Os Prazeres Ocultos (e transcendentais) da Refeição Solitária: Ensaios sobre a teoria e a prática do comer sozinho
« Uma noite, depois da ópera, fui cear solitariamente ao Bignon. Tinha encetado as ostras e uma crônica do Temps, quando por trás do jornal que eu encostara à garrafa, assomou uma larga mancha clara, que era um colete, um peitilho, uma gravata, uma face, tudo de incomparável brancura.»
Eça de Queiroz. A Correspondência de Fradique Mendes, p. 56.
O ato de alimentar-se é geralmente prazeroso para o ser humano saudável. Comer é gostoso. Claro que há muitas éticas ( a protestante, por exemplo), em diversas culturas, seitas religiosas ou de outra natureza, sociedades inteiras, mesmo, que reprimem ou negam essa correlação. Assim como reprimem ou negam o vínculo entre sexo e prazer, e que, nesse intuito, chegam ao ponto de mutilar física e mentalmente homens e mulheres.
Suspeito que boa parcela da história da humanidade, suas guerras e seus conflitos econômicos e políticos, poderá ser melhor compreendida se examinada a partir da identidade entre a precisão de satisfazer a fome e o bem-estar comum, e o controle das sociedades. Ou seja, a identidade entre a polis e as ideologias.
Questão é bem conhecida, está aí disponível todo o universo da teoria política, desde Homero e Tucídides, passando por São Tomás de Aquino e Santo Agostinho, Locke, Hobbes, Montesquieu, Toqueville, Rousseau, Marx e a Escola de Frankfurt, chegando a Hanna Harendt, Popper e Sassure.
Mas há, nessa cornucópia abrangente da alimentação, portanto da sobrevivência, e sua relação com o prazer, uma área pouco notada, ignorada mesmo, cheia de imagens borradas, coberta por preconceitos e distorções, e que tem no interior uma luz própria e uma energia toda especial, até agora bastante ocultas aos nosso olhar viciado sobre o convívio humano na relação com a refeição.
Sem a pretensão de reviver a cena de Fradique Mendes, ao «cear solitariamente ao Bignon», em epígrafe, é fato que, ao almoçar sozinho em um restaurante simpático de Lisboa, dias atrás, li e-mail enviado por uma grande amiga, de Belo Horizonte. Trazia texto que eu lhe escrevera talvez umas cinco décadas atrás, quando ensaiávamos um namoro.
O texto sobre uma árvore de flores vermelhas, o «flamboyant». Por ser de uma intimidade ofegante, fiquei contente em poder lê-lo no meu canto de mesa solitário e chorar baixinho ao ver o quanto brinco puerilmente com as palavras em torno da beleza de uma árvore que muitos desprezam, talvez por não ter a nobreza de uma copaíba ou de um ipê.
Todos sabemos quão perigoso é mexer com palavras, é como tocar na lâmpada do gênio, sem saber que magias serão reveladas, desejadas ou não. Mas, nesse caso, ao fazê-lo, relendo aquelas linhas, um duende, um saci de nossos cerrados mineiros, puxou do cachimbo e do espelho e me mostrou, entre baforadas, o desamparo de vestimentas em que a condição de comer à sós me havia deixado.
Ali estava minha imagem no espelho, por assim dizer, nua e crua, ainda que em brumas fumacentas da memória, sem as roupas das convenções, da sociabilidade, das conversas ideológicas–que toda conversa é ideológica justamente por ser uma conversa, intercâmbio de ideias.
Não, era eu diante de mim mesmo, o ser diante de si próprio. Ocorreu-me imediatamente que o indivíduo, ao comer sozinho, querendo, é um ser privilegiado, enquanto nessa condição de estar a sós com a sua refeição. Possível? Resolvi confessar minhas experiências, dando-lhes entretanto o tratamento de ensaios, algo extensos, para o que conto com a paciência cândida do leitor, e cujo conteúdo é o desdobramento deste relato breve.
Antes, segue, para referência, o texto sobre o flamboyant, pelo que valha.
Que fique claro que solicitei e obtive permissão da minha amiga para voltar a apropriar-me, temporariamente, do texto, escrito para ela e que portanto continua a ser de sua propriedade:
FLAMBOYANT
«Eu me lembro muito bem do flamboyant da sua casa. Aliás, falar de flamboyant (com ipsilon) é falar de casa. Só os mineiros sabem algo a respeito dessa árvore e a respeitam. Os outros acham que têm coisas melhores.
O flamboyant é meio chato, porque não dá boa sombra. Também, não é sempre que se dispõe a mostrar suas flores vermelhas. Quando a gente quer, não tem, tem que esperar. Bem, o flamboyant me marca porque a árvore, acho que depois da floração, dá umas varetas que são boas de jogar longe.
Voam como se fossem pás de helicóptero: sabe, aquele de elástico e plástico, que a gente ganha no Natal (já sei, ganhava; mas eu não gosto do imperfeito do indicativo, me recuso a usá-lo. Verbo, pra mim, tem que estar no presente ou no futuro. Acho bom o futuro, e não me recuso a usá-lo, mesmo no passado, quanto mais no presente).
A gente, com o dedo, vai “dando corda” nas (nos?) hélices do helicopterinho. A “corda” é de borracha elástica (dessas que na escola a gente usa pra amarrar o estojo de lata que fica abrindo sempre quando a gente não quer, em especial quando está na garupa de uma bicicleta e os lápis caem (quando o estojo abre com um solavanco qualquer, mesmo que seja do coração) no chão bem esparramadinhos, com as pontas quebradas.
Se a gente não der corda direito, a (o ?) hélice começa a girar com muita força, e se desprende (ia dizer sai, mas desprender é mais coerente com um flamboyant). Que nem as varetas do flamboyant. Verdadeiros boomerangs. Não deixe de colocar as varetas no seu baú.
O flamboyant me diz que cheguei em casa. Há muito tempo não vejo um verdadeiramente mineiro, como aquele da sua casa. Era alto, pelo menos para minha idade. Por cá, em Brasília, há muitos. Por afinidade, eu gosto deles.
Também são muito bonitos. Se destacam assim no meio do cerrado, você terávisto (futuro do pretérito, pode). Ressentem-se da competição com os ipês, que ganham sempre medalha de ouro.
Mas, os flamboyants guardarão sempre a medalha vermelha, da natureza ferida. É aquela velha história. No geral, um flamboyant só é notado quando expõe as suas feridas, seu sangue. Pergunto, precisamos chegar a tanto? Pergunte lá pro psiquiatra. De outra forma é uma árvore sem flor, sem sombra, num chão quase sempre ressequido.
Que destino, meu Deus. Para mim, não: suas varetas mágicas o salvam, o tornam eterno. Eu continuo brincando com essas varetas mágicas. E são muito mágicas. Pode tentar, mas não cabem na sua imaginação, muito menos na minha. Elas me dizem que posso voar (não me venha com interpretações, essas coisas de adulto.
Sei perfeitamente identificar um adulto pela ânsia que sempre carrega de interpretar coisas. Interpretar, longe de ser um traço de inteligência, significa degenerar.
Começamos a morrer ao interpretarmos. Você precisa de interpretar Hamlet? Faça-o e morrerá do mesmo veneno que ele).
Lembro-me sim do seu flamboyant.
Lembro-me de cada flamboyant em Belô.
Vão cortar mais um? Vou te dizer uma coisa. Pegue um lápis colorido, desenhe o nosso flamboyant.
Tire depois, com cuidado, uma vareta, assim bem fininha e comprida (são as melhores de fazer mágica), plante num canto de terra onde você vá sempre e finque na vareta o papel com o desenho do flamboyant.
Não carece de molhar muito.
Dê um beijo no papel, em cima da flor mais bela que conseguiu desenhar. Pode estar certa que a varinha me trará esse beijo.
Renove sempre.»