Contos

NATAL AMARELO (CONTO EM TRÊS PARTES)

DA SÉRIE:
Chuva na Cuia Funda, Natal Amarelo e Outras Histórias
(Santas e Bárbaras)

NATAL AMARELO: PARTE I

Fanfarronice! Palhaçada! Isso mesmo, tudo no mundo não passa de uma grande burla, diz Falstaff.  Maria José Alves deixa-se levar pela reflexão, recostada na cama do quarto no Hotel Quadrado, em Santa Bárbara, em Minas Gerais, uma das muitas cidades do chamado Quadrilátero Ferrífero, e cuja prosperidade relativa se deve à mineração. Outrora de ouro, agora de ferro. Pensará talvez em outros termos, menos sofisticados. Falstaff ainda não a alcança. Mas, é o que lhe vem à cabeça, e como boa mineira, matuta: palhaçada, ou ao menos uma brincadeira de mau gosto. Vai mesmo herdar uma mina de ouro? Ainda convalesce da febre amarela que a acometeu, felizmente de forma benigna. Uma loucura, sair do hospital em São Paulo, logo antes de ter alta. Fugiram, isso é o que é. Ela, logo com o ex-namorado Vicente. Para ele, tudo isso é verdade, temos que sair agora do hospital, ir ao cartório nessa cidade, Santa Bárbara, para tentar fazer o registro  a tempo. Registrar o ato notarial  de «interesse» . Você é herdeira, lembrou, o cartório deu prazo, que vence em dias, para você se apresentar e garantir a posse e exploração da mina, chamada de Itajuru. Havia guardado na bolsa a notificação do cartório, mês passado, recebida após o falecimento do pai, quando foi ver a mãe viúva. À época, leu o documento e não deu importância, não pode ser coisa séria. Além do mais, na condição enferma, tratar de papéis, com certeza contas, cobranças?

Sim, estivera enferma. Contraíra a doença durante a estada na casa dos pais em Aymorés, região no vale do Rio Doce infestada pelo mosquito Aedes, em seguida levada às pressas para São Paulo, depois de passar pelo posto de saúde local, onde a longa fila para vacinação compete em desespero com outra, homens, mulheres e crianças com sintomas da febre, em busca de atenção médica. Vicente, ao visitá-la no hospital, dá por acaso com o documento no chão, caído de sua bolsa. Ao lê-lo, vê que o juiz da Vara Cívil da Comarca de Santa Bárbara estabelece para dali a poucos dias, fim do mês e do ano, o prazo, final e irrevogável, para manifestar judicialmente o tal «interesse» na mina .

Havida há bem mais de século e meio como soterrada e desativada, a mina foi literalmente aflorada pelos maciços movimentos de terra e lama gerados pelo recente e trágico rompimento das barragens de dejetos de minério na região de Bento Rodrigues, divisa dos distritos de Mariana e de Santa Bárbara. Requisitado o título de concessão sobre a mina, por interesse de uma empresa mineradora, a  Sociedade Nacional de Lavras e Mineração Ltda—SONALAM, concorrente com as mesmíssimas empresas mineradoras responsáveis por essa grande tragédia: a SAMARCO, subsidiária da Cia VALE, e a anglo-australiana BHP, foi apenas encontrada, no cartório de Santa Bárbara, a relação pré-escritural da concessão original, por título de sesmaria, ainda nos tempos coloniais, por D. João VI, a um certo João Teixeira Alves, qualificado à margem do documento como rico proprietário português instalado na região. Examinada a linhagem, e sendo parca a descendência de João Teixeira Alves Filho, verificou-se tratar de antepassado de Maria José.

Ao seu lado, na cama, Vicente relê com vagar o comprovante emitido pelo cartório, relativo à reclamação, em tempo hábil, da propriedade e posse da lavra recém descoberta de Itajuru, pela herdeira legítima, Maria José Alves. Não que fosse imprescindível, pensa, mas Maria José afinal teve visão, quando casou com José Taboão, ao manter o nome de solteira. Fica mais fácil o reconhecimento judicial da pretensão, agora direta, com o falecimento do pai, Luiz Figueiredo  Alves, a quem havia sido originalmente endereçada a notificação cartorial.

 Parece, segue matutando Maria José, nunca em vida o pai se deu conta dessa herança, tampouco houve jeito, pois a mina esteve soterrada e esquecida por quase dois séculos.Triste reconhecer que a mina aflorou, depois desse tempo todo soterrada, graças—se se pode dizer assim, Deus me perdoe—à grande tragédia causada pelo rompimento dessas barragens; mas, disseram lá no cartório que terá havido, na mesma hora do desastre, pequenos tremores de terra. Com o epicentro justo perto de onde a mina se descobriu. Sabe-se lá como essas coisas acontecem, e aqui estou eu, herdeira de uma mina de ouro. E será que sobrou algum ouro lá, depois de tanto tempo? É sabido que as minas de ouro nessas regiões se esgotaram ainda em começos do Sec.XIX. Taí a famosa mina da Passagem, como me disseram, entre Mariana e Ouro Preto, hoje apenas um ponto turístico . Há outras que vêm sendo descobertas e que produzem muito ouro, ainda mais com as novas tecnologias de exploração. Falaram lá também no cartório, acho que pra me animar, da mina do Morro Velho, em Nova Lima, com seus mais de 2 mil metros de profundidade, ainda em atividade, com muito lucro para as empresas inglesas que a exploram.

Maria José, embalada por pensamentos contraditórios, ora vê em tudo uma farsa, ora se vê milionária.  Ainda sem entender como deixou, às carreiras, o hospital em São Paulo, aperta a mão de Vicente. Sente-se segura ao lado do ex-namorado, com quem partilhou os últimos dez anos, em Santos. Decidiram separar-se, tornaram-se bons amigos. Maria José acaba de voltar para José Taboão, a tempo de celebrarem as Bodas de Prata. Está feliz por recompor o antigo lar, ainda mais agora que o Zé Taboão se aposentou na TRANSSILVA, não mais essas intermináveis viagens pelas estradas, ele levando no caminhão as cargas geridas pela empresa. Juntos mudam-se para um pequeno apartamento em Jacareí, ao lado de São José dos Campos. Foi uma luta, pensa, conseguir a transferência como professora do curso elementar em Jacareí, mas afinal consegui. Vicente é um bom homem, viveu a seu lado uma paixão. Ajudou na educação do filho, Eustáquio, ao aceitar que ela o trouxesse para Santos enquanto cursasse a secundária. Agora, cá está ele, é uma ajuda desinteressada. Não havia tempo para avisar Zé Taboão, só já a caminho, depois do voo para Belo Horizonte, pudemos fazer isso. Ficaram desnorteados, ele e meu filho Eustáquio, sair às pressas do hospital, sem avisar. Foi mesmo uma fuga. Pudera! E fugir logo com o ex-namorado. O hospital até já havia informado a polícia sobre meu desaparecimento.  Bem, tudo esclarecido. Falei com o Zé, ainda não entendeu porque, mas tivemos que vir logo, Vicente por sorte leu os prazos, questão de dias. Mais ainda agora, com os feriados de Natal, só temos pouco tempo até o final do ano. Sinto-me bem, a alta no hospital estava prevista para hoje aou amanhã. Falei com o médico, ele ralhou comigo, pediu para regressar logo. Mas, continuo a ver nessa história uma grande armação. Herdar uma mina de ouro, não pode ser verdade, não tem cabimento, minha família sempre foi pobre, será que vou virar milionária? O título de propriedade da mina está assegurado, foi por pouco, ainda bem que o Vicente insistiu para a gente vir. Bem, amanhã voltamos, é uma longa viagem. Valeu ter alugado o carro no aeroporto, em Belo Horizonte. A estrada não é lá essas coisas, mas a paisagem é linda, montanhas altas.

Maria José por momentos viu-se novamente vestida de professora. Sempre quis estudar aquilo que já se chamou «geografia», e que, com a evolução da matéria, passou a identificar-se nos currículos com títulos como «geografia humana», «desenvolvimento sustentável», «ecologia», «habitat e biodiversidade» Achou tempo e ocasião para continuar a divagar. Aprecia o caminho, longo de uns 170 quilômetros, com a sensibilidade especial dos que vêem como o homem pode ser tão agressivo com a natureza. No carro alugado, deixam o aeroporto de Confins, à época com obras de ampliação para transformar-se naquela modernidade cosmopolita dos grandes aeroportos, graças à Copa do Mundo de futebol. Tomam a «Via Verde»,  sendo remodelada graças à Copa do Mundo, viva a Copa do Mundo, não se sabe afinal se a copa é do futebol ou dos políticos, não importa, eis aqui mais uma grande oportunidade para governantes e empresários corruptos dançarem a alegre valsa das propinas antes milionárias, agora bilionárias, como será revelado logo em seguida em operações policiais como a «LAVA-JATO»,  passam pela fantasmagórica «Cidade Administrativa», conjunto incongruente de prédios administrativos, projetado por um Niemayer decadente, imaginem se houve concurso licitatório. O GPS os dirige para o «anel rodoviário» que contorna pelo lado oeste Belo Horizonte, tenebroso pela violência do trânsito, dominado por caminhões de minério e milhares de automóveis e veículos de toda espécie em cabal e vertiginosa demonstração de indisciplina e desrespeito pelas regras básicas de convivência no trânsito, numa estrada sem qualquer traço de conservação ou de sinalização. Segue-se, à saída de Belo Horizonte, a formação montanhosa que protege—melhor dizer, protegeu, a cidade, a Serra do Curral, depauperada de seu antigo verde profundo, azul radiante ao amanhecer, e azul avermelhado ao sol poente. Maria José vê a proliferação do concreto bruto que mancha toda a barra da montanha como câncer, formando prédios altos de entortar o pescoço, e que ademais se concentram nesse espaço que já foi, agora não mais, parte da serra. Admira o paredão montanhoso, traço único da cidade, que ainda conserva , nesse trecho, aferrado no qualificativo de «bairro»,  o nome do «Belvedere », a bela vista natural que existiu  um dia. Agora, só prédios amontoados como numa praia de pedras em maré baixa, shopping e lojas, multidões de automóveis em movimentos curtos e desencontrados, impacientes com os engarrafamentos, como um formigueiro atacado por formicida, pencas de antenas transmissora que, como lanças, ameaçam os céus desamparados e as poucas nuvens como se fossem invasores daquele território árido, outrora verdejante. 

Não sabe Maria José que a serra do Curral é oca, as mineradoras, de ferro e de ouro, carcomeram , pelo lado sul, o de Nova Lima, a montanha por baixo, deixando apenas uma fachada, a que olha para a cidade. Não sem antes, com total conluio, conivência —pois, das mineradoras advém sua principal receita— e menosprezo das autoridades municipais, estaduais, federais, reduzirem ao nível zero, à linha do sopé, o bloco maciço de hematita que integrou a serra a leste, ao lado do Pico do Cruzeiro. Bela vista da cidade, essa que se teve um dia do Pico do Cruzeiro. Quem não foi, décadas passadas, ainda criança ou adolescente, fazer piquenique lá em cima?. Impressionava a beleza da matéria maciça da montanha ao lado, ferro puro, essa que foi totalmente minerada e destruída. Sem ter como reagir de outras formas, ainda mais em tempos da ditadura militar, os habitantes de Belo Horizonte colavam nos vidros dos automóveis um plástico transparente com os dizeres:«Olhem bem as montanhas», numa advertência nostálgica sobre o arrasamento  em curso das montanhas mineiras pela exploração descontrolada e criminosa do minério de ferro.

 Passados o viaduto «do Mutuca» e os fiapos que ainda restam de mata tropical atlântica, alcançam-se, após longo trecho ascendente na estrada para o Rio de Janeiro, de asfalto muito machucado sobretudo pela constante passagem dos caminhões de minério–seria inverossímil  e irresponável chamá-la de autoestrada– e, logo antes da saída  para Ouro Preto e Santa Bárbara, os contrafortes da Serra do Espinhaço. Com seus plácidos lagos de altitude. Há gente boa que afirma serem lagos artificiais, a Lagoa Inglesa, a Lagoa das Codornas. Hoje tornaram-se, enquanto não secam de todo, virtuais bebedouros para a sedenta especulação imobiliária—e, claro, fonte de água para as estações de mineração nas vizinhanças, originando as assustadoras barragens de lama de minério, todas em vias de rompimento.  Em curtas gestações rasgam-se às margens desses lagos  os terrenos para novos loteamentos, como em canteiros onde se plantam pedras, condomínios habitacionais cuja beleza agreste, ou conflitiva com a natureza, varia de espaço a espaço, conforme mudem as perspectivas. Ali, em meio ao permanente passar dos pesados caminhões, poderosas armaduras recheadas de minério, e apesar deles, a cidade de Belo Horizonte labirinta sua expansão.

Maria José ainda não sabia, em 2016, que passados três anos do trágico rompimento, em 2015, da barragem do Fundão em Bento Rodrigues, entre Mariana e Santa Bárbara, com seus 34 milhões de metros cúbicos de lama ferrosa espalhando morte e destruição por todo o vale do Rio Doce e além, virá o trágico e devastador rompimento de uma das barragens da Cia. VALE, ali mesmo à sua direita na estrada, no vale a oeste, que a crista da serra não a deixa ver, em Brumadinho, no Córrego Feijão , com cerca de 250 mortos, dezenas ainda desaparecidos de centenas de feridos.  Maria José não sabe, ainda, da triste realidade da mineração em Minas Gerais, e de resto no Brasil. Só em Minas, nos últimos 15 anos, sete barragens de dejetos de minério rompidas, fora centenas nas redondezas.  

Vem depois  a descida acentuada para Itabirito, lá embaixo, onde também se rompeu uma barragem dessas, tempos atrás. De comum, alem da devastação, das mortes, a impunidade em recompensa pelas propinas, e o escárnio das empresas responsáveis, pela vida humana , fauna, flora e o meio ambiente. A descida  em fortes curvas e declives deixaria , a cada trecho de vegetação rala, a vista perdida no lindo mar de montanhas ao longe, a leste, não fosse o ar carregado de pó de minério e de terra vermelha. Há mineradoras por todo lado, australianas, inglesas, canadenses, chinesas, japonesas, norte-americanas, grandes brasileiras, como a Cia.VALEe também as pequenas, como a referida SONALAM. Espalham-se por todo lado, armadas de bombas de dinamite que, para quebrar o minério, explodem dia e noite em cachos de pedra, terra, pó e ferro. Suas escavadeiras removem entranhas sagradas na nossa história pela liberdade, libertas quae sera tamen, não é isso que diz a bandeira das Minas Gerais?, cavando feridas que nem a varíola, sangrentas de pó e barro asfixiante e endurecidas pelo minério, e em cuja pele, como por milagre, ainda se aconchegam alguns pobres matões, que o poeta romântico  associaria a lágrimas verdes  do pranto da natureza que escorrem pelas grotas enquanto não se ressecam da poeira venenosa e das queimadas . 

São, mais adiante de Itabirito, uns 60 quilômetros de colinas e morros suaves, verdejantes nessa época chuvosa do ano, e de algumas localidades pitorescas, como Cachoeira do Campo e seu antigo colégio salesiano, de harmoniosa fachada colonial, que se destaca entre palmeiras imperiais na paisagem da montanha, e onde os meninos internos, quando de castigo, eram obrigados a ajoelhar sobre grãos de milho, com a face voltada para a parede; ou o povoado de Coelhos, bonito pelo nome, ou ainda Saramenha, de casas toscas que guardam o segredo da faiança.

A vista repentina de Ouro Preto, ao longe, na descida depois da penúltima curva na estrada, é deslumbrante. O barroco esplendoroso da cidade cravado no meio das montanhas que ainda brilham num opaco morno, com a memória do ouro outrora ali escondido. O Pico do Itacolomi, que se vê à direita, se imporia como um marco sóbrio num céu nervoso e cambiante como o próprio barroco, não fossem as igrejas, sozinhas, altaneiras em seus adros, torres e sinos, com seus frontais eternizados pela arte de Aleijadinho, verdadeiras sentinelas da época do ouro colonial, a negociarem com a montanha como se fossem iguais em estatura.  Ali, corre o diálogo entre os deuses celestiais e a população, uns e outra sempre carrancudos, ao que parece inconsolados da riqueza perdida e talvez envergonhados de sua exploração do colonizador português que conta com a mão escrava negra.. A Vila Rica do ouro preto recebe, na moldura revoltosa de sua história e no aconchego do bambá de couve para as noites frias de Junho, mas nem sempre com simpatia, as investidas e o abraço caloroso e tão necessitado daquela montanha e das gentes artistas que percorrem suas ruas e casas e que por lá se encantam, em meio das favelas que não mais permitiriam a Guignard pintar a sinuosidade de suas ladeiras com traços tão leves ; e depois, se aproxima a bela Mariana, tão setecentista como o órgão austríaco da igreja matriz, que só se vê de costado.

Mais algumas dezenas de quilômetros tortuosos, em meio a um trânsito tão desregrado como o das estradas maiores, e vislumbram-se algumas fazendolas  onde talvez se  encontre um bom frango com quiabo e angu. Maria José e Vicente passam por essa outra, a que chamam «Serra do Caraça», escura, sombria, alta, com aquelas linhas de um rosto gigante na cumieira vigiando a chegada, afinal,  em Santa Bárbara. Enfiada nas costas mais baixas dessa serra, lá está Catas Altas. «Catas Altas do Matto Dentro» , arraial por muito, muito tempo, desconhecido, alheia a roteiros turísticos das «cidades coloniais mineiras», isolada de todo mundo que nunca provou a canjiquinha, a contraface do Caraça, virou município com a chegada do asfalto, duas ou três décadas atrás, desgarrando-se da vizinha Santa Bárbara, mas ainda tem resguardada a identidade colonial em dignos sobrados  e na igreja matriz, Nossa Senhora da Conceição, inacabada por dentro, como a sinfonia, com suas torres abauladas em modo árabe e o magnífico Cristo do Aleijadinho.  Catas Altas, com suas donas sempre de preto  à porta, ou à janela (as que sobraram, muitas já morreram), e que sem relutância  convidam com prazer o transeunte visitante a tomar um vinho de jubuticaba, como desvela poeticamente Fatima Pinto Coelho, no livro sobre Catas Altas[1]. Ali também se vislumbra, contudo, pelo movimento acelerado de um turismo tosco, a ansiedade pela chegada do primeiro hamburger macdonald, que com certeza não tardará.

 Itajuru, a mina que poderá ser de Maria José, não ficará longe dessas que já foram as catas altas, alguns quilómetros ao norte, justo na região de Bento Rodrigues onde rompeu a barragem do Fundão, gerando o tsulama de barro ferroso já referido. Passaram por lá perto, da estrada, a meio caminho entre Mariana e Santa Bárbara, só se vê um mundão de barro e lama e destruição da vida e da natureza, que se estende a perder de vista, até hoje.

Toques leves na porta do quarto interrompem suas divagações: «Senhor, é o escrivão do cartório, está na recepção, quer falar com os senhores». Vicente levanta-se assustado e surpreso para abrir a porta ao atendente,  não haviam já feito a declaração notarial «de interesse» na concessão e exploração da mina em tempo hábil, o que mais desejaria o escrivão? Maria José e Vicente se compõem, descem à recepção do hotel, um espaço pequeno, no andar térreo, originalmente teria sido apenas parte do porão da casa, por isso bastante escuro, sem janelas, apenas a porta para a rua, decorado com cartazes turísticos da cidade e da reserva florestal do Caraça. Apenas lhe dão algum charme o teto e as vigas em madeira, junto com as paredes de pedra à mostra, tudo datado de quando terá sido construído o velho hotel, final do século XVIII? Ao fundo da sala, num sofá de almofadas de revestimento carcomido em vermelho cinzento, dois rapazes com camisa de tergal e colarinho, sem gravata, lêem jornal, bebericam cerveja, mas observam com interesse a cena que se desenvolve à sua frente.

–Boa tarde, minha senhora, dona Maria José Alves, senhor Vicente Amado. Queiram desculpar-me a intromissão, venho diretamente do cartório onde estiveram há pouco. Devo informar à senhora dona Maria José que, por imperdoável omissão do meu assistente ao dar-lhe o recibo da reclamação em tempo hábil ao direito de propriedade, posse e exploração da mina referida do Itajuru, não se deixou constância do adendo relativo à falta do registro original da sesmaria onde se localiza a antiga lavra, ou seja no Itajuru, pendente do que a dita reclamação de «interesse» na concessão e exploração da mina em tempo hábil tem caráter meramente provisório, com a reserva em seu nome válida por mais apenas cinco dias úteis, contados a partir da data de notificação, ou seja, hoje, dia 24 do corrente mês de dezembro. Queira por gentileza ler e assinar essa notificação aqui no livro, que me prontifiquei a trazer comigo pessoalmente, visto ter ocorrido a omissão, imperdoável, repito, por parte do assistente. O rapaz, sabem, é novo no cartório, recém  formado em ciências jurídicas,engatinha nas lides burocráticas. Engraçado que, como adotou como emblema na lapela de seu terno um pequeno alfinete dourado com o signo da Justiça, a face de olhos vendados diante de uma balança, ficou logo conhecido na cidade como «Zé Balança». Vejam só. É de fato um pouco almofadinha, talvez mereça a alcunha, mas é bom rapaz e muito aplicado. Foi mesmo um descuido, que venho aqui procurar reparar pessoalmente. Queira a senhora dona Maria José Alves assinar aqui, por favor?

–Mas, senhor escrivão, esse registro da concessão original da mina, devemos buscá-lo onde, se não está no seu cartório?

–Justamente isso, minha senhora, não temos muita ideia. E acrescentou em voz baixa, olhando de soslaio para os dois rapazes que continuavam a bebericar cerveja ao fundo da sala: —  À época da concessão da sesmaria, muitos dos registros faziam-se em igrejas importantes da região, em Ouro Preto, Mariana, Catas Altas, e aqui mesmo, na nossa Igreja de Santo Antônio. Soubemos que cá não foi nada encontrado, conforme nos foi dito pelos próprios agentes e técnicos das empresas interessadas igualmente em obter a concessão, e que, devo dizer, são concorrentes à posse da mina, como a senhora dona Maria José Alves. Pouco podem fazer, contudo, por enquanto, já que legalmente a senhora, como potencial herdeira da concessão, tem o direito preferencial na manifestação de «interesse »; pendente, claro, da apresentação dos documentos e títulos necessários. No caso, dá-se a falta do registro original. Nossa recomendação será no sentido de que façam imediatamente suas inquirições junto a essas principais paróquias, mas lembro que o tempo disponível , conforme o Código de Processo Civil, o Código de Minas e portarias subsequentes editadas pelas autoridades federais na área das minas, da Agência Nacional de Mineração, é muito limitado. Disse essas frase quase que ao pé do ouvido de Maria José e de Vicente, para que os rapazes que continuavam a bebericar cerveja não o escutassem.

–E esses senhores agentes das mineradoras, acrescenta Vicente, já desconfiado, dirigindo o olhar para os dois rapazes, já não terão procurado o título original em outras paróquias da região?

–Sim, disse o escrivão, depois de alguma relutância. Talvez o tenham encontrado; mas, não poderiam retirá-lo, como os senhores tampouco poderão fazê-lo, caso o encontrem. Porém,  a precedência da apresentação, dentro do prazo estipulado pelo senhor juiz da Comarca, é da dona senhora Maria José Alves, herdeira legítima.  Digo, a apresentação da referência sobre o título: Livro tal, folhas tantas, em arquivo da paróquia tal. Os senhores naturalmente poderão acompanhar a referência de foto ou facsímile. Têm ainda cinco dias para encontrar o documento citado.  Colocando-se à disposição, despediu-se com um «boa tarde».  Vicente acompanhou o escrivão até a porta do hotel. Ao estender-lhe a mão e a gentileza de ligeira vênia, ouviu, do representante ainda que indireto da Justiça, uma confidência, cochichada em tom de negócio sério, e que deixou o companheiro de Maria José com um leve sorriso de entusiasmo.

Diante das observações do notário, Vicente procura arrumar as ideias, tanto esforço, só para ouvir a solicitação de que têm que procurar um documento, em alguma igreja na região, sabe-se lá qual. Sorte que o escrivão lhe confidenciou algumas referências. Quis logo falar a Maria José.

— Pelo visto, temos que repensar nossos planos de voltar a São Paulo amanhã. No quarto, Vicente pede por telefone uma caipirinha. Maria José  toma um banho, revigorante, apesar da pouca pressão da água no chuveiro.  Acometeu-lhe de repente uma dor de cabeça, leve mas persistente e alguma indisposição. Será da viagem até Santa Bárbara, longa, estradas movimentadas, e essa tensão de cartório e de prazos, fora a ideia de herdar uma mina de ouro. A doença vem-lhe à mente. Tivera sorte, foi internada por mera precaução médica. Não sabem dizer porque foi diagnosticada com a febre amarela. Teve uns sintomas, olhos e pele amarelada, alguma dor no corpo e febríola, mas, em Aymorés, onde foi primeiro ao posto médico, a epidemia  dominante nessas paragens não deixa dúvidas aos médicos:– Internamento para observação, disseram.

 Desde logo, vale comentar que Maria José passa, ali, no hotel em Santa Bárbara, da febre amarela, podemos dizer assim, para a febre do ouro, coincidência, metal amarelo. Está confusa, tem apreensão, acha que tudo só pode ser uma brincadeira de mau gosto. Mineira, desconfia. Não de Vicente, porém. Iam jantar, mas, depois do banho pôs quase que automaticamente uma camisola, única que havia levado na pequena mochila que conseguiu trazer na fuga do hospital, na manhã do dia anterior. As enfermeiras de plantão no hospital não desconfiaram de seu «passeio» pelos corredores com o visitante . Vieram. E agora?

O atendente no hotel trouxe a caipirinha que o companheiro havia pedido. Mesmo depois de refrescada com o banho, provou o ar abafado e carregado, precisava respirar, sentia-se meio bamba, com dores nos quadris. Entreabriu a janela, não muito. Do casarão em frente à janela podia-se ver dentro do quarto. Fora, embaixo, na esquina, um mendigo com o gorro de Papai Noel esmola os poucos transeuntes. Olhou para Vicente, que sorvia aos poucos a bebida, observando a silhueta insinuante, delineada pela camisola algo transparente, daquela que havia sido sua amante e companheira.  Achou melhor dizer algo:  –Sabe, Vicente, não sei se fizemos bem em vir, fugir do hospital por conta de uma herança que nem sabemos ao certo se existe mesmo. Obrigado por me trazer e ajudar a defender meus interesses, você é um amor.

Juntos por dez anos, não é pouco, decidiram separar-se. Voltar para o Zé Taboão. E continuou:– o Zé me recebeu de coração aberto, quando falei  que ia voltar, queria retomar nossa vida, agora estou com você no mesmo quarto, dormindo ao seu lado, não quero magoar o Zé mais do que já o magoei. E não me sinto bem, Vicente, meio enjoada, com essa dorzinha de cabeça. Vicente  levantou-se da cama, deu-lhe um beijo suave em seu ombro, e se perderam por um instante num longo abraço.

– –Maria José, amanhã terminamos com isso, falta apenas encontrar esse tal documento, penso que não será difícil, o próprio oficial do cartório deixou-me entender isso, quando o levei até a porta do hotel.  Vou dar uma chegadinha à farmácia comprar remédio pra você. Vai ficar melhor logo, ponha uma roupa, vamos ao restaurante ali na esquina, precisamos comemorar, uma ceia natalina, quem sabe. O restaurante parece bom, recomendado pelo hotel. 

De retorno da farmácia, Vicente encontrou Maria José já pronta para saírem. Véspera de Natal, o amarelo das luzes festivas ao longo do átrio da imponente igreja de Santo Antônio refletiu-se no rosto algo empalidecido de Maria José. Ligados em pensamentos outros, não perceberam o sol a esconder-se, no tardio do verão, detrás do prédio da antiga cadeia, por conta das nuvens cinzas que com certeza iriam em breve espalhar chuva. Apenas poucas manchas alaranjadas no pedaço visível do horizonte. O recepcionista do hotel lhes emprestou um guarda-chuva.

Regressaram alegres do restaurante, um espaço bem jeitoso no conjunto renovado da antiga estação ferroviária. Estavam contentes, mas indecisos sobre a situação em que se encontravam, dúvidas sobre dúvidas, conversaram bastante durante a refeição: Maria José compreensivelmente preocupada com José Taboão e com o filho Eustáquio, já meio arrependida de ter seguido o conselho de Vicente de irem, sem mais, a Santa Bárbara, sem aviso ao hospital e aos médicos, o que estaria pensando o Zé taboão. Vicente, por seu lado, tentava tranquilizá-la, não tinham opção naquele momento, ou perderiam a oportunidade. Já, já, estariam de retorno a São Paulo, quem sabe com a herança garantida. Sobre esse ponto, Vicente reiterou a Maria José o que lhe dissera antes:–você sabe, Maria José, achei que devíamos vir, que eu devia trazer você, me arrisquei, não sei se o Zé Taboão e o Eustáquio vão entender o que fiz, mas é importante que você tenha sempre presente que pessoalmente não tenho interesse nessa sua herança, é uma coisa de vocês, faço por amizade, pelo longo tempo que estivemos juntos, de repente me senti na contingência de acompanhá-la até esta cidade. Estamos separados, mas de alguma forma continuamos juntos, amizade de verdade, e sei que quanto a isso o Zé me entende, e o Eustáquio também.

 Seguiram diretamente para o hotel, a chuva rala e o pouco movimento nas ruas os desestimularam a um passeio, talvez necessário para a boa digestão da costelinha de porco com torresmo e couve, mais a canjiquinha—prato que não conheciam—com que se deliciaram. Haviam provado, ademais, o «peru à Califórnia», prato especial servido na ceia de Natal. Maria José esteve ainda sem apetite maior, mas o que comeu foi com gosto.  Logo se recolheram ao quarto e deitaram, juntos, porém separados, na cama de casal com reposteiro e que, pela idade, rangia sob o peso e dos movimentos do casal, dando a perceber, dos corredores e no andar de baixo, onde fica a portaria, ruidosos sinais que pareciam amorosos, como aqueles que só os amantes fazem. Adormeceram oblívios daquele anoitecer morno e úmido de dezembro, nos confins das Minas Gerais.

Despertam assustados com o repicar dos sinos da igreja , vizinha do hotel. Dia de Natal. As badaladas, de tão fortes, pareciam estrondos  no quarto ao lado, interrompendo aquela noite de sono de paz íntima. O celular toca. Maria José atende, Eustáquio ansiosopor saber notícias. Resolveu vir, preocupado com a mãe, seu voo de São Paulo chegara de noite em Belo Horizonte, saía agora do hotel em carro alugado para  Santa Bárbara, já reservara no mesmo hotel. Conversam longamente, a mãe sente a inquietação do filho. Os dois se gostam muito, quase não têm segredos um para o outro. A mãe consegue tranquilizar Eustáquio:– Vamos ficar mais um dia, temos prazo até o fim do ano para localizar esse documento, não se preocupem, você e o Zé, eu estou bem.  Não me sinto nem um pouquinho doente. Já que viemos, agora temos que fazer o possível, mas, logo, logo, voltamos.  Não precisava de vir, mas fico feliz com sua vinda. Você deve chegar mais ou menos à hora do almoço, esperamos você.

Zé Taboão também chamou, mais tarde. Não queria assustá-la, pediu que voltasse logo, os médicos, pois agora já era uma equipe do hospital a tratar do caso de Maria José, que deixou o hospital sem ter alta, já haviam pedido seu retorno imediato. A polícia fora notificada, para localizá-la. Família e os amigos, todos preocupados. Eustáquio decidira viajar para encontrá-los, Maria José, com Vicente, longe, em Santa Bárbara, em busca do que talvez não passasse de miragem.

No carro, Eustáquio não se conformava com a atitude da mãe. Por conta de mina de ouro, pensa. Na melhor das hipóteses, herança tardia, de mina surgida em meio a grande desgraça, aflorada com os movimentos de terra causados pela avalanche de barro e minério com o rompimento da barragem da VALE em Bento Rodrigues, mina que aparece no meio de tanta morte e devastação. Não pode ser verdade. Não é de bom augúrio. Tempestades e uma contínua chuva forte na estrada, durante o percurso, fizeram com que Eustáquio levasse muito mais tempo do que o previsto para chegar a Ouro Preto e seguir, de lá, para Santa Bárbara.

NATAL AMARELO, PARTE II
O CONTRACONTO: NATAL AZUL
( CONTO INFANTIL )

Teve tempo para matutar sobre a vida, o quão havia crescido. Longe, pensou, distantes os dias em que jogava bola com Maurício nas ruas de Itarém, tempo em que ensaiou o primeiro namorico com Ana, Ana Augustina, Tina para a família, mas Ana, simplesmente, para ele, que gostava do nome assim curto, bem redondo. Sei lá, recorda, parecia que chamá-la de Ana, apenas, sem nada mais, a trazia mais para perto dele. Morava na casa vizinha, não assim ao lado, mas perto, e na família era Tina. Ele gostava mesmo de chamá-la  Ana. A mãe acabara de separar-se do pai, Zé Taboão, comemorou seu aniversário só com o pai, Ana e Maurício, na hamburgueria da cidade, recém aberta, ficara impressionado com as luzes claras e azuis do ambiente.  Saboreou um hambúrguer, feliz com a presença do pai e dos amigos, mas a ausência da mãe o deixou triste.  Ainda é o prato preferido quando come fora. Lembrou-se de que aquele foi o ano do Natal todo colorido de azul que passou ao lado do pai, José Taboão, e do gato Capim. Lembrou da véspera do Natal, do sonho com a mãe ausente.  Tinha boa lembrança dos dias e dos anos em Itarém. E aquele Natal foi muito especial para ele, foi como um conto para crianças, de final feliz. Um Natal Azul, de tão bonito:

ITARÉM, OU O NATAL AZUL – CONTO INFANTIL

Como todo subúrbio de cidade grande no Brasil, Itarém,  espécie de vila a oeste da Grande Sao Paulo, é uma comunidade trabalhadora, muitas vezes alegre, outras triste ou silenciosa, quando, de noite ou mesmo de dia, assaltos ou algum outro tipo de violência interferem na rotina diária dos habitantes. Sempre levantam cedo, muito cedo, para chegar em tempo ao trabalho, nas fábricas, nos “shopping centers”e nos supermercados das redondezas, onde muitas mulheres itaremenses encontram trabalho, para completar o salário familiar, ou para realizar o sonho de não ser mais domésticas ou simplesmente donas-de-casa. À noite, as casas baixinhas ou geminadas, os sobrados velhuscos de fachada estéril e de construção pobre se iluminam. A cor predominante é a luz azul dos aparelhos de televisão, cujos reflexos vencem as grades de proteção das janelas, sempre abertas quando faz calor, e se projetam como fantasmas dançantes nos troncos e nas folhas das mangueiras, amendoeiras, ipês e paineiras espalhadas ao longo das ruas. Normalmente, pouca gente nos bares e botequins, exceto, claro, às sextas e sábados. Recentemente, abriram um Markburguer´s numa esquina, todo chique, e a turma que se reunia na “Pizzaria Marco Polo”, do SeuTonico, logo em frente, mudou-se em penca para lá.

Foi no Markburguer’s que Eustáquio, para comemorar os treze anos, chamou os coleguinhas da escola, no dia 20 de novembro. Chamou só os mais amigos, uns quatro ou cinco, além do vizinho de rua, Mauricio, com quem sempre jogava bola depois da aula. Os outros moravam perto, também, e Eustáquio tinha conseguido,num dia em que o pai estava de muito bom humor, a promessa de que deixaria comemorar os seus treze anos com um bom Bigmac. Jose Taboão, o pai, também foi, claro, era o aniversário do filho, e para segurar a barra da conta. A única menina do grupo era Ana Augustina, da sua idade, um pouquinho mais velha, a quern ele chama de Ana, mas «Tina» para a família. Quando .Eustáquio lhe perguntava se não se incomodava, se não tinha importância chamá-la de Ana, ela dizia que óbvio que não, que esse era seu nome, e que Tina era bonitinho, mas quase que só dentro de casa. Na escola, era Ana Augustina.

 Eustáquio bebeu uma coca e lembrou da mãe, que bem podia estar ali .Era a primeira vez que ele pisava, com direito a comer, num Markburguer’s. Antes havia entrado,mas, sem dinheiro, que fazer. Aquela luz toda branca às vezes o deixava meio confundido pelo excesso de claridade e o brilho nos vidros largos, mas o ruído das pessoas falando, dos atendentes dando ordens a partir das caixas registradoras e outros limpando as mesas, jogando restos e pilhas de copos e sacos de papel usados, tudo se assemelhava a uma festa intensa, agitada. Sempre que olhava para tudo aquilo, pelo lado de fora, sobretudo à noite, parecia uma cerimônia, feito no palco de um teatro, ou feito uma missa solene, com as pessoas entrando, saindo, sentando, dialogando, em torno de mesas e de uma espécie de altar-mor, com o hamburguer encarnando o deus máximo do consumo. Eustáquio tinha formação católica, e o colégio onde estudava agora era católico. A mãe, devota de Padre Eustáquio, santo milagroso, daí o nome do filho.  Maria José, a mãe querida, não estava. Nem podia, pois, separada recentemente do pai, morava longe, em Santos. Bem, poder ,poderia, bastava pegar um õnibus e quern sabe passar uns dias com eles.  

Os dois se gostavam muito, ele como filho único sentia ainda mais a ausência dela, agora já de vários meses. Foi duro. Era duro. Eustáquio não compreendia ainda muito bem porque sua mãe havia deixado Zé Taboão, assim, sem mais. Ele, antes, escutava as reclamações dela, de que com seu trabalho de motorista de caminhão, estava sempre ausente, que não dava atenção para ela,  estava cansada disso, quando chegava, só queria dormir, e o dinheiro sempre curto, ela passando dificuldade para pagar as contas e fazer uma feira decente. Está bem que tudo isso era difícil para ela, mas daí a abandonar a casa, porque? Quando Eustáquio the perguntava, nas mensagens de e-mail e zap que trocavam, a resposta nunca foi convincente, meio vaga.

Pensou no Natal que estava chegando em breve, dentro de um mês, por ai. Quern sabe a mãe não viria? Ele, por ele, poderia ir até Santos e passar o Natal lá, com a mãe e seu namorado, o Vicente e até passear no seu barco. Maria José havia contado do barco de Vicente, barco bonito, que usava para passear com turistas no Guarujá. Vicente era dono de uma loja de turismo. 0 pai, porém, não deixaria, pelo menos este ano. Havia prometido que passariam juntos o Natal, em dias estaria saindo para fazer um transporte, justamente do porto de Santos até Belo Horizonte, e que lá pelos primeiros dias de dezembro estaria de volta, para ficarem juntos no Natal. Quem sabe quando poderiam passar o natal juntos de novo? Zé Taboão e Maria José haviam acertado que Eustáquio continuaria os estudos com a mãe, em Santos, e que o próximo Natal o filho ficaria com ela.

Aquelas luzes do Markburguer’s, brancas e intensas, fizeram Eustáquio lembrar das festas de fim de ano, e querer um Natal bonito, com luzes, mas não como aquelas. Pensou na mãe, pensou no barco do Vicente, imaginou o mar, o céu claro, e disse para Ana, no meio da conversa, que seria tão bom se pudéssemos ter um Natal colorido, todo de azul, com uma árvore de Natal que fosse como uma noite azul-clara, cheia de estrelinhas, uma árvore que fosse grande, grande como o universo e a Via Láctea. Havia lido na internet que quem inventara a árvore de Natal foi um pensador religioso chamado Lutero, na Inglaterra, quando viu por entre os pinheiros, ao andar na neve numa noite clara de Reis, o brilho das estrelas, milhares delas, tendo então decidido imitar essa visão colocando, em casa, muitas bolas coloridas e velas num pequeno pinheiro. Ana lhe respondeu que, na fazenda dos tios, onde ia passar o Natal, o céu era assim brilhante, de dia e de noite.

Eustáquio foi  para casa, dormiu e sonhou. Sonhou que o pai, depois da viagem que ia ainda fazer, veio à casa com o caminhão carregado. Tinha passado rapidinho por casa, antes de seguir para São Paulo e fazer a entrega lá em Minas Gerais. Na noite estrelada, todo mundo dormindo, seu gato Capim sobe na carroceria, por acaso aberta e acaba derrubando uma caixa grande e leve, que se abre no chão. Eustáquio acorda com o berro do gato, vai lá fora e vê montões de artigos de decoração de natal, festões, um jogo de presépio, muitas bolas, todas azuis. Ficou maravilhado, e pensou que sua árvore e seu Natal eram ali, naquele momento. Pé ante pé, pegou a caixa, recolocou tanto quanto podia os adornos, e levou para dentro de casa. Viu que tinha um endereço na tampa: “TV Paulista. Programa Bola Azul”. Sem saber porque, ligou o aparelho de TV, bem baixinho. A luz azul da tela lhe deu ânimo para montar, num pequeno pinheiro artificial que sempre usavam de árvore no Natal, todas aquelas bolas azuis. Montou o presépio, fez decorações com o festão, e, sob o olhar desconfiado de Capim, que com seus miados era o único som que fazia contraponto ao barulhar baixo da TV, cantou “Noite Feliz”, pensou na mãe, e chorou bem baixinho. Depois, fez um carinho no gato, foi na geladeira, pegou um copo de leite, entornou um pouquinho no pires para Capim, bebeu tudo de um gole e foi dormir.

De manhã,  acordou do sono sobressaltado, foi até a sala. Vazia. Apenas

o pequeno pinheiro sem nada, nu. Olhou pela janela e viu Capim, deitado numa sombra.

Ficou vários dias pensando naquele sonho, pois sua vida, até que o pai regressasse, iria ser um pouco solitária. Ana foi para a fazenda, Maurício sumiu com a familia. Itarém, nesse periodo, chove, muita lama, depois vem o sol forte. Se sente sozinho. Vê TV e fala com a empregada Hortênsia, mas são coisas sem sentido. Pensa outra vez no Natal. Será que, por estar virando homem, o Natal agora passa a ser diferente? Mais responsabilidades? Talvez, mas o que lhe marcavam eram as luzes diferentes do Natal de seu sonho.

Chegou dia 24, seu pai está ali, a ceia será peru com farofa, a Hortênsia preparou. Os vizinhos aparecem antes, para conversar com José Taboão, tomam muita cerveja. Eustáquio liga a TV, pensando naquelas bolas azuis e viu, de repente, um programa que se chama “Programa Bola Azul”. Ei, pensa, é o programa da caixa que caiu do caminhão no meu sonho. Ele existe! Fica  assim, achando curioso, quando, ainda mais de repente, toca o telefone, ele atende, e aparece o locutor do programa que está vendo, para dizer que aquela casa foi selecionada para ganhar uma caixa de decoração de Natal; desde que possam confirmar que estão vendo o programa, respondendo agora à senha que aparece na tela. Eustáquio, assustado, olha para a TV, e vê a frase: «tudo azulíssimo» na tela. Ele a repete automaticamente para o locutor, sem muito acreditar se ainda está sonhando ou não. Da janela aberta, onde agora se instalou, Capim lhe fez um grande, sonoro miau.

FIM DO CONTRACONTO «NATAL AZUL»

NATAL AMARELO: PARTE III

Eustáquio já havia passado Ouro Preto, onde deu uma paradinha para descansar e respirar o ar puro e luminoso que, numa trégua da chuva, deixava tansparecer o sol já forte refletindo nas ruas empedradas, fazendo delas desprender-se,  aqui e ali, em pequenas poças de água represada em desvãos, um vapor grosso de umidade. Pensou na volta de Maria José para Zé Taboão, uma coisa linda. E via Zé taboão, seu pai, algo mais envelhecido, mas ainda muito bem. Talvez apenas cansado?

 Zé Taboão aposentou. Mais ou menos, não completamente.  Não mais empregado como motorista de caminhão na TRANSSILVA  LOGISTICA  Ltda.  Bom para Zé Taboão, concordou Eustáquio consigo mesmo, ele nunca gostara mesmo muito da empresa.  O logo da firma de transportes e logística sempre chamou a atenção de Eustáquio: um oito deitado, como o símbolo de infinito na matemática, entrecruzado com um outro número oito em pé, na vertical, tudo simbolizando, ao que parece, um complexo trevo de autoestradas.

 Aposentado mais ou menos, o Zé Taboão. Pois ainda faz uns bicos, o que o deixa fora de casa às vezes por bons períodos.  Não como dantes, porém. Muda-se para Jacareí,  São José dos Campos, sede da empresa, quando ainda  empregado, e agora, sem trabalho fixo, fica por lá: —-não é assim tão mau, Jacareí, ouviu-lhe há pouco dizer, tem tudo perto, praia, montanha. Como  se ele efetivamente fosse à praia e à montanha!  Em Campos do Jordão, disse que foi uma vez só, e mesmo assim a trabalho, levando carga. Ficara encantado com a cerveja amarelo escuro que faziam lá. E tem tudo perto de casa, continua ele, padaria, supermercado.

A boa notícia, muito boa mesmo, quase inacreditável,  Eustáquio  ainda  em Coimbra, terminando o curso de direito, a linda notícia, que chegou como um pão de ló fresquinho e bem dourado à sua mesa de café da manhã,  foi que Maria José, sua mãe, havia voltado para Zé Taboão.  Sem explicações, da mesma forma como saíra de casa, deixa o namorado Vicente, resolve voltar ao lar. A separação, que tanto marcara Eustáquio, pois nunca havia compreendido bem o porquê, foi um golpe na forma como aquele menino de treze anos idealizava as coisas.  

As ideias e o pensamento de Eustáquio vagueiam, e vão tecendo um contraponto com outras lembranças, talvez menos alegres, mais próximas da realidade que encontrou ao chegar no Brasil, procedente de Lisboa .

Desembarca agora  em São Paulo, nas curtas férias de Natal e Ano Novo, já aliviado dos exames de fim de semestre em Coimbra.  Ana havia ido ao aeroporto esperá-lo, na madrugada morna e chuvosa de dezembro. Regressa ele em quinze dias, para completar o último ano e receber o bacharelado em direito, conquista  graças a muito esforço seu, mas somente possível com a bolsa da Fundação Gulbenkian, obtida com a intervenção de Cristófilo, professor de filosofia e literatura de quem ficara amigo na escola secundária .  O programa original de Eustáquio é passar o Natal com o pai e a mãe em São José dos Campos,  agora que ela havia voltado para casa. Beleza, relaxar um nada.

 Planos mudados:  espera pela chegada do pai, teve que alugar às pressas um pequeno apartamento mobiliado em São Paulo. Vão visitar a mãe, hospitalizada no São Luís, com febre amarela. Cúmulo, não podia imaginar, chega ao Brasil e de repente a mãe no hospital, vítima de uma enfermidade que pensava não mais existir no Brasil. Maria José fora ver a mãe, viúva,  em Aymorés, leste de Minas Gerais, Vale do Rio Doce, uma das regiões no Brasil onde grassa o surto da febre por conta dos mosquitos Aedes Egipti,  transmissores.  Soube em algum momento pelos jornais que muito dessa epidemia, no caso de Minas Gerais, se deve à devastação causada na flora e fauna de toda a região do Vale do Rio Doce pelo lama escorrida no desastre de Mariana, que liquidou com tudo, matou gentes, ceifou casas, bichos, vegetação ao longo de todo o vale, o Rio Doce perdeu 14 mil toneladas de peixes. Na lama foram-se sapos e outros predadores dos mosquitos que proliferaram, trazendo junto a epidemia.

 A peste!, chegou a exclamar. Estamos de regresso à  Idade Média, avaliou, do alto de sua experiência de mais de três anos no velho  e civilizado mundo europeu.   Eustáquio entra no shopping Villa Lobos, em Pinheiros, perto da faculdade de arquitetura onde Ana estuda. Quer comprar um presente para a mãe. 

Vê na vitrine de uma joalheria o par de brincos dourados, seriam de ouro mesmo, trabalhados  em linhas de uma, duas, três formas de coração formando um círculo, como trevos, e pendente uma pérola barroca linda, de uma amarelo pálido e translúcido. Gosta, mas de imediato tem dúvidas, não pelo preço, que imagina não será barato, mas para isto as economias darão. Parece-lhe  de mau gosto dar à mãe um presente  cujas cores de alguma maneira conotam a doença que a acomete. Nada disso, pensa de novo, nada uma coisa que ver com a outra. Entra na loja, pois não, diz a moça atenciosa, e pede para ver os brincos. Olha em volta, quanto brilho aqui, parecem as luzes brancas do Markburguer´s  onde teve o  aniversário de treze anos em  Itarém, longe da mãe. Sente de momento a mão que lhe toca de leve o ombro e o desperta daquela imagem macia que guarda da adolescência.

                                                 ATO PRIMEIRO

Pedro (autor)

— Olá!

Eustáquio

(Virou-se, e não viu José Taboão, nem Ana, nem Cristófilo, que iam se juntar a ele para o almoço de confraternização de Natal, e em seguida visitar a Maria José no hospital, mas uma face que não reconheceu.)

–Oi, ehh…, pois não?

Pedro (autor)

–Não me reconhece, certo, Eustáquio?

Eustáquio

–Assim, assim…

Pedro (autor)

–Nem poderia, agora. Mas o conheço de algum tempo para cá. Você talvez não poderá me reconhecer.

Eustáquio

–De fato, não…

Pedro (autor)

–Olhe, tenho que dizê-lo diretamente, meu caro filho, não há outra forma: sou um escritor nas horas vagas, e você é um personagem que estou criando. Para mim é muito importante que o autor encontre pessoalmente seus personagens, mesmo que esses não o reconheçam. O que faz sentido. Por isso me identifico. Por acaso, estava aqui neste shopping fazendo compras e o vi passar, ali mesmo à entrada. Me chamo Pedro, prazer em  encontrá-lo.

Vendedora

— Senhor, aqui estão os brincos que pediu para ver. A interrupção da atendente vendedora foi com muita delicadeza.

Eustáquio

–Sim, claro, vamos vê-los.  O senhor diz que é meu autor? Quer dizer, tomou a minha pessoa e está fazendo dela um personagem? Interessante…Eu não o conheço, o senhor me aborda assim  de repente, sabe o meu nome…chamou-me de filho e não é meu pai.

Pedro

–Queira desculpar-me chamar-lhe de filho, tampouco eu gosto dessa forma de chamar os outros. Não sei porque o chamei assim. Mau gosto. Nenhum autor aliás tem o direito de chamar qualquer personagem de filho, isso é uma besteira, peço novamente desculpas.  São bonitos os brincos, serão seu presente para a Maria José?

Eustáquio

–É.  Sabe o nome de minha mãe também. Onde nos conhecemos? Porque me escolheu para criar o personagem de seu livro? É livro, não é?

Pedro

–Conto, por enquanto. Escrevo contos,histórias, e você, em alguns desses contos, é um dos principais personagens . Não o escolhi para ser personagem, você é o personagem. Você está sendo criado. Deixe-me dizer-lhe uma coisa:  imaginei este nosso encontro fortuito, por acaso aqui no shopping,  para podermos conversar e ver se resolvemos nossos problemas comuns.Acho mesmo importante que autor e personagens dialoguem abertamente, e troquem ideias. 

–Está querendo dizer que não existo na vida real, sou apenas um personagem seu, e mesmo assim ainda em formação?

— Sei que está esperando  Ana e o Zé Taboão, mais um amigo seu, o Cristófilo, para almoçarem.  Confraternização de Natal. Posso juntar-me a vocês por alguns momentos, afinal são todos meus personagens—fora o Cristófilo, que se recusa por princípio a ser um personagem criado.  Você conhece as teorias dele…Vão ao Rascal, certo?

Eustáquio

–Moça, aqui, vou levar os brincos. É para presente, por favor. Pedro, seu nome é Pedro, pois não? Pois, como diz ser meu autor, convido-o a pagar os brincos, assim ficamos dentro do seu conto.

–Com muito gosto. Senhora, por favor, a fatura?

Eustáquio

— Depois, pedirei licença, tenho os meus compromissos, e você poderá seguir com seus personagens. Não me importo, ao contrário, até me honra que você me tome para construir seu personagem. Vou dar-lhe meu telefone, me chame quando quiser, só que agora tenho mesmo esse almoço que você advinhou e não vai dar para seguirmos conversando. Você sabe de minha amizade com o Cristófilo, também? Vejo que me investigou a fundo.

Pedro

–Ora, estamos todos juntos nisso, nesta nossa história. O Cristófilo é uma pessoa de fato muito especial.  Devo dizer-lhe, a bem da verdade, que não estou fazendo de você, Eustáquio, um personagem neste conto: você, repito, é um personagem.  Sua vida real está dentro do conto, ousaria dizer que você não existe fora desta narrativa. Sabe aquela frase-advertência que aparece antes ou depois dos filmes no cinema:  «esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com pessoas da vida real será mera coincidência»?  Para mim, autor, você é real, mas dentro da ficção, compreende, não há coincidências por cá, se bem que estou sempre à cata da coincidência. Acho que a coincidência, como defende o Cristófilo, nos aproxima de Deus, que com certeza tem algo que ver com a coincidência absoluta.

 Eustáquio (olhando desconfiado  e mesmo irritado para o autor)

–Está tudo muito bem, ô Pedro, mas, vai desculpar-me, tenho o encontro agora, tenho que ir.

Pedro

–Sim, Eustáquio, apenas um minuto.  Peço sua compreensão para o seguinte: preciso de sua ajuda, como autor; não sei ainda muito bem como desenvolver a narrativa, não estou muito certo de seu perfil, –ia dizer de seu caráter, mas você se irritaria ainda mais comigo; então, pra resumir, não estou certo de seu potencial como personagem, de sua moldura. Você, por seu lado, me parece que tem alguns problemas, alguma incerteza sobre o que fazer, que caminho seguir, agora que está para formar-se em direito, taí a Ana , vocês se gostam, ela é uma pessoa ativa, centrada na seus estudos de arquitetura. Você tomou gosto por Portugal, virá depois para o Brasil ou fica por lá? E Ana?, irá para lá também?  Ademais, que fazer de sua visão pessoal, sua vocação social, humanitária, que você esconde até agora de você mesmo, de juntar-se a alguma ONG em defesa dos imigrantes de África e do Oriente Médio que chegam em ondas cada vez mais avassaladoras  na Europa, sofridos e indefesos? Olhe, a moça o chama, não esqueça os brincos para Maria José.

Vendedora

–Aqui estão, senhor.

Eustáquio

–Obrigado, moça. Pedro, você me deixa confuso com todas essas histórias, e admito que me conhece bem…

Pedro

— Bem, eu criei esse encontro de vocês aqui no shopping, uma confraternização de Natal, vai ser legal, mas vocês verão algo surpreendente ocorrer.  Apenas não imaginei, de início, que poderia me juntar ao grupo. Posso? Assim, podemos continuar nossa conversa, e termos, todos juntos, momentos agradáveis. Depois do almoço, me despeço, e vocês seguirão para o hospital, para visitar Maria José. Ela vai gostar dos brincos, garanto, quando estiverem com ela.  Prometo não mais me imiscuir com os personagens deste conto.  Mas não resisti  à tentação de ter entrado, como autor, no meu próprio conto, na minha própria narrativa da estória, nem que seja por uns momentos que, como digo—com a autoridade de autor— serão muito agradáveis, mas também cheios de criatividade, com imprevistos à porta. Alerto, entretanto, para  um desenrolar muito triste dessa história.

–Você é meio maluco, Pedro, mas, tem a sua graça, claro que pode vir conosco, vamos ao Rascal. Por mim, iria naquela hambugueria, mas a sugestão de almoçarmos no Rascal foi da Ana. Venha então.

                        ATO SEGUIDO: NO RESTAURANTE: sentam-se à mesa Ana, Zé Taboão, o amigo Cristófilo, Eustáquio e Pedro (o autor).  Ruídos de restaurante cheio, hora do almoço.

Ana

–Gosto deste restaurante, apesar de ruidoso. Ainda bem que achamos esta mesa neste cantinho.

Eustáquio

–Bem, gente. Cá estamos, temos um convidado, o Pedro:  diz ser o nosso autor, num conto que escreve.  Sabe muita coisa sobre nós, até mesmo sobre você, Cristófilo. Apenas ignoro se você entra no conto como personagem, como todos nós outros, certo, Pedro?

Ana

–Tem nome, o conto?

Pedro

–«Natal Amarelo».  Faz parte de uma série, «As Cores do Natal».  Sem querer fazer discurso,  agradeço muito a todos vocês a oportunidade deste encontro,  não é comum os personagens admitirem conversar com o autor, ainda mais numa confraternização tão íntima e especial como esta, um encontro natalino.

Eustáquio

— Pedro, quero que tome em conta o Cristófilo. Personagem seu ou não, tem que ser uma referência. Pesquisador na Fundação Gulbenkian já há vários anos, foi o responsável por eu conseguir a bolsa para Coimbra.

Pedro

–Cristófilo, para mim é uma grande honra encontrá-lo. Admiro-o muito, como filósofo, tenho conhecimento de seus pensamentos e escritos.

Eustáquio

–Conhec i o Cristófilo como prefessor palestrante duranteo curso secundário, em Santos, ficamos amigos, conheceu meus pais, já separados, e, como pesquisador residente  na Gulbenkian, em Lisboa, e depois em Coimbra, seguimos com nossa amizade. Virou amigo da família, também.

Zé Taboão

–O Cristófilo cozinha muito bem, e até nos ensinou alguns pratos típicos da Guiné. Nasceu lá. Guiné-Bissau, ele sempre nos corrige, são agora várias as Guinés.  Paraíso dos peixes, vocês nunca viram camarões tão grandes.  Por falar nisso, vamos servindo?

(Zé Taboão levantou-se e, precedido de Ana, foi servir-se de um arroz com açafrão e frutos do mar numa grande paella. Eustáquio viu o prato do pai, achou-o apetitoso, mas aquele arroz colorido em tonalidades amarelas o deixou algo incomodado, lembrou novamente da mãe no hospital com febre amarela. Estava indignado e inconformado, como pode a febre amarela instalar-se assim sem mais por todo lado no Brasil, nordeste, centro, sudeste, uma epidemia que grassa e avança em direção aos centros urbanos. Não havia então sido erradicada essa doença no Brasil já há muito tempo, sendo confinada aos grotões florestais? É mesmo a peste, estamos de volta à Idade Média.

Naquele início de tarde, os amplos vidros do restaurante também deixavam entrar, por entre árvores, uma luz do sol amarelo dourada que ora parecia acariciar quem ali estivesse, às vezes era como se incomodasse.)

Cristófilo

–Aprendi a cozinha desde pequeno, na minha terra, a sofrida Guiné-Bissau.

Ana

–Conte pra gente um pouco da sua história, Cristófilo, o Eustáquio está sempre falando de você, está sempre citando frases suas…

Cristófilo

–Não tenho muita história, o Eustáquio é que fica a promover-me. Mas tenho uma coisa interessante na minha vida: nasci junto com a declaração unilateral de independência da Guiné-Bissau, em 1973, o que é motivo de orgulho para mim. Foi uma época dura. Lutas armadas, conflitos. A Guiné é um país muito pobre. E até hoje marcado por ditaduras, corrupção, lutas fratricidas. Um milhão de habitantes, mais de quatro etnias, mais de vinte línguas.

Ana

E os portugueses explorando, tirando de lá as riquezas que podiam.

Cristófilo

Nem tanta riqueza  assim lá tinha. Mas, bem, são as relações de Portugal com as colônias e depois com as ex-colônias.  Tive sorte, consegui ir para Portugal, para cursar a universidade. No Brasil, tive uma época como professor palestrante em vários colégios, e foi assim que conheci o Eustáquio, fiz amizade com ele a a família dele, e cá estamos.

Ana

–Você continua dando aulas e palestras no Brasil?

Crstófilo

–Sim, felizmente. Gosto muito de estar no Brasil, ver de perto as contradições e os contrastes sociais daqui, confesso que são referências permanentes para as ideias que procuro desenvolver, sabe, os dois lados da realidade…Estive há pouco na Universidade Lusófona do Brasil, a convite, para palestras. Essa universidade, fundada pelo governo brasileiro perto de Fortaleza, no Ceará, congrega estudantes dos países africanos de língua portuguesa e estudantes brasileiros. 

Eustáquio

–Para mim a realidade tem mais de dois lados, tem muitos…Conheço a UNILUSO das notícias quando foi criada. É nova. Mas, tem um cheiro velho, de mofo, pois carrega um viés «centro-periferia», Brasil brincando de ser um centro emanador de cultura, quando mal consegue ter sua própria identidade cultural. Mas, deixemos a conversa séria para depois.  Hoje, é dia de comemorarmos. Um brinde a minha mãe, que vai estar boa logo e de volta à casa, com o pai, nosso querido Zé Taboão.

(todos brindam, haviam pedido um bom vinho tinto chileno) Feliz Natal! Que a Maria José fique boa logo! Muita saúde para nós e todos!)

Ana

–O médico não disse que ela teria alta logo?

Eustáquio

–Sim, penso que nos próximos dias, está para ter alta, felizmente. Na verdade, o caso dela foi muito benigno, não chegou graças a Deus à fase tóxica da doença. Ela é muito forte. Vamos andando ?  Quero ver logo a minha mãe, estive com ela quando cheguei, e depois só agora voltamos ao hospital.

Pedro

–Queria agradecer a todos vocês a oportunidade que me concederam de encontrá-los e de ter o prazer dessa convivência, tão próxima e para mim muito emotiva, apesar de curta. Cristófilo, obrigado pelo cartão com suas referências,  espero que não se incomode se eu em breve procurá-lo, sei da sua relutância em aceitar ser um personagem.  Eustáquio, cuide bem da sua mãe.

Cristófilo

–Com muito prazer, espero seu contato. Até breve, então.

Eustáquio

–Pedro, obrigado por pagar os brincos que levo para minha mãe.

Pedro

–Ora, Eustáquio, foi um prazer, e não me custou nada. Literalmente. Lembro que estamos no mundo da ficção.  Adeus a todos.

Pedro sai , Zé Taboão atende um chamado no celular.

–Alô, Maria José! Está bem, já fala ao telefone. Como? Saiu do hospital? Com Vicente? Estão em Belo Horizonte, indo para onde, Santa Bárbara? Você está maluca? Sei…Sei…Não acredito! Tem que garantir a herança de uma mina de ouro? No cartório de Santa Bárbara, prazo vence no fim do mês?? Meu Deus!

À mesa, todos ficam em silêncio, tentando escutar as meias falas do Zé Taboão com Maria José ao telefone e entender o que se passa. Zé Taboão desliga, algo trêmulo, explica a todos o quanto pode e o quanto entendeu da c onversa. Diz que tem que ir ao hospital, para resolver a saída de Maria José, ocorrida antes de ter tido alta, na verdade uma fuga. Saiu do hospital com Vicente, mas isso não o preocupa, pois os dois se conhecem, têm já um bom relacionamento, claro que no começo da separação foi difícil.

Eustáquio, Ana e Cristófilo, igualmente ainda sem condições de absorver tais acontecimentos, seguem junto com Zé Taboão para o hospital. Lá, ficam sabendo que a administração da instituição havia entrado em contato com a polícia, haja a vista a responsabilidade pela saída de uma paciente que não tivera alta. Conseguem ademais falar com o médico de Maria José, doutor Antunes, já alertado do ocorrido pelo plantonista. O doutor Antunes tranquilizou-os:  há pouco falara com Maria José, soube que era um caso tão urgente como surpreendente, salvaguardar uma herança de uma mina de ouro, inacreditável, ia dar alta em breve à Maria José talvez dentro de um ou dois dias, no fundo ela antecipou a saída, por esse motivo extraordinário; e compreensível, no bom estado em que ela se encontra, sem quaisquer sintomas da doença. Naturalmente dissera a Maria José para cuidar-se , e regressar o quanto antes, devendo procurar imediatamente um médico local caso voltasse a sentir sintomas parecidos com os da febre.

Deu-se então uma situação de perplexidade. O que fazer. O grupo troca ideias. Ir atrás de Maria José?,  bom lembrar que ela está com o Vicente, amparada, pelo menos, está, ainda que seja pelo ex-companheiro, pelo visto ainda são companheiros, José Taboão ficou meio calado diante deste último comentário, feito por Ana, temos que saber se toda essa história é verdadeira, herdar uma mina de ouro?, melhor irmos até lá, a essa cidade, a tal de Santa Bárbara, é bem longe, e justo agora, véspera de Natal, não encontraremos passagem nos voos para Belo Horizonte, não vale a pena, de qualquer forma, pois ela disse que voltarão logo, só uma ida ao cartório, voltam em seguida, acho que vou tentar ir, minha mãe pode não estar bem, não insista, Eustáquio, quando você lá chegar, talvez nem os encontre mais, eu tenho confiança na minha mulher, ela voltou pra mim agora, se foi com o Vicente deve ser porque calhou de ele estar a visitá-la no hospital e terem visto a urgência das providências que deviam tomar para ter direito à herança, mas, que surpresa, herdar uma mina de ouro, será que ainda há ouro lá?, se tiver, estamos ricos, viva!

Em meio a essa conversa, Cristófilo não se conteve:

–E se tudo isso não passar de uma obra de ficcção? O Pedro, esse autor amigo seu, Eustáquio , nos dizia durante o almoço estarmos dentro de um conto que ele escreve, e que não passamos de personagens. Com licença, mas acho que ele inventou essa história da mina de ouro, quem sabe para dar alguma vida ao conto, mas não passa disso.

Ficaram todos mais perplexos ainda. Eustáquio se recusou logo, como aliás havia indicado a Pedro quando se encontraram, a aceitar ser um mero personagem de um conto de ficção, sem compromisso com a realidade. E asseverou: –É assim? Então, onde está mamãe? No hospital, onde devia estar, não está. Outro vácuo silencioso na conversa, antes que Zé Taboão, com a sabedoria de camioneiro recém  aposentado, sugerisse irem todos para casa, não nos metermos em viagens a essas alturas, conheço essas estradas de Minas, são perigosas, ainda mais nessa época,  e esperar novas notícias de Maria José e Vicente. Decidiram, de regresso do hospital, ir para casa, o pequeno apartamento alugado na Vila Mariana, e esperar por mais notícias dos fujões

Dia 25 de Dezembro, Natal em Santa Bárbara, Minas Gerais. Maria José e Vicente, ainda atordoados pelas fortes badaladas dos sinos na igreja próxima,  experimentam as sensações gostosas do café da manhã bem mineiro, broa, pão de queijo, café de coador, uma salada de frutas com pitanga e carambola. No terraço do hotel, onde é servido o café, as mesas dispõem-se sob um caramanchão com parreiras de uva,  que protegem os hóspedes do sol, nascido já forte com o novo dia, depois das chuvas da véspera,  com a sombra das largas folhas  e o perfume forte da fruta madura em cachos  ao alcance da mão. Vicente nota alguma palidez no rosto de Maria José, e sente-lhe a mão mais fria do que de costume. Os dois rapazes que no dia anterior bebericavam cerveja na recepção do hotel, agora sentados em mesa ao lado, tomam café.  Fazem um gesto em direção a Maria José e Vicente, e um deles se aproxima:

–Bom dia, peço desculpas por interrompê-los. Antes de mais, desejamos-lhes um Feliz Dia de Natal, em nossa cidade. Permitam que me apresente, meu nome é Luís Aveiro. Eu e meu companheiro da mesa ao lado, Júlio Pedreira, somos engenheiros da empresa SONALAM, de mineração e lavras. Fazemos no momento um trabalho de pesquisa e levantamento de prospecção de áreas de lavras de minerais não ferrosos, em especial o caolim, mas não só. Sabemos do motivo que os trouxe até Santa Bárbara, a herança da mina recém aflorada de Itajuru.  E sabemos o que devem procurar hoje, para completar o processo de garantia de posse e exploração dessa antiga lavra. Podemos sentar para conversarmos um pouco? Creio que temos condições de ajudá-los.

Vicente e Maria José, surpresos, aquiescem com gesto de cabeça  e,  já acomodados os engenheiros à mesa, Luís continua:

–a nossa empresa, a SONALAM, teve acesso, logo após o desastre de Bento Rodrigues, aos resultados de um levantamento de rotina que havíamos feito, o Júlio e eu, justamente da área onde em seguida aflorou , por pesados deslocamentos de terra com o rompimento da barragem, a mina de Itajuru. Verificamos, em primeira mão, a possibilidade, ainda remota, de retomar a exploração dessa lavra, com base nos estudos técnicos empreendidos pela empresa.  Digo em primeira mão porque também por acaso havíamos adquirido a propriedade das terras em área juxtaposta ao local onde ressurgiu a mina de Itajuru. Talvez não saibam, continuou com algo de estilo de vendedor no tom de voz, mas a SONALAM é empresa de pequeno porte, se comparada com a dimensão de uma VALE, atua somente dentro do Brasil, mas em certos casos, somos concorrentes. Essa área foi um caso em que trabalharíamos em complementação à VALE, pela presença ali de outros minerais.  De posse desses dados, a SONALAM investigou a procedência da titularidade da lavra, tendo localizado as referências necessárias junto ao cartório de títulos da comarca de Sanrta Bárbara. Foi um trabalho longo, tendo incluído, entre outras medidas, a busca da titularidade original da lavra, em terras doadas por sesmaria pelo trono português ao senhor João Alves, tetravô  da senhora  Maria José Alves.

Como vêem, resumiu, fizemos uma vasta investigação sobre a situação dessa mina recém aflorada. Boa parte desse levantamento foi feita junto ao cartório de títulos aqui da Comarca de santa Bárbara, e antes que a VALE, por exemplo, ou outra dessas grandes empresas mineradoras pudesse fazê-lo, providenciamos a carta oficial para o herdeiro, Luís Figueiredo Alves, que veio a falecer, queira aceitar, dona Maria José, os nossos sentimentos, e a carta seguinte em seu nome, agora como herdeira.

Maria José, com calafrios e ainda sem apetite, não se conteve:–não sei se devo agradecer-lhes por essa história, meio estranha, mas o que pretendem?

Desta feita, Julio adiantou-se:–dona Maria José, senhor Vicente, conhecemos os seus nomes e os identificamos com a ajuda, como dissemos, do cartório aqui da comarca. Informaram-nos da sua chegada ontem na cidade. Somos na verdade parceiros, o cartório apenas cumpre seu papel, ao informar dos requisitos para a perfeita atribuição da titularidade da mina. Por orientação do cartório, que foi igualmente dada aos senhores, partimos em busca dos livros que dão conta da titularidade original. Após longas e extenuantes viagens às igrejas da região onde poderiam estar esses documentos originais, chegamos a uma ideia bastante precisa do local onde se encontram.  Sabemos, porém, que não serão dados a conhecer senão em presença dos legítimos herdeiros, no caso a senhora dona Maria José.

–E porque querem ajudá-la?, indagou Vicente.

–Resulta, disse Luís, que podemos criar uma boa parceria, de interesse para a herdeira e para a nossa empresa. Podemos levá-los agora mesmo até a igreja onde temos informação se encontram os livros originais, fazemos em conjunto a comunicação de direito e em tempo ainda hábil ao cartório, e oportunamente propomos à herdeira a compensação devida pela concessão e exploração da lavra. Os senhores compreendem, e poderão verificar isso quando fizerem eventualmente o reconhecimento da área da mina, que a exploração da lavra exigirá altos custos. Trata-se de mina antiga, dada, à época,  pouco menos de duzentos anos atrás, como esgotada, tendo sido por isso, ademais da insalubridade do local, abandonada pelos antigos donos. Muitos escravos morreram das febres por lá. Hoje, sua recuperação depende de tecnologias de ponta, com altos investimentos. Estamos autorizados pela empresa a adiantar à senhora Maria José, caso aceitem a parceria pela exploração do ouro pelo prazo de 20 anos,  oferta de compensação muito significativa, em termos monetários. Considerem ademais que as grandes empresas mineradoras já declararam estarem desinteressadas por essa lavra, em particular devido às circunstâncias de suas responsabilidades pelo desastre do rompimento da barragem de Bento Rodrigues, não desejando explorar uma lavra que ressurgiu com essa tragédia. No caso da SONALAM, como não temos qualquer responsabilidade pelo desastre ocasionado pelo rompimento da barragem de Bento Rodrigues, não vemos motivos para não investir nesse empreendimento.

O engenheiro Júlio anda completou:–gostaríamos que soubessem que estamos de boa fé nessa proposta. A tal ponto que, caso optem por não seguirem com essa parceria, consideraremos de perfeita ordem indicarmos, sem compromisso algum dos senhores para conosco, a localidade onde temos elementos para acreditar se encontram os livros que procuramos. Devo adiantar, contudo, que os prazos estabelecidos pela Agência Nacional de Mineração são bastante curtos para que a exploração da mina seja devidamente legalizada e em seguida autorizada e ativada, sob perda de direitos bastante amplos sobre a lavra.

Subitamente, Maria José sentiu forte enjoo e, visivelmente pálida, teve um princípio de desmaio. Todos a sustentaram, os atendentes vieram, foi levada à sala de banhos. Vicente, assustado, pediu aos engenheiros que aguardassem, seria um mal súbito passageiro. Em todo caso, um médico, apesar do dia festivo de Natal, foi localizado por sorte pela recepção do hotel, e veio logo a seguir. Quando chegou, Maria José já estava bem melhor, apenas ainda fraca.  Por alguma razão, nem ela, nem Vicente, disseram ao médico acerca dos antecedentes imediatos da internação de Maria José com suspeita de febre amarela, primeiro em Aymorés, depois em São Paulo. Com certeza estavam convictos de que essa suspeita havia sido superada pelos bons prognósticos dados no hospital paulistano, a ponto de os médicos estimarem a alta de Maria José para os próximos dias.

Sem maiores referências, o médico no hotel , ao final da rápida consulta, diagnosticou «cansaço, fadiga, com retenção de líquidos», e receitou um medicamento contra enjoo, um outro diurético,  e repouso . Pediu-lhes, a ela e a Vicente, que não hesitassem em chamá-lo caso estimassem conveniente.

Decidiram regressar à mesa no terraço do hotel, onde os dois rapazes engenheiros bebericavam, agora café, não mais a cerveja do dia anterior. Maria José fez questão de dizer que se sentia bem agora. Em tempo oportuno, em seguida às estimas de melhoras, Maria José informou os funcionários da empresa que seu filho, Eustáquio, deveria chegar a Santa Bárbara aí pelo meio dia, talvez pudessem continuar a conversa na parte da tarde. Indagou-lhes também qual a estimativa da compensação monetária que pretendiam oferecer.

–Serão, respondeu o Júlio, com ímpeto de executivo , dez milhões de reais, ao longo dos próximos 20 anos em quotas anuais iguais, ou seja, a soma de 500 mil reais por ano, valores corrigidos pela inflação mais o índice de correção suplementar da indústria da mineração; mais a participação nos dividendos da SONALAM, relativos a essa mina de Itajuru, na base de 5%, igualmente durante os 20 anos, a partir da assinatura do contrato. Devemos acrescentar que, conforme nossa previsão de retorno dos investimentos a serem feitos, a mina deverá oferecer dividendos líquidos em torno dos dez milhões de reais anuais, mas somente a partir do terceiro ano de operações, o que significaria outros 500 mil reais anuais, a partir do terceiro ano , para a senhora dona Maria José. Entregou-lhes, ato seguido, uma minuta de contrato, para que pudessem avaliar.

As coisas eram bastante confusas para Maria José. De fato, parecia sem sentido tudo aquilo que conversavam ali,. essa torrente de informações, seguidas de uma proposta tentadora. No seu estado de saúde, que de momento se tornara bastante frágil, era mesmo quase impossível entender o que se passava.  Equecera-se de dizer ao médico que passara a sentir dores ao urinar. Ainda bem que havia dado um diurético, mas quem sabe não haveria alguma infecção. Ligaria de novo ao médico para indagar.

 Como que voltou a si, com a indagação do engenheiro Luís, se não seria possível irem ainda esta manhã até o local, na verdade uma fazenda antiga nas redondezas, onde se encontram os livros que procuram, visto a urgência e os prazos para a entrega das informações ao cartório:

–Não dispomos de muitos dias à nossa frente, dona Maria José, seria bom se pudéssemos já no dia 26, amanhã, formalizarmos a sua garantia de propriedade, posse e exploração da mina junto ao cartório. A fazenda não fica longe, no máximo a uma hora daqui.

Olhou para o ex-namorado, como que a pedir ajuda. Vicente ficara todo o tempo apenas a ouvir, nada dissera sobre a história dos engenheiros, e a proposta, que no seu íntimo viu como muito boa oferta, nas circunstâncias. Nada havia dito, pois a questão toda dizia respeito a Maria José, de quem se estava separando; e, de verdade, não queria tomar parte nessa questão da mina, apenas ajudar Maria José. Desde o início pensou assim, assumindo mesmo a responsabilidade de trazê-la  até Santa Bárbara, antes mesmo que ela tivesse alta no hospital. Sentiu Maria José muito debilitada desde a noite anterior, com enjoos e dores, quase sem apetite ao jantar,  de repente começou a preocupar-se, e se ela…, não, não pode ser uma recaída, parece mesmo um princípio de uma febre gripal. Sem pensar muito mais, Vicente balbuciou, inclinando a cabeça como em dúvida sobre o que diz, que a proposta parecia interessante, quem sabe não vamos logo ver esses documentos. E indagou aos engenheiros:–não é mesmo longe, esse local, essa fazenda? Não entendi porque os livros estariam numa fazenda antiga.

Os engenheiros os acalmaram, não, não era longe a fazenda do Rio de São João, chegaremos lá em menos de uma hora, fica para os lados de Cocais, passado o Caraça, perto do município de Bom Jesus do Amparo. Os livros não estavam propriamente na fazenda, mas na sacristia da importante capela barroca construída dentro do edifício principal da fazenda. Haviam chegado a essas informações depois de longa pesquisa no Santuário do Caraça, de cuja biblioteca, ao lado da igreja, os livros foram retirados ainda pelo proprietário original da sesmaria, o português João Alves, por coincidência também proprietário da fazenda do Rio de São João e para lá levados. E ainda bem que foram retirados do sítio original no Caraça, pois se teriam perdido no incêndio que praticamente destruiu o lindo prédio  da biblioteca poucas décadas atrás. Claro que se tratou de uma irregularidade, mas comum à época, os proprietários costumavam retirar por empréstimo os livros de registro arquivados em igrejas , em geral  para incorporar, por conta própria, alguma benfeitoria ou mesmo alguma aquisição de bens, antes de devolver os registros aos devidos arquivos. No caso em tela, o senhor João Alves, tetravô da senhora Maria José os manteve na fazenda de sua propriedade, por contar a mesma com imponente capela, autorizada mesmo pelo Vaticano, dadas as suas dimensões e riquezas, a manter o Santíssimo e a celebrar todos os ritos da religião católica, sendo lhe atribída a qualidade de paróquia, ainda que dentro de uma propriedade privada.  O engenheiro Júlio ainda agregou: –podemos seguir agora mesmo, caso pareça bem, em nossa camionete, é bem confortável, com ar condicionado.

Maria José deixou-se levar, se não fosse, não haveria como ter acesso aos documentos, era o procedimento do cartório, já comunicado ao dono atual . Apesar da viagem relativamente rápida, Maria José chegou à fazenda, uma magnífica edificação dos tempos coloniais inteiramente restaurada, com calafrios e muitas dores.  Recebidos pelo proprietário, conforme havia sido agendado pelos engenheiros , em acerto com o escrivão do cartório, foram levados diretamente à capela, também restaurada com parte de seus ornamentos e peças barrocas em impecável estado, à exceção do velho órgão «imperial», peça barroca do Século XVIII, mandada vir da Áustria por João da Mota Ribeiro, então residente da fazenda, com a esposa, filha de João Alves. Foram informados de que não havia ainda sido tecnicamente possível fazer a restauração do pequeno-grande órgão, sito na parte central do coro da capela, dado o seu estado avançado de deterioração. De lá, seguiram para a sacristia, onde lhes foi mostrado o registro que tanto buscavam, num livro grande, retirado cuidadosamente de um gavetão do pesado arcaz de jacarandá reservado para os paramentos dos sacerdotes e alfaias litúrgicas. Dando para a frenteira da fazenda, a sacristia possuía luminosidade suficiente para que pudessem tirar as fotos necessárias dos escritos nas páginas já bem amareladas.

A  euforia visível dos engenheiros, com o acesso aos documentos, contrastava com  o estado de fraqueza de Maria José. Vicente notou sua pele mais amarelada, quis pensar que era por reflexo do sol naquele ambiente onde a cor dourada prevalecia, seja pelas alfaias litúrgicas por sobre o imenso arcaz de paramentos, seja pelos próprios raios solares que penetravam pelas vidraças foscas de poeira. Foram levados em seguida ao salão da fazenda, para refrescarem-se antes do regresso a Santa Bárbara, e uma breve visita às demais dependências daquele grande e vetusto prédio, frequentado, ao longo de séculos, por histórias trágicas e algumas mesmo bárbaras, certamente desconhecidas dos visitantes e mesmo dos atuais donos, investidores do Rio de Janeiro que compraram, para uso familiar, a fazenda, então em estado de ruínas pelos herdeiros decadentes, nos dois sentidos, da família dos Mottas, cujo patriarca, acima mencionado, João da Mota Ribeiro (ainda lido com um «T», pois português, vindo jovem ao Brasil, originado das cercanias de Braga, a vila de Celorico de Basto). Maria José não os acompanhou nessa visita, preferiu descansar um pouco numa das poltronas  de couro que, naquele salão colonial, pouco tinham a conciliar em estilo, mas eram de todo modo confortáveis.

O sol já se havia firmado quando empreenderam a viagem de regresso, Vicente abraçado a Maria José, que dormitava e, de quando em vez, parecia delirar. Tinha febre, o ar condicionado não ajudava, pois ele sentia os calafrios da companheira cada vez mais frequentes. Pousou-lhe sobre os ombros apenas a jaqueta, fina, de algodão, que por mera precaução havia levado. Decidiu chamar pelo celular o médico em Santa Bárbara, o mesmo que a atendera no café da manhã. Trocaram informações, e Vicente pediu aos engenheiros que, ao chegarem, fossem diretamente ao hospital, por orientação médica que acabara de receber.  Maria José foi levada, já no hospital, a uma ala separada, de casos contagiosos. Muito enjoo, mal conseguia andar, os rins lhe doíam particularmente. À chegada ao hospital, o médico que a atendera, e mais outro, haviam dito a Vicente que parecia um caso de dengue, mas as complicações aparentes, e que seriam objeto de análises e exames urgentes, sugeriam algo ainda mais grave, febre amarela. Indagaram onde ela esteve recentemente, e só então Vicente pode relatar-lhes o quadro de Maria José, e a escapada do hospital em São Paulo antes que tivesse alta. Os dois médicos não podiam acreditar, «uma aventura complicada e perigosa», disse o médico conhecido, «vamos acompanhar e ver os exames», disse o outro, o do hospital, indicando que «vamos comunicar a situação da senhora Maria José Alves imediatamente ao hospital de São Paulo», lembrando-se que, de fato, o hospital havia sido notificado pela polícia de mensagem acerca da senhora Maria Alves, internada no Hospital São Luís, em São Paulo e que havia deixado prematuramente aquela instituição médica.

No corredor do pequeno hospital santabarbarense, o plantonista acerca-se dos dois médicos e lhes diz que a paciente senhora Alves perdeu os sentidos, estão tentando reanimá-la. Vicente, ao lado deles, ouve e se desepera, «não pode ser, meu Deus!». Seu telefone toca enquanto os médicos saem apressados em direção à ala separada onde está Maria José.  Atende. Eustáquio fala primeiro: —Olá, Vicente, acabo de chegar, já no hotel. Onde estão, sabe da mamãe?

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[1] «Contraconto»:  o neologismo, pelo que valha, deve aqui ser entendido pela ausência relativa do elemento dramático, tal como convencionalmente entendido. Elementos dramáticos poderão ser notados na PARTE III


[1] Fatima Pinto Coelho, Catas Altas do Matto Dentro-Minas Gerais, Editora Barléu, RJ, 2018.