Automat, by Edward Hopper. (Oil on Canvas)
Automat, by Edward Hopper. (Oil on Canvas)
Ensaios

COMER A SÓS: MUITO PRAZER (Parte I)

A condição de comer sozinho é geralmente pouco apreciada. As estatísticas disponíveis dão conta de que aproximadamente 40 % da população mundial fazem uma refeição fora diariamente, sendo os grupos menos favorecidos os que pesam mais nessa razão. 

Sabemos também que, não importa o restaurante, caro, barato, almoço ou jantar, 15% das mesas são ocupadas em média por indivíduos que fazem a refeição sozinhos. E ainda há que considerar a enorme proporção de pessoas que fazem a sós as refeições em casa, ou solitariamente, em outros lugares. 

Estamos, portanto, diante de um universo muito significativo de pessoas, pelo mundo afora, cuja situação merece ser melhor compreendida e, diria também, valorizada. 

Em público, solitários à mesa de restaurante, num banco da praça, ou na copa do escritório, na fábrica, no campo de refugiados, no campo ou na praia, almoço ou jantar (depois explico porque o pequeno almoço/café da manhã está fora de nosso tema), vale indagar: 
que sentimentos e sensações nos passam pela cabeça? Por fazer a sós a refeição, sente-se o indivíduo marginalizado? Como é visto pelos demais? Respeitado? Desamparado? Desconfortado? Ligeiramente desprezado? Objeto da curiosidade alheia? Ignorado? Vigiado? Admirado?

Ou nada disso: por prazer, ou por necessidade, ocasional ou sistemática, fazemos nossa refeição à sós, sem mais? Pois lá, bem no fundo de nossa mente, não é que preferiríamos buscar uma companhia para a refeição? 

Afinal, somos seres gregários, queremos estar juntos, conversar, trocar ideias e sentimentos, tristezas e alegrias, amar, criticar, falar mal do governo e de nossos semelhantes, negociar, e, claro, partilhar os prazeres da boa mesa, se for o caso. 
Há mesmo livros que ensinam como nunca colocar-se na situação de fazer uma refeição sozinho, como se fora possível! 

O fato é que, em não sendo possível ou desejável estarmos acompanhados, vamos, em grande número ao que parece, à mesa solitariamente. Pode ser algo desagradável, aqui e ali, mas nada especial, não é um sufoco. Há com efeito vários sites por aí com sugestões para a pessoa se sentir confortável na situação de fazer a sós uma refeição.

Exceto quando a solidão aperta, e aí fazer o quê? Mas, claro que tem gente que não senta nunca à mesa sem companhia, e os motivos são vários e muitos deles compreensíveis. E nada impede, tampouco, que refeições tête à tête, em grupo, grande ou pequeno, almoços e jantares de confraternização, ou os banquetes (estes, pior ainda) da realeza, republicanos ou simplesmente mordômicos, não possam constituir momentos muito desagradáveis, por vezes de tensão e de conflito. Ponto final. Algo mais? Está mesmo tudo aí, sobre o tema de comer sozinho? 

A experiência e a intuição me dizem algo mais. Parecem sugerir que o ato de fazer uma refeição a sós liberta o indivíduo, revela prazeres ocultos, permite-lhe uma viagem agradável e instrutiva ao seu interior, deixa livre sua mente para explorar verdades e sensações novas. Ao comer sozinho, o indivíduo fica livre para descobrir -se. Fantasioso?

Vamos a mais uma indagação preliminar. O que é «comer sozinho»? 

Mais adiante, vou submeter a proposta de que a refeição solitária pode dar-se à mesa, ou numa ocasião em que outras pessoas estejam juntas com aquela que come sozinha. Indago mesmo, nesse contexto, e com todo o respeito, se Jesus Cristo, na Última Ceia, não foi um comensal solitário, apesar de estar junto com Seus Apóstolos. Dou uma dica: Estava o Cristo, naquela Ocasião, no mesmo plano mental que os Seus Discípulos? 

De minha parte, pelas circunstâncias da vida, alguma timidez crônica, acabei por dar-me conta de que pode haver virtudes e prazeres ainda ocultos, transcendentais mesmo, para além dos eventuais prazeres intrínsecos ao ato de alimentar-se, e para além dos inconvenientes ou desconfortos, na refeição solitária. 

Em retrospecto, propus-me a buscar uma compreensão maior da figura de quem come solitariamente, por ser parte, na minha opinião de forma muito estreita, da condição humana. Por seu intermédio, vemos, antes de nada, a pobreza, a miséria e o desespero absoluto mais de perto, nos ajuda a ver melhor o sofrimento e a fome de comunidades e povos inteiros, mas não falemos disso neste momento.

Cabe-nos antes tentar conceptualizar a questão do comer solitariamente, e verificar por onde chegar aos prazeres e virtudes que o sujeito dessa condição pode incorporar.