Meio dia. 12 horas. A cena: qualquer parte do nosso planeta, antes da pandemia do novo corona virus. Com as adaptações respeitosas aos tempos trágicos de covid-19, se carrega de muita fé, de tal forma que possamos imaginá-la no futuro não tão distante. Vê-se um marmiteiro, de colarinho branco ou azul, um trabalhador de escritório ou de construção, a procurar um canto, a sombra de uma árvore, para fazer a refeição sentado num banco da praça, na relva, ao meio-fio, no desvão do caminho.
Boa parte das vezes, está sozinho. Mesmo no restaurante. Dizem as estatísticas que em qualquer restaurante, qualquer um, caro, barato, médio, boa/má cozinha, a quilo (prática assaz disseminada no Brasil, e lamentavelmente nem sempre acompanhada das garantias de qualidade) ou à la carte, 15% dos clientes, almoço e jantar computados, são de pessoas que comem a sós. Quinze por cento. Bastante. E o que faz essa gente enquanto come? O que pensa nosso marmiteiro brasileiro, em frente do canteiro de obras, o camioneiro no posto à beira da estrada, enquanto come o arroz com feijão, a carne seca, ou de panela, com farofa e talvez uma cenoura cozida, passoca e uma banana? Ele deixa o pensamento voar pelo seu mundo, enlevado às vezes pelo tal manto diáfano da fantasia, fica livre. A refeição solitária liberta. Por vezes, apenas por momentos, é certo, mas, como veremos, são instantes que tendem a eternizar-se.
Noto desde já existirem dois pólos, no que diz respeito a uma teoria para entender o comensal solitário: num dos pólos, está aquele que faz a refeição a sós por necessidade. Não tem companhia para o almoço ou para o jantar. Está em casa, sozinho, ou está fora, mas sem companhia. Não sei se concordariam com a minha percepção de que, muitas vezes, a pessoa, nessa condição, e estando na rua, procura o lugar menos evidente, ou mais calmo, para fazer a refeição: menos chances de interferências no processo de descoberta sempre renovada de si próprio, ainda que talvez nada disso lhe passe pela mente.
No outro polo está o indivíduo que come a sós espontaneamente. Os «gourmets», os habitués, ou outros que procuram voluntariamente o isolamento ao comer: executivos, muitos chefes de empresas (por vezes com algum constrangimento, pois «it is lonely at the top»), ou mesmo líderes políticos (ouvi contar que o atual Presidente de Portugal, por exemplo, costuma dar preferências a refeições feitas solitariamente); ou quem sabe o chef de cuisine ao isolar-se para experimentar, sem a interferência de comentários, a nova criação. Acredito que todos nós outros, o comum dos mortais, nos encontremos em distintos pontos entre esses dois pólos, uns mais para um lado, outros mais para o outro lado. Compreensivelmente, muitas vezes pulamos de um polo a outro, ou nos movemos para lá e para cá dentro desse espectro. Para os efeitos gerais deste ensaio, digamos que bem ao meio dessa linha entre os dois polos se coloca a refeição solitária sem qualificativos, um misto de precisão e espontaneidade, e onde provavelmente nos encontramos, na maior parte das ocasiões.
Permitam-me retornar à questão da Última Ceia e indagar se o Cristo, na ocasião, teve uma refeição solitária, mesmo que acompanhado de seus Apóstolos. Foi sua última Ceia e as narrativas, nos Evangelhos, se concentram naturalmente nas Palavras do Senhor. Diálogos, se os houve, estarão em plano subsidiário. A julgar pelas pesquisas arqueológicas a respeito[1], tratou-se de uma Ceia variada, e diria eu, pode-se imaginar longa no tempo interior do Cristo, mas objetivamente composta não só de pão e vinho, mas, quem sabe, de acepipes como guisado de cordeiro, tâmaras, feijão ensopado, azeitonas, molho de peixe (creio que se trataria do molho de peixe produzido em terras lusitanas da época, e apreciado pelos romanos), ervas amargas. O pão, por ser época da Páscoa judaica, era sem fermento, e o vinho adocicado (tenho por mim que seria adocicado com mel, costume judaico até hoje: fazem, em Israel, um molho de vinho tinto a que acrescentam mel, e que vai muito bem com pato assado, por exemplo).
Mais ainda, o jantar/ceia ter-se-ia dado num andar superior de uma casa em Jerusalém. Bem, verdade que todas as casas de Jerusalém têm um andar superior, o que portanto não quer dizer muito. Nada de mesas retangulares, tão ao gosto de pinturas famosas, como a de Leonardo Da Vinci, onde se vê a geometria renascentista exposta com todo o esplendor. Jesus sentou-se reclinado com Seus Discípulos em almofadas no chão e tapetes, à moda romana, o que pressupõe, cabe admitir, conversas ou diálogos.
Acontece que se trata de momento sublime, tornado simples bem à maneira cristã. Daí, justamente, a questão: como no Jardim das Oliveiras, Jesus orava, a refeição, para Ele, se deu num plano superior, muito superior, o da Revelação e da Transfiguração: pão e vinho, corpo e sangue de Cristo. Ora, Seus Apóstolos presenciaram essa oração, mas certamente em outro plano mental, abaixo do plano espiritual de Jesus. Como poderiam estar no mesmo plano espiritual do Filho de Deus Feito Homem?
Assim, no que nos interessa neste ensaio, creio que podemos considerar, numa determinada perspectiva—dentre tantas possíveis, que o Cristo fazia a sós a sua refeição, a Última Ceia, estando porém sempre junto com Seus Discípulos. Retomaremos mais adiante essa questão da refeição a sós à mesa partilhada por outras pessoas.
Como ilustração, talvez pudéssemos transpor para um plano de almoços ou jantares de trabalho, na cultura de nosso mundo contemporâneo, uma situação crítica na qual um líder religioso, político, diplomático ou empresarial preside à discussão de um determinado tema. Como é óbvio, não haverá distintos planos mentais ou espirituais, mas provavelmente haverá um debate, mais ou menos acalorado, mais ou menos intenso, e dificilmente o silêncio conducente à reflexão solitária, vez que todos os participantes, por definição de um encontro de trabalho, terão um interesse utilitário, se não em falar, pelo menos em ouvir. A refeição a sós à mesa partilhada por outras pessoas pode ocorrer, mas será sempre um caso particular. E haja concentração, por parte do comensal solitário que partilha a mesa com outras pessoas!
Voltando ao almoço de hoje, sexta feira. Vejo, da mesa na cozinha de nosso apartamento na Vila da Parede, em trecho esgueira/beira-mar na Avenida Marginal que leva de Lisboa a Cascais, os costumeiros objetos, fogão,eletrodomésticos, armários, pia, um cortinado branco-rendado que deixa entrar, no início da tarde, a luz forte deste início de verão, calor nem tanto, já passou a onda avassaladora de temperaturas entre os 35 e 40 graus, que agora afeta países europeus mais ao norte. Mas o ar que respiro está ainda prenhe da tragédia enorme que tombou com muito fogo, calor e ventos fortes, sobre a região central de Portugal. 49 mortes, muitas nas estadas, gentes sufocadas e queimadas dentro do carros, apanhadas de supetão pelo horror, outras tantas e mais dezenas de feridos. O fogo de Pedrógão e vizinhanças, que os bombeiros—em Portugal são voluntários—conseguiram, com ajuda solidária de países vizinhos, finalmente domar, arderá por muito tempo em nossas entranhas. Os que sobrevivem, aferrados às aldeias, pois são o sentido da vida, essa gente e a sua aldeia são uma coisa só. Quantas refeições solitárias têm feito e farão por lá, outros que não mais farão, refeições magníficas, com seu cozido, seu cabrito, bacalhaus, feijocas e enchidos, com o queijo da Beira, couves e grelos frescos.
Trágico. E não advinhamos o porvir da pandemia.
Preparei refeição caseira, um guisado com os restos do frigorífico. Se quiserem, podem chamá-lo de guisado mineiro-toscano, com toque português. Sim, pois acomodei em camadas, sobre pingos de azeite numa travessa média de ferro batido Le Creuset, os restos de couve cortada fina, em seguida a demão de polenta bem amarelinha e na textura do xarém algarvio, ou seja, mais para o cremoso e, por fim, o guisado de linguiça toscana, peito de frango do campo e cogumelos, o todo picadinho à faca, temperado com vinho madeira, caldo forte de ave, refogado com alho. Dados de tomate para agregar cor e contraste na textura. Algo de parmesão ralado. Forno. Uma delícia.
E onde está a tal epifania? Admito que a palavra pode se forte para o caso, mas sei que me senti confortado e enlevado naquela refeição, singela, ainda que a mesma não tivesse a leveza de uma salada de alface. Para mim, já é muito, mas reconheço que pode haver melhores ocasiões para exemplificar bem nossas «teses». O problema, se o admitirmos, do que não estou tão seguro, é que a tal da epifania vem, mas pode dissipar-se rapidamente, sobretudo após uns goles de bom vinho do Alentejo. Creio que dá para vislumbrar o que andei meditando durante a refeição caseira. Para quem come a sós, é muito. Será sempre assim? Como será na próxima refeição? Quem sabe uma mudança de ambiente? Será o comensal solitário sempre recompensado tão bem ao comer fora como na cozinha caseira?
[1] Rossela Lorenzi, no Google, 24 de março de 2016, cita os arqueologistas Generoso Urcioli e Marta Berogno, autores do estudo «Gerusalemme: l Última Cena», publicado em 2016.
2 Comments
Collin
ENSAIOS: Refeição a Sós | CONTOS: Impressões Mineiras
Esta crase matou.
Pedro Motta Pinto Coelho
lapso. Obrigado. sendo corrigido