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COMER A SÓS: MUITO PRAZER-PARTE XXIII-O QUARTO DE EMPREGADA DOMÉSTICA-RACISMO, ESCRAVIDAO, COLONIALISMO

 A REFEIÇÃO SOLITÁRIA: MUITO PRAZER-PARTE XXIII.  O QUARTO DE EMPREGADA: RACISMO, ESCRAVIDÃO, COLONIALISMO

                 « Pourquoi me réveiller, ô souffle du Printemps…» («porque me despertar, oh sopro da primavera») (versos de Ossian/Macpherson, lembrados no Werther, de Goethe, e na bela ária da ópera homônima, de Massenet.

Há um tipo de refeição solitária com características próprias, e que merece atenção especial: a refeição da empregada doméstica. Sim, me refiro mais bem ao caso brasileiro, onde subsiste até mesmo a instituição do «quarto de empregada», ou «dependências de empregada».

Hoje por hoje, instituição bem brasileira, essas «dependências de empregada»–herdadas dos tempos desnudados em «Casa Grande & Senzala»–não se vêem amiúde em outras partes do mundo, das mais civilizadas às menos civilizadas, a não ser em algum bolsão aristocrático ou colonialista. São ignoradas em boa parte da África, na Ásia, admitidas as peculiaridades do tipo indiano, no Oriente Médio, inexistem na Europa, na Rússia, na Austrália e no restante das Américas, com as exceções de praxe. Certo, vêm caindo em desuso entre nós, com as mudanças de hábitos, as conquistas sociais e a valorização do trabalho individual. 

Agora, então, com a nova ordem social decorrente da convivência com a pandemia, distanciamento e confinamento, contrai-se o mercado para o emprego doméstico. Mas ainda subsiste. Ademais, há um despertar, por parte de muitas sociedades, para a premência de retomarem-se os esforços na luta contra a discriminação e o racismo.

A morte recente de George Floyd nas mãos—e joelhos– da polícia norte-americana terá sido um marco significativo, justamente por reviver um processo de lutas bem enraizado, sobretudo nos EUA—não saberia dizer de seu impacto no Brasil, o outro país, junto com o Grande Irmão do Norte, que teve sua história sócio-econômica fincada,  por vários séculos, no trabalho escravo. Entre nós, esse impacto tende a ser menor, quando não é até mesmo abafado politicamente: são tantos os crimes de natureza semelhante que passam despercebidos, como faits divers. Joga-se, por outro lado, com a noção de discriminação, e a consciência dela, como se foram petecas, ao sabor dos ventos políticos e dos interesses econômicos. 

De qualquer forma, parecem ressurgir nas agendas sociais e políticas essas grandes questões: racismo, discriminação, colonialismo, escravidão. Entre nós, ligado a todas essas questões, temos o caso bem ilustrativo, ainda que se queira discreto, dessa instituição bem nossa, o quarto de empregada—instituição com raízes na senzala.

Racismo, de forma explicita ou latente, disfarçada e velada, continua presente em não poucas sociedades, mas, no conjunto,  teima-se em não reconhecê-lo em suas diversas manifestações contemporâneas, em que pese o notável avanço das legislações a respeito. Discute-se o «racismo sistêmico», que agora, na esteira da morte de Floyd, passa a se querer combater nos EUA, e, quem sabe, em muitas outras partes do planeta. Ignora-se, por outro lado, o fato importante de que, em África, racismo é assunto do passado. Efetivamente.

As vinculações entre racismo, escravidão e colonialismo, reconhecidas no contexto histórico, distinguem-se agora mais abertamente. Estátuas de heróis do passado colonialista e esclavagista são arrancadas de seus pedestais e jogadas fora, como cabeças guilhotinadas na Revolução Francesa; filmes carregados de valores pendentes da escravidão e do racismo, como «E o vento levou» são retirados de exibição. É compreensível, e—discurtir-se-á se é ademais–justo o surto de rejeição dos responsáveis por essas práticas que, no passado, estão no cerne do enriquecimento de sociedades e Estados imperiais. Renegar o passado, como? Melhor relegá-lo aos museus. Que lá fiquem guardadas as estátuas dos esclavagistas e dos colonizadores, o mais das vezes, senão sempre, responsáveis, em íntima aliança com o racismo, pela riqueza de gerações de sociedades e grupos hegemônicos, tendo na discriminação a sua base geradora.

O pesadelo real da morte de Floyd—quantos Floyds são assassinados a cada dia em nosso país, diante da pouca reação que conseguimos esboçar?– nos terá despertado para toda uma simbologia representativa de valores desde há muito condenados, mas que ainda nos contaminam com sua virose pandêmica.

Em nossa sonolência confortável perante o desrespeito sistêmico (para usar o termo da moda) aos direitos humanos, mal distinguimos essas manifestações, disfarçadas em nomes de ruas, em bandeiras, em práticas de discriminação de toda sorte.

Inclui-se aí a discriminação que subsiste na instituição do «quarto de empregada doméstica». Nele está o foco de nosso tema, um caso especial de refeição solitária.

Já tive a oportunidade de me referir ao drama latente ou explícito na refeição solitária. Ou não haveria drama na condição das empregadas domésticas que comem, a sós, no mais absoluto desprezo e discriminação, em muitos casos o que sobrou nas panelas onde elas mesmas prepararam o almoço ou o jantar da patroa? Muitas vezes em companhia apenas da criança que não têm com quem deixar e que levam para o trabalho? Pessoalmente, conheço muito poucas habitações onde a empregada doméstica ou demais empregados no serviço doméstico partilham a mesa com os patrões.

É certo que, nas últimas duas décadas, tem havido esforços, levados a efeito pela sociedade civil e pelo Congresso Nacional, para corrigir, pelo menos em parte, essa situação discriminatória: no exemplo mais recente, a lei n.13.699, de 2 de agosto de 2018, altera o art. 2º da lei n. 10.257, de 2001  (Estatuto da Cidade), de 2001, para incluir, no seu item XX, referência à «garantia de condições condignas de acessibilidade, utilização e conforto nas dependências internas das edificações urbanas, inclusive nas destinadas à moradia e ao serviço dos trabalhadores domésticos, observados os requisitos mínimos de dimensionamento, ventilação, iluminação, ergonomia, privacidade e qualidade dos materiais empregados».

Também de forma mais ampla, tem havido uma incontestável evolução no comportamento social no que diz respeito ao trabalhador doméstico. No artigo «Controle de Vida, Interceccionalidade e política de empoderamento: as organizações políticas das trabalhadoras domésticas no Brasil», publicado  na revista Estudos Históricos, em 2013, o professor Joaze Bernardino Costa, da Universidade de Brasília[1] expõe, de forma analiticamente cuidada, e com base no conceito de «interceccionalidade» (raça, classe, gênero, empoderamento), a evolução das conquistas das trabalhadoras domésticas ao longo dos últimos 80 anos, destacando o protagonismo das organizações políticas dessas trabalhadoras em articulação com o movimento classista-sindical negro e feminista.

Diz ele que, em 2009, o Brasil empregava no serviço doméstico 7,2 milhões de pessoas, dos quais 93% eram mulheres. Destas, 61,6% eram negras, e 38,4% brancas. Reconhece como o fruto de um longo processo histórico a aprovação da Emenda Constitucional 72, em 2013, que estabelece a equiparação legal entre as trabalhadoras domésticas e demais trabalhadores urbanos e rurais no país

Ignoro se, ou em que medida, a lei de 2018 é observada, mas, o que vemos no conjunto das habitações urbanas construídas no país até então são, com raras exceções, aqueles cubículos, sem janelas ou ventilação adequada. Cá entre nós, tem toda a pinta de «lei que não pega». Espero estar enganado, mas a lei não terá incorporado elementos concretos, tais como metragem mínima, dimensões, etc, que já não constavam do projeto original apresentado ainda em 2008 pelo Senador Cristovam Buarque (PLS 212/08), mas que haviam sido debatidos pelo parlamento em anos subsequentes.

O que importa aqui, nesta referência ao «quarto de empregada», é bem mais o fato de que essa «instituição», melhorada ou não, persiste, com todas ou quase todas as suas condicionantes, sobretudo no Brasil.

É uma das mais indecorosas manifestações herdadas da escravidão, mas aceitas sem maiores questionamentos pelo conjunto da sociedade, que prefere vê-la pelo lado «positivo», na verdade paternalista e patrimonialista—de dar guarida e habitação—e trabalho–a grupos de pessoas desprovidas, naturalmente com remuneração no geral abaixo do justo ou do legal. Prática sistêmica, portanto.

Penso que se trata de um testemunho conflitivo com o tema central para a população negra na diáspora, que seria, segundo o professor Joaze Bernardino Costa, o de «como retomar o controle de suas vidas e suas imagens dentro das sociedades hegemônicas». Pelo que valha, creio de interesse o comentário adicional incluído no texto, onde o professor cita dois outros autores (Gonzales e Giacomini), a respeito do caso da sociedade brasileira, onde «há não só a associação da mulher negra ao trabalho doméstico, como há também sua associação à condição de objeto sexual, tão celebrada nacional e internacionalmente no Carnaval».

Nesse quadro de discriminação cinzento e pouco nítido que ainda se reserva às «dependências de empregado/trabalhador doméstico», o tema da refeição solitária viria quase que automaticamente carregado de derivações negativas: como dito acima, constituiria mais bem a exceção o trabalhador doméstico ser convidado a partilhar das refeições junto com os donos da casa, seus empregadores, sendo a regra a refeição em separado. Tal prática, no mínimo uma discriminação de ranço aristocrático e, na melhor das hipóteses otimistas, uma reafirmação de respeito à individualidade, é aceita com a maior naturalidade, sem questionamentos.

Por consequência, parece pouco razoável que a refeição a sós, para a empregada doméstica, em vista da discriminação implícita ou explicita que a caracteriza, dependendo do caso, possa significar um momento de prazer especial. Comer comida fria, ou comer o que sobrou, em ambiente desfavorável são representações  bastante comuns no que se refere à refeição solitária da empregada doméstica, residente ou não.

Tudo isso é verdadeiro. Há, contudo, que ver o momento da refeição. Independentemente do que se come, e da discriminação que envolve esse momento no caso da empregada doméstica, a refeição solitária se iguala a qualquer outra refeição solitária. Não se distingue das demais em qualquer outro lugar ou em qualquer outra situação, na rua, no restaurante, em casa, no trabalho, feita na marmita, no prato goumet ou no pote de barro , com alimentos sofisticados ou os mais simples. Porque?

Porque a refeição a sós, em qualquer circunstância, oferece momentos de intimidade àquele que a faz e que se dispõe a explorá-los, numa viagem virtual de autoconhecimento que pode ser muito prazerosa e sempre reveladora. Tudo isso pelos motivos que venho alinhavando ao longo destes ensaios. No que se refere a esse potencial, e a esse apenas, a condição social do sujeito não deveria interferir. O potencial será o mesmo para rico ou pobre, jovem ou idoso, homem ou mulher, mendigo ou senhor, empregado doméstico ou patrão, astronauta na estação espacial ou cristão nas catacumbas da Roma Antiga.

A consciência da injustiça e da desigualdade social e econômica geradas pela discriminação, racismo e colonialismo, entretanto, formará a base dessas revelações para certos estamentos sociais, se não para toda a sociedade. Espera-se, a esse respeito, que para tal possam ter contribuído as lições da morte de George Floyd e das muitas outras vítimas, desconhecidas ou ignoradas, de tragédias semelhantes.


[1] https://doi.org/10.1590/S0 103-21862013000200011