Marte, ano 2230. Uma mineração de ouro próxima ao polo sul do planeta. Hora do almoço. O astronauta brasileiro Josimar, em inspeção à área dos túneis da mina, senta-se no banco de uma praça aberta, para fazer sua refeição solitária.
Sente-se cômodo, tem os movimentos livres. Está protegido pela «geleia cósmica». Há muito que os astronautas não usam, nos espaços abertos, aquelas vestes pesadas, verdadeiros contentores individuais, para se protegerem da falta de ar, das temperaturas extremas e das intempéries, bem como das distintas forças gravitacionais.
Agora, e já lá se vão muitas décadas dessa inovação, protegem-se por um envolvente plasma individual, o «individual cosmic plasma—ICP/1». Há também o de grupo, o «group cosmic plasma—GCP/2 f(n)». Em nível planetário, esse plasma cósmico equivaleria à atmosfera que envolve a Terra.
Chamado carinhosamente pelos astronautas de «geleia cósmica», esse plasma envolvente é constituído da múltipla polarização de subpartículas atômicas que conformam feixes energizados em micro reações nucleares pré-programadas e capazes de reproduzir os parâmetros necessários à vida vegetal ou animal.
Em outras palavras, cada habitante das colônias extraterrestres, astronauta ou não, ao sair dos «domos» com atmosfera artificial, consegue reproduzir, à sua volta, e apenas com uma simples vestimenta pontuada por milhões de microterminais nucleares, a atmosfera terrestre, com uma capa adicional de proteção contra a interferência de forças externas, como ventos fortes ou variações de temperatura ou de gravitação.
Almoça um ensopado de «proviróticos», temperado com curry indiano e bolachas com aminoácidos essenciais. Há muito também que os chamados proviróticos, pela facilidade de confecção, e riqueza proteica, se tornaram a principal fonte de alimento na Terra; e, mais ainda para as comunidades, já bastante significativas, que vivem em colônias na Lua e em Marte.
Os terromarcianos, e também os terrolunares, já na sua terceira ou quarta geração, se beneficiaram particularmente do aproveitamento de diversos tipos de vírus descobertos localmente, alguns da linhagem dos corona, e que, devidamente sintetizados, se tornaram uma rica fonte de proteínas. Os inesperados «musgos» marcianos, encontrados no fundo de cavernas próximas aos polos do planeta, da mesma forma que nas profundidades de frestas nos polos lunares, são a fonte de vida e de água nesses corpos extraterrestres.
Em sua refeição solitária, Josimar, tenente-coronel intendente da Aeronáutica, em missão temporária em Marte, pensa na família que deixou no Brasil, há dois anos, quando foi mandado para Marte: « Como estarão, mulher e filho já com dez anos, enfrentando os novos tempos no país, sob o imperador Braguinero IV?». Nunca havia entendido bem os relatos históricos a respeito da transição política no Brasil, havida há cerca de duzentos anos, de um modelo republicano para o modelo imperial-dinástico. Sabe que, com o falecimento do presidente vitalício Braguinero, seguiram-se triunviratos sucessivos de filhos e parentes, tendo um deles, Carlos 009, sido aclamado imperador, bem à moda da antiga Roma. Ao que consta, Carlos, que detinha o apoio das milícias armadas que dominavam o país, teria obtido a concordância dos irmãos para promover o retorno do Brasil ao modelo imperial, sob a dinastia dos Braguineros. Mas nunca ficou esclarecido como Carlos havia obtido essa «concordância » dos irmãos, desaparecidos misteriosamente. É fato, entretanto, em que pese as lutas fratricidas entre os diversos filhos de Carlos, já aclamado Braguinero I, que a dinastia se consolidara, chegando, agora, em 2230, ao Braguinero IV.
Entre cápsulas da sopa provirótica, Josimar, com saudades de casa, repassa mentalmente alguns traços dessas mudanças no país: «Sim, muito triste, o Brasil havia mudado muito, mas que tragédia! Ainda durante os anos dos triunviratos, o Congresso Nacional transformara-se num sistema político de representação única, a ´Rede de Apoio Social Potencializada-RASP`. Toda a cidadania era obrigada a integrar a RASP. Seus líderes, ou influenciadores eram escolhidos periodicamente dentre uma lista apontada pelos governantes triúnveres. Qualquer opositor aos ditames dos governantes, sempre potencializados pela RASP, era, e ainda é, automaticamente excluído da RASP, caindo então para a subcategoria sociopolítica dos GRAYS, considerados traidores do regime».
Josimar, claro, tinha meios de se comunicar com a família, mas eram formas limitadas de comunicação. Ele e sua família haviam sido integrados na subcategoria dos GRAYS, sendo as suas comunicações interpessoais, fora do trabalho, objeto de censura e de limitações várias. Fora punido com a exclusão da RASP por suas opiniões críticas a respeito das políticas imperiais brasileiras para a ocupação da Amazônia, e, mais recentemente, por ter defendido, com colegas da Agência Espacial e Interplanetária Brasileira-AEIB, a adoção de formas democráticas de gestão nos domos, a s colônias no espaço exterior, então sob forte controle das potências maiores, sobretudo os EUA, Rússia, índia e China.
Tinha apetite. Engoliu várias cápsulas da sopa provirótica com curry e, às escondidas, tomou meia bisnaga de cerveja condensada. Graças a sistemas automáticos de controle da temperatura, os alimentos mantinham-se aquecidos ou refrigerados adequadamente à ingestão prazerosa. As bebidas, exceto a água marciana, obtida com o processamento de musgos abundantes nas profundas cavernas do polo sul do planeta, eram permitidas apenas em ocasiões especiais, mas Josimar, como oficial intendente, tinha algumas regalias de acesso aos estoques controlados pela administração dos domos.
Iria, de qualquer forma, regressar à Terra, e ao Brasil, em breve, e estava feliz de deixar a vida em Marte: «Muito dura a vida aqui, apesar das comodidades já conquistadas pelos colonizadores nesse ambiente hostil, de agressão permanente».
O meio, sim, fora dos espaços protegidos nos domos, era impróprio para a vida humana, salvo com a proteção ICP/1, a «geleia cósmica»; mas, refletia Josimar enquanto saboreava uma porção da pasta de cerveja, «agressão talvez ainda pior provém da forma autocrática de gestão das colônias, com a exploração do trabalho dos astronautas e dos terromarcianos originários de países marginais no desenvolvimento de tecnologias relativas ao aproveitamento e colonização no expaço extraterrestre.»
As potências dominantes, de fato, já se beneficiavam de imensas explorações de minerais nobres, e de programas «Agroespaciais», sobretudo em áreas como a das culturas de proviróticos ou a das micromutações bioelementares—essas últimas, derivadas da tecnologia dos plasmas de sobrevivência no espaço exterior, acima referidos, as tais «geleias de plasma», no caso, a coletiva, a GCP/2 f(n), com enorme potencial de compensação, na Terra, para as mudanças do clima e o aquecimento das temperaturas, e que provocavam, há mais de dois séculos, terríveis catástrofes nos diversos continentes.
Eram de especial interesse para sua aplicação no Brasil, onde a Amazônia havia perdido mais da metade da cobertura florestal, pelos incêndios e desmatamentos, estes desde há muito promovidos pelos governantes imperiais, inclusive com a política da chamada «Sensibilização Total À Promoção da Renda e da Urbanização da Amazônia-SENTAPRUA. Adotada há quase dois séculos pelo governo central imperial no Brasil, a iniciativa SENTAPRUA havia dado margem ao desmatamento programado de corredores, de vários quilômetros de largura, ao longo de toda a extensão do território amazônico, nos eixos leste-oeste e norte-sul, destinados ao AGRO-IMPERIAL, bem como à instalação de centros urbano. Nos seus mais de 1, 5 milhão de quilómetros quadrados de área «limpa para a civilização», constituíram, recorda Josimar da leitura de textos históricos, e agora censurados, por serem considerados textos subversivos, «uma apavorante reedição, em escalas gigantescas, de antigos projetos da era pré-imperial, dos chamados de «Transamazônica» e de «Calha Norte», ou programas como o AGRO, entre outros que indicaram, naquelas épocas remotas, o caminho a seguir para a destruição do bioma da Amazônia e de suas riquezas».
Sempre protegido pela «geleia» individual, Josimar guardou resignadamente no bolso o restante da cerveja condensada e algumas das plaquetas de alimentação. Olhou para a mina de ouro onde fazia a vistoria, apenas interrompida pelo almoço.
Ativou despreocupadamente o modo «levitação» no controle telepático da sua geleia cósmica individual, o ICP/1, e dirigiu-se, dentro do corredor aéreo sobre o terreno algo acidentado circundante à mina, em plano de elevação a dez metros da superfície, para as instalações industriais da mina. Já eram horas de regressar ao trabalho.
Instintivamente, sabia que ainda não havia cumprido a sua real missão em Marte.
(de : « Revolta em Marte e a Queda da Dinastia Braquinero no Brasil», do autor, no prelo)