Contos,  Vivências Diplomáticas

A ANTÁRTIDA E A FAZENDA DO PAIOL: AS ÚLTIMAS FRONTEIRAS

VIVÊNCIAS

Fazenda do Paiol, foto ^Romulo F. Martins, Palavras do sobrescrito: Romulo F. Martins

Navegávamos há14 dias pelo Atlântico Sul, de águas frias apesar de estarmos em inícios do verão, ao longo da costa meridional do Brasil e, em seguida, da costa argentina. O «Barão de Tefé», navio oceanográfico feito navio polar da Marinha do Brasil, atravessava, com alguma humildade e muita galhardia, entre narigadas de proa e orelhadas de bombordo e boreste,  caturrando e jogando, como dizem os marinheiros, as águas escuras e tormentosas do estreito de Drake. Dezembro de 1985. Segunda missão oficial brasileira à nossa estação na Antártida. Rumávamos para a Ilha de São Jorge, e nela para uma península, aberta ao sol ainda visto na linha do horizonte das terras ao norte, a baía do Almirantado. Lá havíamos fincado, no ano anterior, a presença física do Brasil no continente gelado.

A fazendo do Paiol fica prós lados de Sete Lagoas, mas bem antes, de quem sai de Belo Horizonte. A estrada era por Esmeraldas, onde penso que o Marcos, que não está mais com a gente, tinha arranjado uma namorada. Não sei, é o que os irmãos diziam.  Deus o tenha, assim como ao Dalmo, o mais velho, que já tinha, naquelas décadas passadas, cara de fazendeiro, cabelo e bigode ruivos, Dorinha, Maria, Lúcia. Desconfio que o Geraldo, outro com DNA de fazendeiro rico, gostava bem do ´footing` na praça da igreja, nas Esmeraldas. Tristeza, quando soube, agorinha mesmo, pelo também irmão Rômulo, o Bocage, que tinha Alzheimer. Há dez anos. Quando descobriu meu telefone, o Bocage me ligou de surpresa, quanto tempo não nos víamos ou falávamos Muita alegria. Família grande, essa do tio Ignacinho e tia Mariquitinha. Donos da fazenda do Paiol, onde passei temporadas de férias, tinha nove, dez anos. Primos, pelos lados de minha mãe, os Figueiredo de Sete Lagoas. Romulo mandou-me fotos da fazenda, igualzinha era antes, mas sempre bem cuidada. As fotos eram da festa, do reencontro, ano passado, da família,, todo ano fazem lá na fazenda. Acompanhados de boa linguiça e cerveja. Lá estavam os irmãos, celebrando a vida, a fazenda e as saudades, debaixo de um caramanchão que reconheci pelas flores cor-de-rosa: Luciano (Grilo), Daniel, que regulava comigo, Eduardo (Du), Roberto, que regulava comigo também—todos os irmãos eram em ´escadinha`, Silvinha, Martha (Rapinha). O Rômulo, o patriarca, na fila de trás. No dia de ir para a fazenda, nas férias, tio Ignacinho me buscava em casa, em Belo Horizonte. Era sempre numa sexta-feira à noitinha. Sentado no banco de trás do velho Ford, lá ia eu satisfeito da vida, olhando aquela miríade de estrelas, nunca se viram tantas, em meio ao barulho surdo e entrelaçado dos pneus no cascalho que cobria, de distância a distância, os sulcos poeirentos da estrada de terra. Quietude das Minas Gerais.

Havíamos descansado, em meio à viagem, em Rio Grande, o porto mais meridional do Brasil. O que não foi mau, belas garotas, belas praias, bom chope.

Todos ali se lembram de mim. Claro, figura impoluta, o Pedrinho, menino de dez anos, vestido da cabeça aos pés, ao chegar, com o uniforme do Atlético Mineiro, já com a bola das peladas de fim de tarde na mão. Recitava de cor a escalação do time: Cafunga (depois Osvaldo) Murilo e Ramos; Mexicano, Monte (Zé do Monte) e Afonso (depois Haroldo—o que virou médico, como muito mais tarde o dr. Sócrates, que nunca foi do Atlético, cito por citar, e o Tostão); Murilinho, Tomasinho, Valdo, Alfredo e Amorim. O Bocage diz que eu recitava ademais uma escalação que começava com: Castilho, Píndaro e Pinheiro…, mas isso era a do Fluminense, meu time de botão, campeão da vizinhança.

Nada disso ao chegarmos em nossa estação—erroneamente chamada de «base», pois não é um posto militar–bem ao fundo da baía do Almirantado Quatro ou cinco contentores interligados, que somente conseguimos visualizar depois de intensa faina manual com pás, para retirar a neve que os cobria por inteiro. Era a nossa «Estação Antárdida Comandante Ferraz». Lá estava, à beira de uma praia de cascalhos e pinguins, não muito afastada de antiga estação inglesa, em ruínas , de caça de baleias, com o esqueleto de uma delas, enorme, bem à frente,  e que afinal compunha o quadro de nossa paisagem. Um quadro anacronicamente defasado naquele continente branco e cinza, objeto de tantas missões científicas e de exploração, e de caçadores de baleias, por mais de século. Chegávamos tarde: outros países vizinhos, como Chile e Argentina, mantêm no continente estações desde há muitos anos; estações permanentes, guarnecidas todo o ano. A do Chile é na verdade uma verdadeira cidade, escolas para as crianças, supermercado, banco, aeroporto.

Fins de semana eram dias de jogo sério, em campo de futebol mesmo, de terra, claro, lá perto da fazenda, no povoado de Caracóis. Ali, no meio daquela gente grande que fala com sotaque mineiro tão carregado que parece outra língua, um dialeto, mesmo,  me punham de goleiro. Até que agarrei umas bolas. Uma vez até me abraçaram, pois peguei um pênalty.

Brasil, país novato no continente gelado. Demoramos para chegar, O Tratado da Antártida, de 1959, resultou da ação dos doze países que mantinham operações de pesquisa e estações no continente: Argentina, Austrália, Bélgica, Chile, EUA, França, Japão, Noruega, Nova Zelândia, Reino Unido, Republic a Sul Africana e a URSS, hoje Rússia. Brasil aderiu ao Tratado em 1975, criando o Programa Antártico Brasileiro –PROANTAR em 1982. A Estação Antártica Comandante Ferraz foi inaugurada em fevereiro de 1984. Durante alguns anos subsequentes, permaneceu como estação ocupada apenas durante o verão. Quando lá estive, em 1985, chamava a atenção a precariedade das instalações, na verdade espelho de nossa inexperiência de vida em ambientes gelados, e com a dimensão do continente antártico. Para começo de conversa, as autoridades brasileiras encarregadas da instalação da estação optaram por localizá-la no fundo da chamada baía do Almirantado. Outras estações, como a da Polônia, se localizavam à entrada da baía, por ali haver maior exposição ao sol. A nossa, no fundo da  baía,  é muito mais sujeita ao frio, à neve, e às intempéries. Com o novo projeto da estação inaugurado há coisa de ano ou dois, o Brasil passou a dispor de uma das mais bem equipadas e amplas instalações  de um país de porte médio no continente. Sem dúvida, a mais moderna, sendo efetivamente um belo projeto.

A cheia no ribeirão, Fazenda do Paiol, foto Romulo F

Um dia, pela manhã, Daniel e eu saímos para explorar as redondezas. Primeiro a área das mangueiras, para chupar manga. Depois, para além do curral, ver a bicharada toda. Seguimos pela estrada de Esmeraldas até a grande barroca, um perigoso precipício formado pela erosão. Já caminhávamos de volta, caçando passarinho com o bodoque, quando de súbito vieram os trovões e a chuva forte. Corremos e nos abrigamos onde era possível, por sorte na casa humilde, de teto de sape, de um dos empregados da fazenda, meeiro nas colheitas. Víamos a casa da fazenda ao longe, depois do ribeirão, que a essa altura já fazia literalmente jus ao aumentativo, não mais o plácido riacho que sempre se cruzava com água no calcanhar. Tornozelo, mas dizíamos sempre calcanhar.  Não está mau de todo. Muito bem, passadas a chuvarada e a enchente, voltamos para casa, depois de agradecer aos donos da casinha o oportuno acolhimento. Já o sol se mostrava, mas era arredio em meio das nuvens retardatárias e ainda ainda bem respinguentas. Ia dizer ´nuvens de cara ainda fechada`, mas reservo o qualificativo para descrever, aquilo sim, era cara brava, a expressão do rosto e da voz da tia Miriquitinha ao nos ver, subindo tranquilos a escada que dava à cozinha. Estava muito nervosa, terá pensado o pior, ao não nos encontrar dentro de casa durante a tempestade, o ribeirão transbordando, rios, trovões. Brandia o cabresto em direção a Daniel, e me dizia ao mesmo tempo: «…e você, Pedrinho, você é porque é visita, se não entrava no couro também!», e continuou a ralhar com o pobre do Daniel, puxando-lhe a orelha. Eu escapara, «por ser visita», mas nós não havíamos dado conta do perigo por que passamos. Estávamos aprendendo a fronteira da inocência. Os demais primos de nossa idade ou pouco mais velhos tinham ficado em casa, não por conta da chuva, mas das aulas caseiras, ministradas pela Lúcia, a irmã professora, todos sentados ao redor da reconfortante mesa da sala de jantar.

Não era assim, contudo, com nossa estação primitiva, com aquecedores internos de resistência exposta, contentores revestidos com lambris de pinho, altamente inflamáveis. Coloquei bem claro em meu relatório oficial da missão essas observações, a respeito do iminente perigo de incêndio. Nossos primeiros projetistas com certeza desconheciam o fato mais importante, constante de toda a literatura da história das expedições ao continente, desde Amundsen e Scott, de que o maior perigo na Antártida não é o frio ou o gelo, mas o fogo. Infelizmente, deu-se essa tragédia em nossa estação passados alguns anos, creio que uma década, com um incêndio  iniciado nos geradores e que se espalhou pela estação, com duas mortes. Crônica de um incêndio previsível e anunciado. Relatórios, como se sabe, são feitos aparentemente para serem não lidos e tampouco levados em conta. De todo modo, eu lá estava não como perito na segurança das instalações, e sim como diplomata responsável pelos aspectos jurídicos e de relações internacionais no contexto da nossa missão.

Mesma precariedade com respeito às nossas roupas específicas para as condições locais. Hoje, os pesquisadores brasileiros residentes na estação dispõem de roupas adequadas. As roupas de que dispúnhamos em 1985, possivelmente feitas por alfaiates de fardas da Marinha, da rua da Alfândega no Rio de Janeiro, vazavam frio e água gélida pelas costuras. Voltei uma vez encharcado até as cuecas de uma visita à estação chilena. Embarcamos, na primeira parte da viagem, no Barão de Tefé, para em seguida passarmos ao bote de borracha e motor de popa que, se na ida deslizava em mar calmo, na volta batia em caturradas de proa contra as águas revoltas, submetendo-nos, todos a bordo—éramos uns cinco ou seis–, a intensa chuva de água a temperaturas abaixo de zero. Fomos então recompensados com uma belíssima dose de uísque a bordo do Barão de Tefé, após galgarmos, com o corpo gelado,  as escadas laterais de corda (cabos) entrelaçada, à moda dos piratas, o costado também gélido do navio. Saudoso preparo físico! Como representante do Itamaraty, e à época nas funções de subchefe da Divisão do Mar, da Antártida e do Espaço Exterior (DMAE) na Secretaria de Estado, em Brasília, tinha como principal ocupação durante os cerca de dez dias na estação participar das visitas a outras estações vizinhas (lembro-me do orgulho, creio que dos poloneses, em mostrar-nos o canteiro de tomates frescos que mantinham em estufa na estação permanente), fazer inúmeras conferências sobre legislação antártica para os tripulantes e pesquisadores e, não menos importante, passear em meio a colônias de pinguins.

Hoje, o Sistema do Tratado da Antártida, que congrega o tratado de 1959 e vários outros acordos e convenções, constitui organização sólida, de que participam tanto os membros originais, chamados «territorialistas» por manterem suas pretensões de domínio sobre as respectivas projeções cartográficas sobre o continente, como os «não-terriorialistas», o maior número das «partes consultivas», entre aqueles «não-territorialistas»  o Brasil. No frio antártico, o lema do barão do Rio Branco, «ubique patriae memor», a lembrança da pátria, navegando as fronteiras abertas da liberdade.

Gloriosos dias, antes de avançar pelas fronteiras da vida adulta, naquela Fazenda do Paiol, comendo as saborosas coxas de frango «com muita pele, como se lembra Martha, a Rapinha, da forma como eu as pedia à tia Mariquitinha, fora as paneladas de rolinhas selvagens, pássaros do porte de uma codorna, e muito saborosos, que os maiores caçavam de cartucheira ali por perto. Nós também caçávamos algumas, armados de nossos bodoques. Aventura quase de filme de terror era ver matar porco—e como gritam os porcos e protestam diante da faca grosseira que lhes vai ao coração direto. O resto era jogar bola e tomar banho no ribeirão. Ah, e ali perto da casa estavam sempre à vista os pés de marmelo, com suas varas ameaçadoras, e que silvavam quando eram brandidas como chicote, mas nunca usadas dessa forma, mais bem em nossos jogos de vaqueiros. E ouvir à noite, na varanda, as histórias (também santas e bárbaras), mais os conselhos dos dois velhinhos, pais de Mariquitinha e Ignacinho, o Seu Ignácio e o Seu Moreira. Contos e conselhos mineiros, que habitam nossa pele, a dos netos, e a minha, sem nos darmos conta.