sempre se manteve fiel aos valores europeus, ligados à monarquia, ao colonialismo, ao mundo dos países grandes potências e ao concerto europeu, até mesmo à uma visão algo tolerante da escravatura.
Vi que havíamos passado a uma dimensão mais segura, de terra firme. Cristófilo seguiu, incansável:
–O Barão, de fato, procurou dar os ares de sua graça mais para os EUA, sem no entanto nada receber em troca. Ao contrário. Desde então, vários dos chanceleres que se seguiram, até hoje, com exceções, rezaram pelo ´evangelho do Barão`, recebendo pouco mais do que o desprezo dos norte-americanos em troca. São atitudes, melhor dizendo, energias mal direcionadas, e que contaminam, com frequência, agentes políticos e econômicos em diversos países. Cito só de passagem o caso da Argentina durante o período do presidente Menem, na década de 1990, cujo chanceler Guido di Tela praticou– em companhia do ministro da economia, Domingo Cavallo e sua proposta ultra-liberalizante, de um peso igual a um dólar–o que qualificou de ´relações carnais` com os EUA. Deu no que deu. Sabe daquele dizer inglês, ´países não têm amigos, têm interesses`. Pode-se até mesmo dizer, sem medo de errar, que o grosso da diplomacia brasileira, e de seus estudiosos e praticantes desde então, se condicionou acriticamente ao ´mito` do Barão. Isso, racionalidade às avessas, não é coisa de duendes e gnomos?
A essas alturas, eu já começava a convencer-me que sim. Mas, fiquei calado. Cristófilo dizia tudo isso com o mesmo tom professoral:
–Sejamos francos. A história da política externa brasileira está repleta de duendes do Barão, promovendo a interpretação distorcida ou equivocada do pensamento do nosso herói, acredite. O Barão, como todo ser humano, cometeu equívocos. Poderia discorrer mais sobre isso, mas a reinterpretação da história não está entre os objetivos do documentário que ajudo a preparar. Apenas mais um comentário a respeito da reconhecida expectativa do Barão, sempre frustrada, em contar com os EUA para distinguir ao Brasil posição de destaque, quem sabe admitindo-o no seio das potências principais no concerto das Nações. É o seguinte: ao movimento de Rio Branco em direção aos EUA, correspondia sua atitude de alheamento aos países, diria, ´mais fracos`, ou, ´menos organizados`. Hoje diríamos ´países menos desenvolvidos`, sobretudo aos demais latino-americanos, à exceção, com alguma condescendência, para Argentina, Chile e Mexico. Vou sugerir uma cena, talvez a mais longa do documentário, sobre essa postura de Rio Branco, pois se trata de uma atitude aplicável quase que a toda a temática de política externa com a qual ele se defrontou ao longo da vida.
« A história, em seu fluxo inexorável, há de ter em conta as atitudes e posições esdrúxulas de muitos dos chanceleres que se seguiram a Rio Branco, que buscaram respaldo e justificativa no pensamento e na obra do Barão. Nem todos, claro: a chamada ´Política Externa Independente`, de San Tiago Dantas, à época do presidente Jânio Quadros, é exemplo importante das exceções à regra. Vamos ser objetivos. apesar das limitações, conseguiu proezas extraordinárias, foi um diplomata excepcional, sob todos os aspectos. Mas foi um homem do seu tempo, e mais bem inclinado aos valores conservadores do passado monárquico. O que conseguiu, contudo, é permanente: o estabelecimento pacífico e definitivo dos limites do Brasil. Agora, deixou questões outras em aberto, por exemplo, o relacionamento com os EUA, mas sua mensagem era bastante conservadora.
«Em suma, uma visão de relações privilegiadas no eixo sul-norte, em detrimento de relações no eixo horizontal, sul-sul. Desde o Barão, não vemos outra coisa, salvo algumas poucas exceçºoes, como a já citada ´Politica Externa Independente`, de San Tiago Dantas. A própria gestão Lula-Celso Amorim não foi lá tão distinta dessa postura do Barão, certo que com a intermediação de alguns duendes, ao tentar ver o Brasil entre as potências com assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. O mesmos podendo ser dito da centralização dos esforços de negociações internacionais de comércio no acesso a mercados (dos países do norte, claro, são os que estão fechados) em agricultura. Enquanto isso, nossa indústria, nosso desenvolvimento tecnológico, nossa saúde , nossa educação, e nossa indústria de serviços indo para o brejo. No governo Bolsonaro, o paroxismo é ainda muito maior, privilegiando-se não exatamente o eixo sul-norte, mas a identidade com o trumpismo e a ultra-direita radical incrustada em alguns pólos antissociais do norte.
«Em coerência com a disposição de associação, mesmo sem reciprocidade, aos EUA, o Barão era completamente avesso à formação de frentes comuns no continente contra as potências maiores, pois via o Brasil em posição superior. Basta referir a posição de Rio Branco, contrária aos demais países latino-americanos, e não foi a única vez, com relação à chamada ´doutrina Drago`, tomada do nome do chanceler argentino que defendia , justamente, uma frente comum contra as grande potências, inclusive EUA, que, à época, se sentiam no direito de cobrar pelas armas as dívidas externas dos nossos vizinhos.
–De fato, Cristófilo. Vejo que trouxe este livro extraordinário sobre o Barão, do historiador e diplomata brasileiro, com uma visão crítica e atualizada de sua biografia e que com certeza está na base de nosso diálogo. Também eu li o livro e, a respeito do que acaba de dizer, lembro-me, dentre as frases marcantes que guardei de memória, há esta, acerca da visão de Rio Branco sobre as relações do Brasil com os EUA. Creio que diz algo assim: ´na verdade, a política de Rio Branco para os Estados Unidos pode ser avaliada como um relativo fracasso, ao menos em relação a sua ilusão de ver o Brasil reconhecido e tratado por Washington como um aliado a ser consultado e considerado na elaboração e execução de suas próprias políticas` [3]
O filósofo continuou, depois de um gole em seu café com «cheirinho»:
–Como digo, pode-se indagar sobre semelhanças com a postura, bastante avassalada, do governo do presidente Bolsonaro perante os EUA de Trump. Não será por acaso. Quem salvou o Barão de se expor publicamente a esse equívoco de percepção quanto aos EUA nas suas relações com o Brasil foi Rui Barbosa. Em Haia, em 1907, na II Conferência Internacional de Paz, Rui, chefe de nossa delegação, defendeu, com êxito, o princípio, até então virtualmente ignorado pelas grandes potências, da igualdade dos Estados. Originalmente, diante da proposta discriminatória dos EUA para a criação de um tribunal permanente de arbitragem, composto por 17 países de ´primeira classe`, nomeadamente as principais potências da época, e de recurso compulsório por todos os países em suas disputas. O Brasil não constava dessa lista. A óbvia situação de país periférico não combinava, e nunca combinou, com a percepção do Barão, de um Brasil poderoso, rico, militarmente forte, civilizado, organizado e politicamente estável, bem plantado nas suas raízes europeias, e identificado com o conservadorismo monárquico, onde escravatura e colonialismo se integram naturalmente. Enfim, como digo, um homem de sua época, mas que vê o presente e o futuro republicanos com olhos do passado. Algo de sobrenatural, convenhamos, por se sentir assim tão capaz de mexer com o tempo, passado, presente e futuro. Previsivelmente, no que toca à Conferência de Haia, Rio Branco insistirá, não em fórmulas de composição do tribunal menos discriminatórias, mas na inclusão do Brasil entre esses países da ´primeira classe`. A posição de Rui, em favor do princípio da igualdade dos Estados, repercutiu na conferência, tendo o projeto norte-americano sido retirado da agenda. Rui retornou ao Rio com as glórias do ´Águia de Haia`, agora recebido com todo o apreço por Rio Branco e pelo presidente Afonso Pena.
E concluiu:
–Assim, o Barão do Rio Branco conservará e cultivará junto dele, no futuro presente e passado, desde que morreu, duendes herdados do marquês do Rio das Velhas, o mesmo que o acompanhou no outro passado, durante a vida. Ou não era? Não temos que seguir aqui, ao pé da letra, a afirmação de Steiner, a respeito de existir ou não o passado fora da gramática
–Cristófilo, e como pensa em desenvolver esse documentário, com relação ao verdadeiro Rio Branco e a sua herança de um grupo de seguidores que se acompanham com duendes que ajudam a forjar imagens suspeitas? Nesse contexto de duas dimensões, fica até complicado qualificá-lo. Foi um ser humano e profissional benigno, excepcional diplomata, claro, grande homem público, emotivo, egoísta, prepotente, instigador, visionário, justificador, «bon vivant», político, grande estudioso da história do Brasil e da geografia, negociador arguto, dissimulador, por vezes equivocado?
–Tudo isso. Por vezes, grandemente equivocado. O passado do Barão, suas extraordinárias realizações, são continuamente revividos, analisados e enaltecidos, com muita justiça. Vamos dedicar alguns «takes» aos episódios de sua vida profissional, são conhecidos, mas nunca é demais apreciá-los, pelo seu imenso valor, sem dúvida uma lição de vida política e de diplomacia. Mas sejamos racionalmente críticos. O Barão terá se aproximado da república por interesses próprios—tendência apreciável em muitos momentos diplomáticos no Itamaraty subsequente ao Barão– , e foi na república que se consolidou como herói nacional. Mas nunca deixou de lado sua vocação, sua identidade de conservador, ´saquarema`– tendência apreciável, também , com as devidas adaptações, no Itamaraty subsequente–, ligada ao império e à monarquia que, de mais a mais, acedeu, depois de muito esforço seu e sobretudo de seu pai, em colocá-lo na carreira diplomática, primeiro como cônsul em Liverpool. Fez fortuna em Liverpool. Passou, nessa cidade cinzenta e triste, no entanto, talvez pouco mais da metade dos 19 anos em que esteve lotado no consulado, vivendo o resto do tempo, boa parte dele, em Paris, onde fixara residência para mulher e filhos, em licenças. Muitas delas não oficiais, simplesmente acobertadas pelo amigo, o barão de Penedo, ministro plenipotenciário, chefe da legação em Londres, a quem se subordinava administrativamente Paranhos. Claro que em períodos de ausência de Liverpool, estivera também em missões oficiais, entre elas, por dois anos em Nova York e Washington, por conta da questão ´de Palmas` com a Argentina, submetida a arbitragem do presidente Cleveland. O Itamaraty, desde então, carrega muito dessa herança, desses acertos entre amigos, de administrações personalizadas. Zumbis do Barão por todo lado, caro amigo.
–Nada de imperfeito do indicativo, nada de passado fora da gramática?
–Quando Steiner fala de «gramática», creio que ele quer significar «crítica». Então, podemos dizer, não há passado fora da crítica. Já lhe descrevi, resumidamente, a base teórica que informa essa minha proposta, no fundo, uma tese. Se não científica, e a base teórica pode levar por esse lado, ao menos uma tese cultural. Cultural e dramática. Efetivamente, há drama em toda essa história do Barão e os zumbis herdados do Marquês. Esse drama, quiçá impossível de ele imaginar em vida, acompanha e ilustra a nossa história diplomática desde a sua morte, em 1912. Do que ele, Rio Branco, quase não terá culpa.
–Drama?
–Muitos dramas, e um em particular muito prejudicial ao Brasil e à sua política externa.
–Essa não, Cristófilo, justo o Barão, o mito de nossa diplomacia, o herói nacional que conquistou pacificamente largas porções de nosso território, no sul, no norte e a oeste, por meio de negociações e de memoriais e defesas, sempre impecavelmente bem fundamentados, de nossas posições quando o Brasil se submeteu ao recurso da arbitragem internacional? E qual é esse drama muito prejudicial à nossa política externa?
–Calma, em primeiro lugar, é preciso que se diga e repita que o Barão foi um homem do seu tempo. Via o mundo conforme os valores e a realidade política e social, talvez mais até do que a realidade econômica, do período de sua vida profissional, último quarto do século XIX e primeiros anos do século XX. Tinha apreço preponderante pelos valores monárquicos, nos quais soube viver e fazer sua carreira profissional. Mas, mesmo depois, quando soube aproximar-se do regime republicano no Brasil, ainda que com relutância e majoritariamente por interesses de sobrevivência política, ateve-se a princípios de um mundo estático, benevolente com o colonialismo, a escravidão, com a preponderância das grandes potencias no concerto das nações—nesse último caso frustrando-se por não conseguir fazer o Brasil ser reconhecido nesse concerto das potências, ignorando nossas evidentes fragilidades. Em sua vida de chanceler, gastou muito dinheiro público por conta disso, defendeu a renovação da armada para fazer do Brasil uma ´grande potência`, ocasião em que, verdade que por proposta da Marinha, se adquiriram na Inglaterra os famosos encouraçados dreadnoughts ´Minas Gerais`e ´São Paulo`, promoveu no Rio de Janeiro a III Conferência Panamericana, recebeu diversos potentados com toda a pompa. E, claro, com notável eficiência, negociou diversos acordos com os vizinhos, resolvendo, por ação bilateral ou por meio da arbitragem, praticamente todas as questões de limites (exceto justamente aquela em que o recurso à arbitragem nos desfavoreceu, o diferendo com o Reino Unido, sobre a fronteira com a Guiana inglesa, e cuja defesa da posição brasileira esteve a cargo do amigo Joaquim Nabuco), inclusive com a França, por conta da Guiana Francesa, neste caso por arbitragem do Presidente do Conselho Federal Suíço. Pagou preço alto ao governo boliviano, 2 milhões de libras esterlinas (algumas centenas de milhões de dólares a preços de hoje), o que não seria nada pelo valor de toda essa área), fora a indenização ao Bolivian Syndicate dos norte-americanos, mais a custosa construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, onde mihares de trabalhadores pereceram de doenças, e, pode-se imaginar, sabe-se lá quanto `por fora`, aos agentes bolivianos, pela aquisição do território que é hoje o Estado do Acre.
E continuou, quase sem fôlego:–Disso sabemos todos, e pelos seus feitos na delimitação definitiva do Brasil, o Barão tem e terá sempre a gratidão dos brasileiros. Mas o Barão, e aí está o drama maior que herdamos dele até hoje, sempre foi um homem que via as fronteiras como linhas, limites, que delimitam, separam o território nacional dos territórios dos demais países vizinhos. Sem dúvida, com seu portentoso trabalho diplomático, obteve para o Brasil vastas porções de territórios, algo em torno de uns 700 mil qulômetros quadrados, área somada de alguns países europeus. Em sua época, estávamos longe dos temas globais, como por exemplo o meio ambiente. Nem mesmo o regionalismo, tal como se desenvolveu muitas décadas depois, era concebível, fora fenômenos isolados e de natureza bem primitiva, conceitualmente falando.
–Perdão, Cristófilo, mas não consigo ver onde está o drama de que fala.
–Podia o Barão prever, no início do século XX, que ao final do século e começo do seguinte estaríamos nós mesmos, povo e governo brasileiros, destruindo a Amazônia, dizendo que dela temos a soberania e nela fazemos o que queremos? A noção preponderante de relações internacionais dizia respeito às relações de um pais com os demais, em especial com as grandes potências, e os vizinhos. O resto do mundo não contava, na maior parte formada por colônias, propriedades das metróples. O Barão, de sua parte, via apenas as linhas, por onde deviam estabelecer-se os limites, sejam rios, montanhas, linhas geodésicas. Não só ele, todos os que, à época, se ocupavam do tema das fronteiras, do ponto de vista da geografia , da história e da política, no velho ou no novo continente, entendiam o conceito de fronteiras apenas sob o prisma de limites, das linhas divisórias. As regiões envolvidas em cada questão fronteiriça sequer eram objeto de consideração. Exceção talvez para dois casos: o do condomínio Brasil-Uruguai sobre a Lagoa Mirim e o rio Jaguarão; e o caso do Acre, onde a presença da população de seringueiros brasileiros em território até então oficialmente reconhecido como boliviano pelo Brasil terá sido a causa primeira da sequência de atritos na origem da disputa. Sintomaticamente, Rio Branco de início relutou em envolver-se nesse diferendo com a Bolívia. Em seguida, não só assumiu a liderança na condução do caso, em meio à repercussão em amplo debate público, como sabiamente procurou negociar em separado com a Bolívia e com o Peru, este na verdade o país com reinvindicações mais significativas na região, já que a Bolívia defendia sobretudo o que já era reconhecidamente território seu.
« Com efeito, não foram essas questões apenas de linhas ou limites, mas questões fronteiriças regionais. Sabemos que foi preciso mais de meio século para que o conceito de região, quase que por oposição ao conceito de limites, fosse incorporado à noção de fronteiras, gradativamente, pela Comunidade Econômica Europeia e pela sucessora, a União Europeia. Os limites de cada país são sagrados e consagrados pelo Direito Internacional. Não há discussão a respeito. Outra coisa é ver as regiões fronteiriças sob um prisma mais amplo, mas isso não é coisa para o tempo do Barão. Ainda hoje, a tendência, sobretudo entre nós, é a de ver as fronteiras como zonas marginais, periféricas, com atividades irregulares, muitas delas de natureza negativa, como contrabando, imigração ilegal, etc. Nada mais anacrónico e equivocado.
–De fato, Cristófilo, o Barão não podia prever ou antever essa evolução em seu tema predileto. Daí a ser um drama…
–Drama enorme, do qual ele evidentemente não tem culpa, não era um tema de seu tempo, repito. Mas é um drama que hoje se revela claramente, até mesmo na depredação ambiental na Amazônia, em curso desde há muitos anos: de um lado, com a evolução natural dos conceitos de soberania, para abrigar, sem perda de suas características básicas, as noções de integração regional , cooperação transfronteiriça, e integração entre Estados ou até mesmo continental; de outro, com a cada vez maior presença, na agenda internacional, de temas transnacionais, temas que ultrapassam as fronteiras, mas que podem e devem conviver e ser compatíveis com o pleno reconhecimento e respeito aos limites ou linhas que separam soberanias, como a mudança do clima e o aquecimento global, direitos humanos, meio ambiente, recursos hídricos, energéticos, movimentos migratórios, e muitos outros.
«Até mesmo o princípio, consagrado em relações internacionais, e que se vincula diretamente aos conceitos de limites e de fronteiras, a saber, o de não ingerência em assuntos internos de outros países, princípio caro ao Barão e basilar do Direito Internacional , sempre cultivado e defendido pelo Brasil, até mesmo constitucionalmente, diga-se de passagem, está sendo objeto de distorções graves por práticas no atual governo brasileiro com relação a vários vizinhos, não só a Venezuela. No caso desse princípio, é uma distorção ´à l´inverse`, mas igualmente dramática, ao não reconhecer a perfeita compatibilidade jurídica, ou seja, a compatibilidade da fronteira, como região e a linha de limites, como definidora do alcance territorial da soberania. Nenhuma das tentativas contemporâneas, no âmbito multilateral, de qualificar esse princípio, por exemplo, com a noção do chamado ´right to protect` -R2P, levou, como não poderia levar, a lado algum.
«Sintomaticamente, o Barão sempre esteve avesso a iniciativas de formação de blocos regionais ou coisas do gênero. Muitos, não todos, de seus epígonos lhe atribuíram, com os equívocos compreensíveis, a iniciativa ou o favorecimento da proposta, nunca concretizada, da criação do bloco ABC-.Argentina, Brasil e Chile, não tendo tal ideia sequer passado pela mente de Rio Branco, que não via nas relações com os vizinhos mais bem postos, digamos assim, senão um potencial de consultas para evitar conflitos regionais. Isto, no máximo, pois o contexto regional vivenciado nas concepções do Barão era mais bem o de rivalidades, até em nível pessoal, como foram os conhecidos desentendimentos entre Rio Branco e o historiador e chanceler argentino Estanislao Zeballos. Muito menos teria Paranhos uma visão de integração ou de cooperação dos espaços fronteiriços. Predominava, à sua época, a necessidade de definição das linhas fronteiriças, das linhas limítrofes do território e da soberania nacional de cada país, visão por certo tradicional, e pela qual lhe somos todos os brasileiros reconhecidos, pois nos deu esse Brasil de hoje, com limites definidos, com fronteiras definidas pacificamente. É de ver, apenas como menção à parte, que os limites, tal como os tratou o Barão, e tal como vemos o conceito ainda hoje, e que está consolidado no Direito Internacional, curiosamente pouco ou nada tem a ver com o conceito original, o lins do império romano, muito mais ligado, como bem sabe, à noção de espaços limítrofes, porém abertos e interativos. Mas, isto é outra história que não cabe aqui. Rio Branco foi, não custa nunca repetir, um iluminado, um sábio pelas estudos e pela compreensão, quem sabe, única e isolada, do mundo que o envolvia. Definitivamente, um solitário.
–Interessante ver você descrever o Barão como um diplomata individualista, que acredita mais na luta solitária, e que sequer reconhece o trabalho em equipe,…
–meio egoísta até, como foi o caso, para citar um exemplo de muitos, da bem sucedida defesa da posição brasileira na chamada Questão de Palmas, na arbitragem pelo presidente Cleveland , dos EUA, em que o Barão reivindicou apenas para si e seu trabalho individual, em detrimento da equipe de diplomatas e assessores que o auxiliaram, os méritos da causa ganha. Paranhos teve atitude parecida ao não reconhecer o importante trabalho de Emilio Goeldi, naturalista suíço à época diretor do Museu Paraense, convocado por ele para, incógnito, influir junto aos assessores do Conselho Federal Suíço na avaliação da exposição brasileira à arbitragem dos suíços no diferendo sobre a fronteira com a Guiana francesa.
–… atitude que projeta indistintamente para o plano da política externa, em que pese a existência de alguns opositores dentro do governo e do Congresso, como o senador Pinheiro Machado, ou mesmo o senador Rui Barbosa e o deputado Barbosa Lima. Fizeram-lhe oposição forte em muitas ocasiões, por exemplo aquando dos debates sobre a provação do Tratado de Petrópolis com a Bolívia. Mas me deixa curioso, Cristófilo, a sua proposta de que, para realizar todas suas extraordinárias façanhas, Rio Branco foi dotado de energias especiais, um talento fora do comum, que lhe dava forças para agir sozinho, a tal ponto que era amparado, quem sabe noutra dimensão, esta dimensão ficcional na qual você trabalha, pelo amigo, que você chama de marquês do Rio das Velhas e seus duendes.
–Longe de ignoramos o tema do Barão solitário, que prevejo uma das cenas finais do documentário. Apesar das amizades, algumas muito importantes e que lhe protegeram e abriram o caminho nas venturas e aventuras diplomáticas, Rio Branco vivia e agia solitariamente. Fora da vida familiar, dos convescotes com amigos e dos banquetes, fazia muitas de suas refeições a sós, sempre a desoras, sempre possivelmente sob a inspiração ficcional do nosso marquês do Rio das Velhas.
«Ainda a respeito da noção de regiões fronteiriças como regiões propícias para a integração e para a cooperação, devo dizer que, na medida em que se insiste, na gestão pública, em continuar a ver a fronteira apenas como uma linha divisória, instalando até mesmo muros físicos, como quis Trump na fronteira com o México, ou como fizeram os governantes israelenses Sharon e Nethanyahu com os palestinos, atacamos frontalmente a vida e o ser humano, bem como o direito das sociedades de se desenvolverem com liberdade. Tudo isso porque os duendes «herdeiros» do Barão, e do Marquês mantiveram-se, acriticamente, seguidores de seus mestres, fazendo das suas por aí.
«Até hoje, por exemplo, a diplomacia brasileira mantêm a mesma visão de fronteira que informou a ação diplomática de Rio Branco. Talvez com algum ajuste aqui e acolá, algumas poucas iniciativas ligadas ao Mercosul ou a uma ou outra iniciativa de cooperação regional ou bilateral. Vivemos esse drama do isolamento de nossos vizinhos, quando podíamos, há muito tempo, estar trabalhando juntos. Uma lástima. Não digo mais, faça apenas uma comparação, faça uma foto—antes se dizia ´tire uma fotografia`–do mapa do Brasil em 1910, com praticamente todos os limites fronteiriços definidos como os vemos até hoje, e o Brasil de agora, com a ocupação desordenada da Amazônia, queimadas, desmatamentos, povos indígenas escorridos de suas terras. Mais, os duendes do marquês do Rio das Velhas deixaram marcas muito distorcidas do que seriam as linhas mestras imaginárias do Barão em matéria de política externa. Os epígonos de Rio Branco deram voltas mirabolantes, inclusive o namoro com o nazismo de Hitler, se bem que aí mais por conta de contaminações ideológicas estranhas, lembra de que lhe falei sobre a aleatoriedade dos ‘pacotes energéticos`? Distroções que não mais acabam, já mencionei os governos do PT. Pior em seguida, já que, no atual governo Bolsonaro, propõe-se a vassalagem, combinada com o negacionismo científico, econômico, político e social, e o incentivo à destruição. As fronteiras, os limites, e o Barão que se cuidem. Agora, com o chanceler bolsonarista, o Brasil se vangloria de ter-se tornado «pária» internacional.
Eu estava fascinado e, confesso, algo confuso com as considerações e revelações do Cristófilo. Enquanto pensava no título a ser dado à entrevista, talvez algo como:
«Rio Branco e o Itamaraty hoje: uma gramática sem nexo»
Pensei em como seriam recebidas pela equipe do documentário as propostas do Cristófilo, talvez intelectualizadas em demasia, em que pese o bem-vindo tom crítico. Concluí que seriam merecedoras de crédito, não sei se pelo inusitado da forma, com essa história dos zumbis e dos pacotes de energia cósmica, ou pelo lado inovador da justaposição em contraponto da visão do mundo do Barão com a temática que o mundo hoje se apresenta aos olhos de nossa diplomacia. A ponto de o atual governo torná-la cega. Talvez a síntese pudesse ser encontrada, como sempre, na origem de nossa conversa, quando Cristófilo foi buscar no personagem fictício (?) do marquês do Rio das Velhas sua argumentação sobre quão variável é a dimensão de nossa existência. Não só no Marquês, mas no próprio Velho Rio: como o Rio Branco para a diplomacia brasileira, o rio das Velhas gerou, lá na Vila Rica de Ouro Preto, onde nasce, águas límpidas, que, ao longo de sua extensão de mais de 800 km. até desembocar no rio São Francisco–mais um idoso, o ´Velho Chico–, outros beberam, mas não souberam aproveitar sua frescura, e delas se apropriaram equivocadamente, como zumbis que se arrogam o direito de lançar poluentes, detritos, turvando a imagem clara do rio em sua origem, quiçá condenando-o à morte. Uma morte já anunciada pelo atual governo Bolsonaro.
O rio segue, chorando a sua dor,
Recebendo tudo que vão despejando,
Vai morrendo aos poucos, assim se calando.
Meu berço é Minas Gerais,
Se não deixarem que eu corra,
Um dia eu não serei mais.
Já era noite e chovia menos. Famintos, Cristófilo e eu rumamos para o Ramiro, não longe de onde estávamos. Entre uma sapateira e os sempre excelentes camarões da costa de Cascais grelhados ao sal, Cristófilo e eu discutimos mais alguns pontos de sua exposição, notadamente a composição das cenas do documentário sobre Rio Branco, sem maiores novidades. Falamos entretanto do amor e respeito que o Barão, ele mesmo jornalista, nutria pela imprensa, que soube instrumentalizar tão bem, ao longo de toda sua vida diplomática, mesmo que, por vezes, às custas do dinheiro público, não havendo, à época, maiores distinções entre a república e a ação dos homens potentados que a dirigiam sem contas estritas a prestar.
No dia seguinte, na redação do jornal, pedi a um jornalista que me assessora, o Antônio Gadelha, também ele dado às filosofias, rapaz de uma inteligência marcante, para preparar uma minuta da entrevista, com base em minhas anotações da conversa com o Cristófilo. Fiquei muito contente com o que fez. Mandei a minuta por email para o Cristófilo, apenas por honra da firma, já que ele me havia dado carta branca para publicar o que bem eu entendesse. Esses filósofos,,,
Enfim, a entrevista, tal como lida na minuta do Antônio, foi publicada e, pelo que sei, muito apreciada. O título, porém, com que foi finalmente circulada era mais objetivo do que eu havia imaginado. É o tal poder de síntese jornalística, graças ao meu brilhante assessor:
«FILÓSOFO FALA DE DUENDES DE RIO BRANCO, E VÊ O ESFACELAMENTO ATUAL DA POLíTICA EXTERNA DO BRASIL
Considerado o maior dos filósofos contemporâneos da Comunidade-CPLP, o Bissau-guineense Cristófilo Bantuá de Medeiros vê conservadorismo anacrônico em muitas instâncias da política externa do Brasil, ao longo do século passado e mesmo deste século. O que se verifica, diz Cristófilo, é que diante da compulsiva, e muitas vezes controvertida, presença da «herança» do grande herói da diplomacia brasileira, o barão do Rio Branco, a evolução e a atualização de conceitos fundamentais no plano internacional ficam prejudicadas. Assinala, contudo, que a coerência intrínseca da diplomacia brasileira somente foi rompida no atual governo do presidente Bolsonaro, que rejeita conformar-se aos princípios basilares da convivência entre as nações e vê como uma conquista a degradação do Brasil a uma posição de «pária» internacional. Veja a seguir a entrevista concedida ao nosso editor Américo Stefan.»
Fim
[1]« Does the Past have any existence outside grammar?», George Steiner, After Babel, OUP, 1977, p.132
[2] Autor cuja obra–O dia em que adiaram o Carnaval: Política externa e a construção do Brasil, (Ed. Unesp, 2010); O evangelho do Barão: Rio Branco e a identidade brasileira, Ed. Unesp, 2012); e em especial Juca Paranhos, o barão do Rio Branco ( Companhia das Letras, 2018),) tomo por referência descompromissada neste conto, que, não será demasiado insistir, é de natureza ficcional. A responsabilidade pela narrativa e seu teor é exclusivamente minha.
[3] Luís Cláudio Villafane G. Santos, Juca Paranhos, o barão do Rio Branco, op.cit, p.505.