A REFEIÇÃO A SÓS: MUITO PRAZER-PARTE XXVII- FAKE NEWS E O DILEMA DA SIMULTANEIDADE
Diz a filosofia da linguagem, de Locke a Saussure—e o sábio Millôr Fernandes também—que nosso pensamento é livre. Pensamos simultaneamente, mas quando falamos, falamos uma coisa de cada vez. A linguagem é linear, como sabemos da linguística. Talvez só os poetas consigam escapar a essa linearidade da linguagem.
Acontece que em qualquer circunstância dos tempos contemporâneos—quem sabe se com o «novo normal» pós Covid 19 não será diferente–, quando rapidez e eficiência costumam ser categorias elevadas quase que ao nível de valores absolutos, ganha espaço e força o contraste entre o menosprezo pela eficiência linear e o apreço pela eficiência simultânea.
A montanha nevada em dia de sol translúcido, esquiadores descem em curvas suaves. Bela imagem. Servirá bem a quem come só, ao aventurar-se em seu mundo interior. Deslizará suavemente em montanhas de ideias carregadas de ar puro, como o que respira o esquiador. Será assim tanto para o mendigo, com sua côdea de pão velho, como para o marmiteiro ou para o gourmet, não importa, desde que se disponham a ultrapassar a simples relação do alimento com a percepção de matar a fome.
Há obstáculos, contudo, nesse caminho. O esquiador se desvia de pedras, fendas, árvores, e até de outros esquiadores. A condição de comer a sós não impede que a pessoa traga para a mesa ou o para o banco da praça seus problemas e angústias, mas pode facilitar contorná-los e mesmo resolvê-los. Como?
Com a mesma fórmula que conjuga inspiração e técnica que serve ao esquiador para contornar ou resolver seus obstáculos ao descer na pista de neve.
Panaceia? Estamos sempre no campo modesto, em que a refeição individual, solitária, pode abrir-se a reflexões alegres, construtivas, prazerosas, enfim.
Questões diversas. Quem quiser, fale também de situações delicadas, de angústias, porque não? Pois há algumas delas, insuspeitas, mais próximas à situação de quem come só, e que, por aí, podem ajudar na solução ou encaminhamento de outros problemas mais concretos.
Dentre essas questões, encontra-se o dilema entre simultaneidade e linearidade.
Trata-se de um falso dilema, fake news, para quem faz a refeição a sós.
Esse tal dilemazinho está por aí, entre nós. A crença cada vez mais se impõe, sorrateira, corolária do mundo virtual: não basta ser eficiente em cada tarefa ou em cada ação, uma de cada vez; convém ser eficiente simultaneamente em tarefas ou ações diversas. Sim, é um hábito com tradições. Aquela sensação de «ver quem consegue assobiar e fazer xixi ao mesmo tempo». Dos tempos de criança, mas que atravessa idades. Fascina ver o mestre de xadrez que joga ao mesmo tempo contra vários adversários, em partidas separadas. Os mágicos, ilusionistas e prestidigitadores exploraram a noção da simultaneidade com a leveza da nuvem branca. Como o artista de circo que mantém, com apenas duas mãos, várias bolas no ar ao mesmo tempo. As balarinas, pelo menos no ballet clássico, não cantam. E pergunte à cantora que faz o papel protagonista na ópera Carmen, de Bizet, sobre a dificuldade de cantar e dançar ao mesmo tempo, em cima de uma mesa de bar, a «Seguidilla» do segundo ato. As armas de fogo igualmente fazem barulho, explodem e matam ao mesmo tempo.
Por pouca familiaridade e muito respeito e admiração à sua construção, me escuso de entrar nos caminhos da teoria quântica, e os princípios da incerteza e da simultaneidade (o elétron pode estar em qualquer lugar quando, estimulado energeticamente, pula de uma órbita para outra, no interior do átomo, ao redor do núcleo de prótons..).
Todo mundo sabe que falar ao celular e dirigir é exemplo—digamos, pedestre—de tragédias anunciadas, infelizmente. Que fazer, a simultaneidade parece atrair as pessoas, assim como as órbitas do átomo aos elétrons energizados. E o que dizer dos «disparos» simultâneos de mensagens nas redes sociais por robôs, com conteúdos de propaganda, isto é, fake news, base política que sustenta capitão e filhotes corolários?
Tive, numa ocasião, um chefe muito arguto, de uma inteligência fora do comum. Sempre admirei sua capacidade de articulação e rapidez de pensamento, o que conseguia conciliar. Certo dia de intenso trabalho, meus colegas e eu presenciávamos sua agitação em meio a várias ações e das providências que tomava ao mesmo tempo, quando repentinamente fez um parêntesis, para comentar em (simultâneo ?) auto-elogio, típico dessas pessoas, que por vezes padecem igualmente de superficialidade: –«ser eficiente na linearidade, tratar uma coisa de cada vez, não tem graça, importante é ser eficiente na simultaneidade».
E acrescentou, do alto de sua inteligência: «eu falo por aforismos», querendo significar que era rápido e sintético ao expressar-se.
De admirar, não? Resta ver a que preço, pois as « verdades» comumente encapsuladas em aforismos parecem conviver muito bem com distorções ou falsidades–«fake-news», talvez? Em todo caso, deixemos os aforismos bíblicos de lado, por mera prudência.
Surge a conclusão: a pessoa que come a sós está livre desse dilema. Um falso dilema, admita-se.
No máximo, podemos distinguir uma tensão na relação entre linearidade e simultaneidade: ficamos angustiados—acho que esta pode ser a grande tragédia individual embutida na linguística moderna, em não poder expressar pela linguagem tudo o que pensamos simultaneamente, a não ser de maneira linear, por mais complexas, sobrepostas e conexas sejam nossas narrativas. Tirante os poetas, e alguns gigantes contemporâneos da escrita, como James Joyce ou Guimarães Rosa, somente Ionesco talvez terá conseguido isso, nas suas peças, chamadas, sintomaticamente, de teatro do absurdo.
Como, na refeição solitária, por definição o diálogo ou as conversas tendem a ser marginais, ou no máximo, subsidiárias, ao contrário de uma refeição convivial, seja de negócios ou entre amigos ou de família, não há porque buscar a simultaneidade.
Há, naturalmente, as exceções típicas, desde aquele que come só, acompanhado do livro ou o jornal, aos que conversam ao telefone ou com o telefone celular e seu mundo virtual. Há de tudo, o papo com o garçon ou com a amiga que encontra, ou com as pessoas da mesa ao lado.
Mas o dilema referido, de não conseguirmos escapar à linearidade, felizmente não se apresenta ao comensal solitário, com perdão pela expressão esnobe, senão também apenas pela margem. Ou fica nos bastidores.
Quem come só tem todos os motivos para trabalhar uma única simultaneidade: a da refeição com a reflexão, mas aí não entra o jogo, ou o dilema, da relação com a eficiência.
Uma angústia a menos, portanto. Sem desconsiderar as demais, referidas quando sugeri, em outro momento nestes ensaios, a noção de drama na refeição, menos presente na refeição a sós.
Todos apreciamos a refeição convivial, em família, com amigos, de negócios; e evitamos, na proporção inversa, a refeição solitária. Apenas noto que as refeições gregárias, se permitem o diálogo, o intercâmbio de ideias, a convivência fraterna, íntima, amorosa, esclarecedora e criadora, oferecem, em contraste mais ocasiões de drama ou de tensão, o que é próprio das relações humanas, do que a refeição a sós. Esta, em compensação, tende a deixar-nos livres de uma multiplicidade de eventuais constrangimentos—o de sermos, ou parecermos, «eficientes», «hilários», «inteligentes», «cultos», «liberados», «elegantes», «educados», «sábios», de «convencermos ou de sermos convencidos» —tudo entre aspas, pois, como é obvio, são dilemas falsos. Fake news. Menos o de ter que pagar a conta.