.. e os ladrões levaram o ouro do Barão, escondido debaixo de cachos de banana.
Desenho: Rita Cipolatti
Contos

A FAZENDA DO RIO DE SÃO JOÃO

DA SÉRIE:
Chuva na Cuia Funda, Natal Amarelo e Outras Histórias
(Santas e Bárbaras)

–Sapucaia, meu general  Caxias.  É um fruto mesmo muito saboroso, uma noz, é de muita sustança. Dão em cumbucas que caem dos galhos, vê aquelas árvores frondosas em frente à fazenda? Vieram da Ilha da Madeira, encomenda de meu finado pai. São frondosas, vão ficar ainda mais altas, são árvores centenárias, como a jabuticabeira, mas muito mais altas. A sapucaia  é uma árvore imponente.

A Fazenda do Rio de São João. (Foto CEMIG, 2000)
A Fazenda do Rio de São João. (Foto CEMIG, 2000)

 O Major Pedro Augusto Teixeira da Motta, um dos donos da fazenda, respondia à indagação gestual de Caxias, que dava a entender não conhecer tal fruto. Assim chama o Barão de Caxias (à época—estamos em fins de agosto de 1842, o Duque de Caxias ainda era ainda Barão), de «meu general», à moda dos militares franceses, adotada pelos portugueses e brasileiros de armas. E não era para menos. Caxias, à frente de tropa legalista, havia desbaratado, em poucos dias, se bem à custa de sacrifício de vidas dos dois lados, a rebelião liberal movida em Minas pelo então Tenente Coronel José Feliciano Pinto Coelho da Cunha, abastado proprietário de terras e de lavras pros  lados de Cocais. Inspirada em semelhante rebelião na província de São Paulo, sob a liderança de Rafael Tobias de Aguiar, algumas semanas antes, a sublevação em Minas deu-se em oposição a medidas tomadas pelo chamado «Gabinete de 23 de março» (de 1841). Dominado pela facção absolutista (liderada por Senadores como Costa Carvalho, o Visconde de Mont Alegre, e Paulino José Soares de Souza), e aproveitando-se da inexperiência do jovem imperador, já sem a sábia tutela do Senador Feijó, o Gabinete de 23 de março decreta, em dezembro de 1841, as criticadas leis do Conselho de Estado e da Reforma Judiciária, contrárias a movimentos e iniciativas de cunho liberalizante, e  que vinham sendo sobretudo promovidos em algumas províncias, entre elas, São Paulo, Ceará, Pernambuco  e Minas. A nova lei eleitoral restringia o número de eleitores, e impunha controle sobre estes e aos candidatos, a lei da reforma judiciária dispunha sobre a dissolução das câmaras municipais. Eram visivelmente leis autoritárias, buscando favorecer a ordem oligárquica dos grandes proprietários, crescentemente questionada nessas regiões por políticos, intelectuais, mas também por proprietários de terras e empreendedores mais esclarecidos, que ansiavam por um sistema político menos centralizador, e mais liberal com relação às províncias. Malgrado seu envolvimento de liderança na revolta em Minas, iniciada com um «Manifesto aos Mineiros»  de sua lavra, em 10 de Junho de 1842, em Barbacena, José Feliciano é monarquista, leal ao jovem e recém feito imperador D. Pedro II. Por seu prestígio e influência na região, ademais de suas boas relações na Corte[1], tendo mesmo hospedado em sua fazenda D.Pedro I (posteriormente receberia de seu filho, D. Pedro II, o título de Barão de Cocais) José Feliciano acede ao chamado de líderes regionais e toma posse, em Barbacena, como «Presidente interino» da Província de Minas, não mais se reconhecendo o governo provincial estabelecido em Ouro Preto, do Presidente Bernardo Jacinto da Veiga. Em poucos dias, a revolta havia-se espraiado por terras adjacentes, Queluz (atual Conselheiro Lafaiete), Santa Bárbara,  Caeté, Sabará, chegando a Paracatu e a municípios do sul da província, tendo a batalha final ocorrido em Santa Luzia. A ação de Caxias, na chamada «campanha de Minas», contou com o apoio político e de tropas provinciais, algumas delas lideradas pelos «irmãos Mottas», para além das tropas vindas da capital federal .

O Exmo. General Barão de Caxias provava a noz da sapucaia, ainda sentado no sofá de palha da Índia dupla de quatro lugares, de jacarandá trabalhado, estilo «Império», em moda nos palácios da capital provincial de Ouro Preto, e recém mandado vir de Lisboa pelo Major Pedro Augusto Teixeira da Mota, administrador da fazenda, além de co-proprietário. Olhou admirado pelas janelas do amplo salão nobre, vislumbrando aquele conjunto de árvores que já formava um bosque à frente da fazenda do Rio de São João, uns cinquenta a setenta metros para além do curral de pedras largas e escorregadias emolduradas de estrume de bois e vacas, que dava ao portão de entrada da casa principal. Entardecer algo frio e seco de fins de agosto. Sem querer, seu olhar dirigiu-se, não para o lado de onde parecia vir o latido estridente e rouco de vários cães da fazenda, mas para um espaço recuado no paredão de pedras que ladeava o curral, onde se viam correntes de ferro penduradas, local de açoite dos escravos.  O espaço estava vazio, ninguém sendo castigado. Das janelas do salão nobre, a visão das sapucaias dominava, mas não impedia ver, com o canto dos olhos, à direita, a silhueta da imponente serra da Criminosa. A gente do lugar conta que nessa montanha, como de resto ocorre com toda montanha que se preze, muita coisa misteriosa terá acontecido. Ao entardecer, o sol se encolhe à frente, deixando vastos rasgos de negritude que alcançam a fazenda e lhe dão uma cor entorpecida, um lusco-fusco sombrio, como que competindo com a cor preta dos escravos, que nessa hora já se recolhem às senzalas. Sim, senzalas, no plural: a fazenda, bem organizada, dispõe de três espaços cobertos e fechados para os escravos. Nas edificações na parte posterior, para além e paralelas ao prédio principal, onde estão a forja, a tecelagem, a lavanderia e os lagares de óleo de mamona e moinhos de trigo, mais , pelo lado esquerdo, o engenho de açúcar, localizam-se duas senzalas, para os homens e os escravos casados. A terceira, ao rez do chão da casa senhorial, para as escravas solteiras.  

Pois dizem que lá no alto da serra, em meio à vegetação rasteira que luta pela vida em meio à sequidão e à dureza da hematita e do granito, aconteceu uma morte misteriosa. Foi aos tempos da construção da fazenda do Rio de São João, à época uma edifcação bem  modesta. Um feroz crime de morte, no dizer das más línguas, e que terá dado o nome à serra.  Pelas dúvidas, pois poderá não ter sido crime, e sim um acidente infeliz, e por aí nem de todo incomum, o nome da serra ficou no feminino:  criminosa é a serra, alta, perigosa com seus desvãos e pedras roladiças e capoeiras profundas, que num pisar em falso fazem facilmente desaparecer uma pessoa.  Ocorreu que nas suas encostas, numa tarde tempestuosa, perdeu a vida o filho do rico João Teixeira  Alves, esmagado ao cair-se-lhe por cima um tronco grosso de uma copaíba seca atingida por um raio. Tinha o filho o mesmo nome do pai, também morto, em circunstâncias pouco esclarecidas, pouco depois de dar a mão da filha única, Maria de Jesus Teixeira, ao nosso patriarca, João da Mota Ribeiro, então com seus vinte e cinco anos, e à época seu empregado como administrador de suas lavras e capataz na fazenda de Itajuru.  João Alves recebera em sesmaria das mãos del rei do João VI, da mesma forma que as terras e a mina de Itajuru, a porção onde recém construíra a fazenda do Rio de São João. Era então uma edificação bem modesta, uma pequena morada que veio depois a integrar, à esquerda, a casa principal. Não chegou a viver lá, tendo deixado a fazenda para ser ocupada pelo filho. Vindo este a falecer, a filha, Maria de Jesus, e o marido, João da Mota Ribeiro, mudam-se de Itajuru para a nova fazenda. Com muito empreendimento, dão-lhe a dimensão extraordinária que apresenta aos olhos do Barão de Caxias.

 O Barão reparou no teto do salão, em quatro planos convergentes, forrado em esteira fina de taquara «tecida em mosaicos e protegida nos quatro cantos por largas abas de cedro fingidas em mármore azul-róseo», nas palavras do cronista. Sentia-se bem, chegara nesse dia mesmo à fazenda com sua tropa de 840 homens, para merecido descanso depois das fatigantes batalhas de Caeté,Sabará e Santa Luzia. Com duas colunas «da legalidade», de 600 e 800 homens, e recém chegado da Corte, estivera em Ouro Preto, capital da Província, reunido com o presidente Bernardo Veiga. Soubera, por seus comandados, em especial o tenente mais próximo, Carlos Miguel de Lima, das atrocidades que vinham sendo cometidas pelo governo em Minas, à frente o brutal Chefe de polícia Vasconcellos, contra a população e os revoltosos ou  parentes que conseguia prender, e ficara indignado sem nada poder fazer no imediato. A conversa com o presidente provincial foi mais bem sobre a oportuna—para Caxias e o governo da província—decisão estratégica do batalhão revoltoso, com cerca de 3 mil homens, sob a chefia do Coronel Manoel Antônio da Silva, de não atacar Ouro Preto, estando já às vistas da cidade na ocasião sem maiores defesas, retirando-se para o Brumado, preferindo convergir as forças em direção a Caeté e Sabará.Tal decisão, nunca bem esclarecida, iria custar aos insurgentes a própria causa ao perderem a única oportunidade de dominar a capital da província e o governo, pois em seguida chegam do Rio Caxias e o célebre Batalhão 8º, invertendo, não sem perdas importantes, o rumo dos acontecimentos.

É de notar que as atrocidades contra os mineiros revoltosos e suas famílias não ocorriam apenas em Ouro Preto. Caxias com certeza sabia que do Batalhão 8º, das forças que levava do Rio para Minas, fazia parte a tropa chamada «de linha», composta por presos, assassinos das Casas de Correção, pretos africanos, feitos às pressas cidadãos brasileiros: eram «nuvens» de Nagôs e Minas, de origem na Guiné e em Moçambique. Protegidos pela Proclamação do Imperador de 19 de Junho de 1842, e em seguida, do Aviso de 23, do mesmo mês, do presidente da província, o Visconde de Abrantes, documentos que determinam o sequestro de bens daqueles que tenham aderido aos movimentos, essas tropas provocam devastações e saques pelo interior de Minas afora, por onde passam. Mesmo lá no Rio de Janeiro, na Corte, o movimento em Minas causa baixas: os dois irmãos Andradas foram «exauturados» (bela palavra, em português castiço, com certeza bem mais digna do que apenas se referir à «destituição») das honras de oficiais da Casa Imperial. Os Junqueira, de São João del Rei, foram assassinados pelos escravos.

Tudo isso havia passado. Em 1º de Setembro de 1842 a província foi oficialmente dada por pacificada. Como em São Paulo, meses antes, onde os chefes revoltosos, Rafael Tobias de Aguiar e o Senador Feijó haviam sido presos, depois da rápida campanha militar chefiada por Caxias, os chefes da insurgência mineira, após a derrota em Santa Luzia, em 20 de agosto, haviam sido presos: além dos irmãos José Antônio e José Pedro Dias de Carvalho e Teófilo Ottoni,  estes deputados à Assembléia Geral, foram encarcerados João Gualberto Teixeira de Carvalho, Joaquim Camillo de Brito, vigário de Barbacena, padre Manoel Dias de Couto Guimarães, Francisco Ferreira Paes.  Na madrugada do dia 19 de agosto, sempre em Santa Luzia, o chefe da insurgência e ainda «presidente interino de Minas», tenente coronel José Feliciano Pinto Coelho da Cunha, alegando estar muito enfermo, retira-se de Santa Luzia, «pelos lados da ponte grande». De há muito havia previsto o fracasso do movimento—que, para ele, diga-se de passagem, nunca deveria ter-se constituído em revolta armada, e sim em protesto de natureza política. Dias antes havia enviado os colegas Mello Franco e o Coronel Souto em missão de rendição  junto a Caxias, sem êxito. 

Os cães continuavam a ladrar, agora mais perto. Ruidos de cavalos e, de repente, adentram o salão, ainda com botas e esporas, os dois irmãos de Pedro Augusto : o  coronel  da Guarda Nacional João da Motta Teixeira, cavaleiro da Ordem da Rosa,  e o coronel da Guarda Nacional Joaquim Camilo Teixeira da Motta. Vinham em seguida, por tardarem em descer de suas montarias, éguas conforme o costume mineiro da época, suas mulheres, repectivamente D.Francisca  Pinto Coelho e D. Maria Josefa Teixeira da Fonseca Vasconcelos, aquela sobrinha de José Feliciano , o futuro Barão de Cocais, esta filha do Visconde de Caeté, José Teixeira da Fonseca Vasconcelos, amigo da família Motta e ele próprio casado com uma irmã dos Mottas ali presentes, D. Teresa Maria de Jesus. (Por essa época, por alvedrio dos escrivães ou por modismo, o nome «Mota» começou a escrever-se também «Motta».)

Saudaram de imediato o «caro» general Barão de Caxias, desculpando-se por não chegarem mais cedo: –Meu general, estivemos na nossa Quinta do Lago, vindos, como Vossa Excelência do campo de batalha em Santa Luzia, abraçamos nossas queridas esposas e viemos ao vosso alcance, disse o primogênito João da Motta, com a verve de um grand seigneur e a impulsividade de músico amador—que era– junto à Corte, acrescentando: –e sabemos que nosso irmão e sua querida esposa Ana Cândida, e também sobrinha, pois filha do Visconde de Caeté, meu cunhado, já o terão posto à vontade, assim como à sua tropa, nesta vivenda, modesta, mas de grande espaço e coração para abrigar de forma protegida, debaixo de telha, a toda a sua soldadesca. Joaquim Camilo, político e deputado em grande forma, saudou Caxias também com muita elegância, mas em tom mais moderado, como convém a uma personalidade mais contida. Houve troca de amabilidades entre as mulheres, recém chegadas ao salão junto com a dona da casa, Ana Cândida, e Caxias. Naquele fim de tarde, parecia uma cena do filme «E o Vento Levou», antes que a guerra explodisse. Ali estavam os escravos do senhorio servindo broa de milho, biscoito polvilho, sucos e vinho madeira. João Evangelista, moleque ainda nos seus quinze anos, e a mãe, Brasilina, eram quase da família. Mas, foi preciso que João Evangelista, empenhando-se em servir as sopas e o bambá de couve com troços de carne de porco e torresmo a toda a soldadesca faminta, ganhasse de muitos deles, em agradecimento, uns trocados bem achados, juntasse esse dinheiro e fosse implorar ao senhor Pedro Augusto, seu amo, a alforria paga da mãe Brasilina. Quando nada, a visita de Caxias ao Rio de São João servirá  para a liberação de uma escrava. Já é algo. 

Caxias, no primeiro dia de descanso na fazenda, e, tendo ali chegado às primeras horas da tarde, ainda meio desnorteado naquele vasto ambiente colonial, que não sabia porque lhe dava uma impressão sombria, foi conduzido pela mão da dona da casa, Ana cândida, à ampla sala de jantar, cujas janelas se encontravam fechadas, já que davam para a varanda onde, após a ceia, sonoleava parte da soldadesca mais graduada. Juntam–se à mesa, com Caxias, dois oficiais de seu estado-maior, o engenheiro Fernando Halfeld, da estrada de Ferro do Paraibuna, e o já antes referido tenente Carlos Miguel de Lima. Do lado dos três irmãos anfitriões e suas esposas, um estranho, um certo Jaques Azambuja Dermott . Pessoa inteligente e loquaz, um atirador de primeira, as más línguas diziam ser criminoso, foragido.  Bisneto de família holandesa, nascera no Rio de Janeiro filho do pai holandês aventureiro metido em tráfego de escravos, e da mãe portuguesa, viera dar com os costados nessas bandas das Minas Gerais, no comércio do ouro, tendo nesse afazer conhecido  João da Mota Teixeira e filhos. Era na verdade um guarda costas dos Mottas, em nada truculento, jeitoso, meio baixote, e que havia caído nas graças da família. Em suma, um esperto pistoleiro. Executava qualquer ordem dos irmãos Motas. Casou-se  com uma filha bastarda do finado João Alves Filho, sendo assim agraciado com a Fazenda do Rosário, então mais bem um empório entreposto dos produtos da Fazenda do Rio de São João, um quilômetro adiante, na estrada para Bom Jesus do Amparo. Abandonou, ao casar-se, Itajuru e a mina que lá havia, pelo esgotamento do ouro, mas também por estar essa região afligida pelas febres.

As empregadas vieram com travessa de canjiquinha e costelinha de porco, iguaria que a poucos mineiros é dado conhecer até hoje, somente aqueles que vivem ou viveram nessas terras coloniais do ouro e agora sobretudo do ferro.  A canjiquinha foi acompanhada, como até hoje, de costelinhas de porco cozidas no fogo baixo em panela de ferro. Trouxeram também couve, arroz vermelho, galinha ensopada e feijão tropeiro com linguiça e torresmo, mais uma série de verduras fresquíssimas refogadas: almeirão, taioba, mostarda, beldroega e xuxu. Houve um brinde com o vinho madeira promovido pelos anfitriões, que deram vivas à pacificação de Minas, com votos à saúde de Caxias e de todos os presentes. O general vitorioso em Santa Luzia estava visivelmente cansado, afinal viera para a fazenda dos Mottas para descansar. Os irmãos anfitriões, que tiveram parte ativa na campanha já longa de meses contra os revoltosos, notando a atitude silenciosa de Caxias, evitaram tocar demasiado no tema saliente das batalhas finais. De qualquer forma, trocaram impressões atualizadas sobre o destino dos líderes do movimento presos em Santa Luzia, e que agora são, soube-se depois, levados à pé, de forma impiedosa, para a prisão em Ouro Preto, onde aguardariam o julgamento. Caxias, por seu lado, experimentaria, para além do cansaço, compreensível constrangimento com o fato de serem os Mottas, em cujo seio agora era albergado, tão ligados por laços familiares aos Pinto Coelhos e ao próprio Tenente Coronel José Feliciano Pinto Coelho, chefe dos insurgentes em Minas. Com efeito, sentada ao seu lado, estava Dona Francisca Pinto Coelho, mulher de João da Motta Teixeira, sobrinha em primeiro grau de José Feliciano. Eram de fato famílias amigas, duas grandes oligarquias mineiras, mas que se puseram, tanto como possível, de lados opostos durante o movimento, que veio a chamar-se revolta liberal, como a que se deu em São Paulo meses antes. Houve no entanto um momento em que a conversa  acabou por incluir indagações acerca do paradeiro de Jose Feliciano. Recordemos que o ainda «Presidente interino de Minas Gerais» e chefe dos insurgentes havia deixado Santa Luzia de madrugada, às véperas do confronto final com as tropas imperiais comandadas por Caxias, no dia 20 de agosto de 1842,  Na ocasião, teria alegado aos seus comandados próximos e líderes do movimento estar muito enfermo. Partiu sem ter recebido, da parte de Caxias, resposta à sua proposta de rendição, enviada dias antes por mensageiros de confiança. Como disse Caxias aos anfitriões, ali mesmo, à mesa de jantar, na Fazendo do Rio de São João, havia ordem de prisão contra o Tenente Coronel José Feliciano. Suspeitava, porém, diante da extensa lista de serviços à Guarda Nacional e ao Império por esse grande empreendedor e proprietário, cuja liderança política na província era amplamente reconhecida, que o Tenente Coronel José Feliciano poderia ser agraciado com indulto do Imperador. Reconheceu ademais que José Feliciano, na liderança do movimento revoltoso, havia sempre manifestado fidelidade ao Imperador e defendido uma ação política de protestos, e nunca a ação pelas armas, tendo sido voto vencido entre os demais lideres da insurgência.

Ficou evidente entre anfitriões e convivas a satisfação com que foram recebidas essas declarações do General Barão de Caxias. Dona Francisca Pinto Coelho, sobrinha de José Feliciano, não se conteve, fazendo ao general, mesmo sentada, longa vênia de agradecimento, quase engasgando-se com o doce de figos em calda com queijo da fazenda, que a essa altura era servido junto com cocadas branca e preta, doce de mamão vede ralado, ambrósia, e doce de leite com requeijão quente, feito na hora. Houve também, a propósito, e na linha de justificar um merecido indulto, comentários diversos dos anfitriões sobre o estado precário da saúde de José Feliciano.  Ouviram-se  considerações adicionais sobre a fortuna de José Feliciano, grandemente acrescida, conforme  voz corrente, com a súbita e extraordinária produção de ouro em duas de suas lavras, prós lados de Cocais, entre elas a mais rica, a de Congo Soco. Dona Francisca, talvez inspirada pelas taças de vinho madeira com que acompanhou a refeição, e talvez até mesmo em gratidão pelas palavras confortadoras de Caxias, chegou a confidenciar aos presentes os planos de José Feliciano, que preparara antes do início do movimento, para enviar ao Rio de Janeiro por tropa em lombo de burros, centenas de barras de ouro sob o disfarce de cachos de banana. No Rio, as barras de ouro seguiriam para depósito em sua conta no Banco de Londres. Como ativo comerciante de ouro, Jaques Dermott interessou-se particularmente por essas informações dadas casualmente por Dona Francisca, e que fizeram brilhar os olhos de outros convivas à mesa. Como previsto por Caxias, José Feliciano foi julgado, condenado, e indultado pelo Imperador, que por demais lhe agraciou com o título de Barão de Cocais. E é fato que até hoje os descendentes de José Feliciano Pinto Coelho da Cunha, que se consideram  «herdeiros», mantêm a esperança de recuperar junto ao Banco de Londres a fortuna do Barão, parte da qual teria desaparecido nos altiplanos da serra da Mantiqueira, consequente a ataques a tropeiros na rota da Estrada Real que vai de Minas ao Rio de Janeiro, por bandidos bem informados da carga levada escondida no lombo dos burros, debaixo dos cachos de banana.

Do outro lado da porta para a cozinha, e sempre atarefados no serviço à mesa, lá estão o moleque João Evangelista e a mãe Brasilina. O moleque tem entre suas tarefas manter cheios os copos com água, que retira de uma talha de barro com torneira que, de tanto vazar, criou furo no chão da sala de jantar, feito de madeira dura de peroba. Quantas vezes, ao longo de sua curta vida, não fica olhando pelo buraco as galinhas ciscando e os cachorros soltos, embaixo, no rez do chão, neles  vendo a imagem da liberdade. Terminado o jantar, anfitriões e convivas se retiram para um cordial e café no salão nobre. Exaustos pelo serviço de mesa e logo em seguida também na cozinha, Brasilina e o filho João Evangelista sentam-se num banco, na varanda. Foi João Evangelista quem falou primeiro:

–mãe, tá cansada, né? Pois daqui a pouco vai ser livre, vou pagar pela sua alforria, já falei com o amo.

–sei, meu flho, Deus te abençoe, Nossa Senhora do Rosário, nossa protetora dos pretos vai estar com você sempre. Mas, eu, o que faço se me libertarem, pra onde vou? Que vou fazer longe de você, meu filho. Estou velha, fico por aqui mesmo, o major seu Pedro é um bom homem, está muito doente, sabe, mal da cabeça, e ainda jovem. Tenho que cuidar dele. A senhora dona Ana Cândida é muito bondosa comigo. Mesmo liberta, se quiserem que eu fique, eu fico. Se não, não sei. Tenho tido umas visões muito tristes, não de mim, pobre coitada, mas dessa gente, e dessa fazenda.

Brasiliana fica por instantes silenciosa, logo não se contém: –Estou velha, morro logo, mas você infelizmente verá coisas muito tristes por cá. Cada um deles, dessa gente Motta, é de bom coração; mas, este lugar, esta fazenda, com todas as histórias de escravos sofridos, e mais o ar pesado que ronda essas paredes, não está para boas coisas. Mortes lá em cima, na Serra da Criminosa, roubos e brigas cá embaixo, casamentos suspeitos, heranças mal entendidas e contrariadas. E quando os escravos se forem, pois um dia todos serão libertados, viu o que disse o Cônego Marinho no sermão da missa, quando veio cá semanas atrás, defendendo a insurgência liberal, bem na frente dos Mottas, em tom de muita provocação: o desacerto, brigas. Ele, sim, podia dizer isso aqui, alto e bom tom, pois é amigo dessa família, e os Mottas o protegem, honram os amigos, ainda que sejam seus inimigos políticos. Mas vá mexer no bolso deles, taí o seu Jaques, pra por as coisas no lugar, eta pistoleiro de primeira. Acontece que eu tenho minhas visões, não consigo apagar de minha cabeça o que vai vir por aqui, primeiro, nosso amo, o major seu Pedro, já está mal da cabeça,  vou te dar um conselho, meu filho, quando for livre, vá embora, os ventos por cá não são bons, esta fazenda vai entrar em ruínas, os filhos e netos dos donos que herdarão tudo isso vão viver do que receberam, não saberão lidar com o mundo novo de como tratar e cultivar a terra sem escravos, ficarão enrustidos,  Enganarão os pais, ainda proprietários honestos, deixando os irmãos e a irmã deserdados, para quê? Para verem a fazenda ir-se aos pedaços, a capela ser depredada,  e os herdeiros donos ilegítimos da propriedade fugir quando acabar o dinheiro da venda das antiguidades, verdadeiras e falsas que forjaram, deixando para trás o mato e ruínas. Virá depois, muito tempo depois, um investidor, alheio à história e à tradição do lugar, para restaurar o patrimônio edificado. Mas não conseguirá recuperar a riqueza das vidas cá vividas, as agruras e venturas sofridas aqui, nessa fazenda por enquanto tão senhora do nosso sustento de nossas vidas e tão cheia de grandes senhores donos das terras e das gentes. O resto será história.

Olhou para o filho, que cochilava suavemente enconstado em seu ombro.  Despertou-o em silêncio, e foram, com passos carregados de sono e pesados do trabalho, para o quartinho ao lado da cozinha onde dormiam. Já passara da meia noite.


[1] «`A frente do movimento, um ´homem distincto por sua fortuna, nascimento e afferro à Monarquia Constitucional`», conforme citação do Cônego José Antonio Marinho, no seu livro: Historia do Movimento Politico que no Anno de 1842 teve lugar na Provincia de Minas Gerais, 2º vol., Typ.Imperial e Constitucional de J. Villeneuve e comp, Rua do Ouvidor 65, Rio de Janeiro, 1844