O QUE COME?
O que dizer do cardápio de quem come só? Interessa saber? Há diferenças nos cardápios daqueles que fazem sua refeição a dois ou em grupo? A pessoa sozinha em casa com sua salada e a sopa, o sem-teto e seu prato de papelão cheio de sobras da cantina ali perto, o marmiteiro no escritório e a comida que sabe a forno de microondas, o executivo em viagem à mesa do restaurante de hotel e o filé com fritas, o enfermo a sós no quarto de hospital com pratos de dieta, o gourmet solitário deliciando-se com criações de chefs renomados—nada disso difere na aparência do que outros comem a dois ou em grupo, em família, ou com amigos ou colegas. Ou será que difere? Há um mundo entre essas duas categorias. Um mundo entre a liberdade plena, ou quase plena, que pode ser exemplificada na bela mordida em uma coxa de frango assado ou de peru (até de javali, lembram do Obélix) segura pelas mãos, com algo da gordura e molho da carne escorrendo pelos pulsos e antebraços, e que os que comem a sós podem apreciar sem ouvir muchochos alheios, chupar um caqui bem maduro em vez de cortá-lo convenientemente no prato, e a servidão das etiquetas e das convenções sociais a que estão submetidos, para mais ou para menos, os comensais gregários. Bem, sei que estou exagerando as diferenças, não é bem assim, são menos nítidas a cada dia, a mordida na perna do frango dá-se na mesma, em casa ou no restaurante mais fino, mas não importa, a observação vale como argumento. Mas, não deverá haver dúvidas em aceitar-se que um universo separa quem, a sós, pede ao garçom uma bela garrafa de vinho para acompanhar a refeição por puro prazer, com os limites apenas do bom gosto e do bom senso, sem as restrições e as concessões—financeiras ou de gosto/qualidade, envolvidas na partilha.
Não se trata, nem um pouco, de uma perspectiva de egoísmo, muito ao contrário. Mais bem, do gozo do livre viver e do livre alimentar-se. Ninguém irá negar o prazer de uma refeição partilhada. Nosso tema, contudo, é de outra natureza: estamos em busca dos prazeres diferenciados, ocultos e mesmo transcendentais, que podemos encontrar na refeição solitária, e que na base se vinculam a uma imersão cognitiva e sensitiva do ser. Verdadeiro autoconhecimento. A refeição solitária dá mais liberdade ao sujeito, inclusive para descobrir-se, melhor identificar o seu eu. Evidente.óbvio, que não é o único caminho, como assinalado mais acima, mas sugerimos que pode ser um deles, caso quem faz uma refeição a sós se dê conta desse potencial e se disponha a trilhar essa prazerosa trilha, onde tudo acontece respirando-se os vapores perfumados da boa mesa, ou simplesmente os ares rarefeitos da comunhão consciente entre o indivíduo e o alimento.
ONDE E QUANDO?
A pessoa experiente em refeições a sós fora de casa dispõe de uma «acervo» de conhecimento, à falta de melhor palavra, um repertório de orientações que a guiam na escolha de onde comer desacompanhada, e mesmo quando fazê-lo.
Inevitável, aqui, falarmos das «dicas» para «amenizar» os «desconfortos» daqueles que «enfrentam» a sós uma mesa de restaurante. Uso as aspas por incorporarem, esses vocábulos, as acepções e percepções mais comuns pelas quais são vistos em geral os que fazem a refeição solitária.
Parece ponto pacífico o fato de que, como indicamos, a pessoa que come a sós em público, em restaurantes ou em outros lugares, no banco da praça, no clube, no escritório, se sente observada, ou é observada. A curiosidade, a vocação para comparar e enquadrar o próximo em categorias ou escalas sociais, riqueza, prestígio, cultura, educação, até sanidade ou atitudes comportamentais, o desprezo, a inveja, ou o interesse efetivo em conhecer os motivos porque a pessoa se coloca na situação de uma refeição solitária, tudo isso leva à observação, ostensiva ou velada, do indivíduo que come solitariamente. «Qual é a desse cara?», alguém perguntará aos parceiros na mesa ao lado; ou pensará, do alto de sua soberba: «pobrezinho, deve ser triste comer sem companhia», e por aí vai. Da mesma maneira, a pessoa sozinha à mesa perceberá estar sendo de algum modo observada. Nem sempre acontece. Cada vez mais, sobretudo em sociedades culturalmente mais avançadas, a pessoa que come a sós à mesa de um restaurante é menos objeto de observação diferenciada. O mais das vezes, contudo, a observação do comensal solitário ainda parece ser o caso.
Conceitualmente, temos aqui uma tarefa, a de inverter esse cenário. Um dos prazeres mais ingênuos, mas de riqueza marcante, que pode dar-se a pessoa que faz a refeição solitária, é justamente o da observação inteligente daqueles ao seu redor. Imaginar sua vidas, sentir-se feliz por ver pessoas felizes, ou atentar para encontros tensos ou descontraídos, sem a ideia de bisbilhotar. Sentir a vida dos demais em seu curso, presumir perspectivas, profissões, ansiedades, criar histórias com esses personagens, ou tentar intuir as histórias e trajetórias da vida de cada um ou de cada grupo, seus gostos, inclinações políticas ou culturais e gastronômicas. Pura riqueza, belo e divertido exercício intelectual, inconsequente por inteiro.