Claro que todo esse processo epifânico não se dá a toda hora ou a toda refeição solitária. Nem mesmo precisamos de uma refeição para experimentá-lo. A serotonina que se liberta de nosso corpo num exercício físico prolongado; o ar fresco que se aspira a beira mar ou no alto de uma montanha; o perfume de uma flor; a beleza de um poente; o abraço de uma criança; o tema do segundo movimento da nona sinfonia de Beethoven com a ressonância sublime dos violoncelos; uma noite cheia de estrelas; a hora eterna do amor; um poema de Fernando Pessoa; o nadar suave de um peixe; a Sagrada Família, de Rubens; o intricado mundo de Riobaldo e Diadorim no Grande Sertão e Veredas de Guimarães Rosa; as ondas gravitacionais de Einstein e a demonstração que faz da velocidade da luz como limite máximo e inalcançável do movimento da matéria e da energia; o sentir a grama fria e orvalhada da manhã sob nossos pés descalços, na sugestão feliz de algum autor inglês—o que mais? uma caminhada pelas montanhas tibetanas?, uma dança com sapateio e canto num «tablao» andaluz, ou a dança libertadora de Elektra?
Deixo aqui o espaço de todo o universo e não será suficiente para albergar essa série maravilhosa, essa miríade de experiências e sensações que temos bem guardada e que acrescentamos a cada momento, e que costumamos identificar com a Vida, com V maiúsculo.
Pois bem, podemos descrever milhares dessas sensações e experiências epifânicas que a vida nos agracia e que não estarão necessariamente ligadas à ideia do alimento. Nesta perspectiva, podemos nos passar do alimento. Podemos, teoricamente. Por quanto tempo? E certamente a um preço. Alguém mesmo já sugeriu que o jejum será a mais completa das dietas: the ultimate diet; e ao jejum está sempre ligada a mais profunda e completa meditação. Em todos os casos, simplesmente, falamos dos nossos sentidos, aos quais se ligam muitas de nossas experiências, e penso custar-nos caro omitir o sentido do gosto, do paladar.
Veremos então que são dadas ao comensal solitário condições particularmente favoráveis para ter experiências vitais, a partir de uma perspectiva muito pessoal. Aqui, nesse contexto temático, os extremos se unem, o jejum e a refeição solitária, o Pão Nosso de Cada Dia, e o ascetismo da ausência voluntária do pão. Senão, vejamos.
Considero estes ensaios como um «Conto Conceitual», ou, se quiserem, um «contraconto», pelo que valha o neologismo. Não me sinto obrigado, como Sherazade, a alugar ou emprestar a sua narrativa, inventando estórias maravilhosas para satisfazer a meu editor Xarir e assim salvar-se das ameaças de morte literária que o emir-editor todo poderoso lhe faz.
Admito que minha narrativa pessoal, de momento, da refeição solitária, seja morna, insípida e sem proveito, como diz Hamlet das coisas deste mundo. Por isso, um «contraconto».
Mas, é autêntica, me traz às origens. Parece certo, contudo, que grandes histórias, ou inspiradas narrativas não contemplam essa condição do comer solitariamente, pelo menos não em primeiro plano. Assim acontece com as grandes tragédias sheakespereanas ou gregas. Othello passa, com Desdêmona, do amor mais sublime ao crime de feminicídio mais covarde sem provar sequer uma azeitona, muito menos solitariamente. Verdade que Iago embebeda a todos para poder construir sua trama, mas, justamente, faltou comida.
Os grandes monólogos ou reflexões atemporais, o ser ou não ser de Hamlet, não se acompanham de refeição. Peço desde logo desculpas por falar tanto de Hamlet, mas ocorre que ele, se jamais comeu algo algum dia, o terá com certeza feito solitariamente, escondido por detrás de algum monólogo reflexivo.
Aliás, conforme a ideologia característica do período do Barroco, para ficarmos com o exemplo de Shakespeare, e a importância que ali se confere aos afetos pessoais, pensar não combina com comer e beber, ao contrário, alimentar-se e entorpecer-se parecem atividades vinculadas.
Reflexão e alimentação são coisas distintas, em muitas épocas e ideologias, não só no barroco. Mais vale o jejum, solitário ou não, para o bem da religião e da reflexão. Mas, curiosamente, não para a política: a magreza pode ser vista negativamente. Pessoas magras, que não se alimentam, não são confiáveis. Insatisfeitas com a vida, dormem pouco, pensam muito e são predispostas à traição.
Em Julius Caesar, Shakespeare põe na boca de Caesar comentários, que faz a Mark Anthony, premonitórios sobre Caius Cassius, quem em seguida se revela ser o conspirador-mor contra ele:
«Let me have men about me that are fat; Sleek-headed men and such as sleep o’nights. Yond Cassius has a lean and hungry look; He thinks too much: such men are dangerous»
Shakespeare, W. Julius Caesar, Ato I, 192.
Reflexão e alimentação são portanto coisas distintas, se relacionam de forma diversa em função de épocas e ideologias. Mesmo nos tempos de Caesar, a relação mencionada acima, de independência entre a reflexão e o alimento, pode ser mutante, se vista numa perspectiva não-barroca: Cristo com certeza terá sido um Homem magro? E escolheu o momento da refeição, a Última Ceia, para derradeiramente antecipar Seu Sacrifício para a abertura das fronteiras de todos os mundos e a redenção do Homem. Há que ver o caso nos tempos em que vivemos.
A comida não é, obviamente, apenas uma fonte de nossa energia, e o elemento de que dependemos para sobreviver, fisicamente. Na refeição, interagimos com nosso entorno, nos integramos no mundo. A reflexão lhe é portanto uma consequência lógica, está inerente ao processo. Mais ainda na refeição solitária, onde o pensamento está livre do peso das palavras. Sim, as palavras pesam, e quanto!
Comparada com o ato de pensar, a palavra—por vir nas frases sempre uma após outra, linearmente– é uma tortura, como se sabe desde Locke e Saussure. Ou pelo menos um grilhão, que somente os poetas conseguem quebrar, sempre a custo de muita dor, a dor que o poeta de Fernando Pessoa finge, mas que deveras sente.
Já o pensar é livre, como dizia Millôr Fernandes. E geralmente indolor, se desligado da consciência. Pensamos tudo ao mesmo tempo. Reflexão vem por atacado, podemos juntar mil e uma noites num átimo de segundo, dizem que a vida toda nos passa pela mente no segundo antes da morte, vá ver quantos livros você gastaria para contar sua vida em palavras. O quadro mais famoso de Fernando Pessoa, pintado por Almada Negreiros, o mostra sentado à mesa, solitário com seu café e o cigarro. Com certeza, Fernando Pessoa tinha ali, naquela mesinha, ao beber o café solitariamente, um momento de reflexão disponível.
Contrariamente, já numa mesa gregária, seja um tête à tête, ou um banquete político ou de confraternização, a palavra reina, tem prioridade quase absoluta. Reflexões vão para um segundo plano, à exceção talvez das refeições silenciosas nos grandes refeitórios comunais dos mosteiros medievais…