1-VIDA DE CONSULADO: CARLOS CÂMARA PESTANA
Logo após eu ter assumido as funções de Cônsul-geral do Brasil em Lisboa, em agosto de 1999, pediu hora para ver-me o senhor Carlos Câmara Pestana, que se identificou como diretor do Conselho Consultivo do Banco Itaú para a Europa. Recebi, à hora aprazada, esse homem extraordinário, por todos os méritos. Advogado e pessoa de grande proeminência no mundo das finanças em Portugal, presidia o Banco Português do Atlântico-BPA, dos maiores conglomerados financeiros do país nas décadas de 1950 e 1960, quando se viu na contingência, com a Revolução de 25 de abril de 1974, de emigrar para o Brasil[1]. Por seu currículo e suas relações pessoais no mundo dos negócios, foi admitido no Banco Itaú, onde começou nova carreira, chegando à presidência da instituição depois de quinze anos.
Aceitou o cafezinho que lhe ofereci e, num tom de voz suave, mas sempre sério, iniciou a conversa dizendo-me da gratidão que tinha pelo Brasil, país que o acolhera tão bem numa hora de grande dificuldade para ele. Disse que não se esqueceria jamais de ter sido recebido de braços abertos e ter sido tratado da maneira mais amiga e fraternal por todos no país que, à época, em 1975, quando emigrou, enfrentava, com o regime militar (o general Geisel, ex-presidente da Petrobrás, havia recém assumido a Presidência da República), grandes desafios e dificuldades.
Talvez valha aqui reproduzir pequeno trecho de entrevista que o doutor Carlos Pestana concedeu ao jornal «O Público», há poucos anos[2], quando recebeu, das autoridades brasileiras, a autorização de residência: « ´Fui à delegação do Ministério da Justiça do Rio de Janeiro, que funcionava num prédio, onde havia filas muito grandes, 90% eram portugueses de Angola e de Moçambique`, recorda. Receia que o facto de ter liderado o Grémio dos Bancos lhe cause problemas. Um receio infundado. A 15 de Agosto recebe a carteira de residência e pode mandar vir a família. Com os papéis na mão, vai agradecer à directora do serviço. A resposta ficou-lhe para sempre na memória. ´E ela faz isto, que é extraordinário: levanta-se, vem até à porta, estende-me a mão e diz-me: ´Não é o senhor que tem de agradecer. Eu é que, como brasileira, tenho de agradecer que uma pessoa como o senhor escolha o meu país para viver, numa situação tão infeliz do seu país.` ´Quando saí dali, já ia levitando`, recorda com emoção.»
Câmara Pestana continuou, no mesmo tom de voz:– estou de retorno a Portugal, por motivos familiares (mais tarde vim a saber que sua mulher, a quem sempre se referia com a mais elevada estima, se enfermara), e ocupo apenas funções consultivas no Itaú, presidindo seu Conselho para a Europa. Minha gratidão ao Brasil, à maneira como fui recebido e tratado pelos brasileiros é imensa, e gostaria muito de retribuir, de alguma forma. O objetivo de minha visita é de indagar ao senhor Cônsul-Geral se vê algo em que eu possa ajudá-lo em suas tarefas e ao Consulado.
Ao longo das duas vezes em que servi em Lisboa, primeiro como Cônsul-Geral (1999-2001), e posteriormente como Embaixador-Representante Permanente junto à Comunidade dos Países de Lingua Portuguesa—CPLP (2010-2014) tive sempre o privilégio de lidar com personalidades, públicas, empresariais, do mundo cultural ou diplomático da melhor estirpe. Posso afirmar que o mesmo diriam os embaixadores, e demais chefes de missão diplomática ou consular do Brasil que aqui serviram. Portugal é generoso na qualidade de sua gente e de seus líderes. Devo, entretanto, confessar que a visita de Câmara Pestana, suas palavras de gratidão ao Brasil e, não menos, sua oferta de ajuda desinteressada me tocaram particularmente. Por ser quem ele é.
Não tive maiores dificuldades em responder, fazendo-lhe uma proposta. Na altura em que me visitou, o Consulado-Geral do Brasil em Lisboa atendia, em média, 300 consultas diárias, com picos de até 600 atendimentos. Havia um «boom» de crescimento no país, após a entrada para a União Europeia, e muita demanda por trabalho, em especial na construção civil. A emigração brasileira, de trabalhadores nesse setor, o da construção civil, se fazia às pencas de centenas por dia, manipulados por máfias, e transportados em voos da Transbrasil (para aqueles que se lembram dessa cia. aérea brasileira). Ignorantes e iletrados muitos deles, vinham a Portugal sem saber que viajavam para outro país, chegavam sem bagagem, em manga de camisa no inverno, eram instruídos pelas máfias a dizer às autoridades nos aeroportos que vinham a turismo (por exemplo , «na Ilha da Madeira», e, quando indagados sobre como pretendiam lá chegar, diziam que iriam «de táxi»!).
O índice de retorno (entrada no país recusada) era, evidentemente, enorme. Na grande maioria, os que conseguiam entrar, ou arranjavam logo emprego irregular na construção, ou se isolavam em «ghettos», dormiam ao relento ou mesmo em caçambas de lixo. Soube disso logo, muitos vinham ao consulado, outros, aos milhares, sequer sabiam da existência do consulado.
Certo dia, um padre de uma comunidade perto de Mafra veio ter comigo. Expôs a situação degradante de várias centenas de imigrados brasileiros que começaram a frequentar sua igreja, em demanda de serviços básicos que a pequena paróquia não tinha condições de atender.
Fomos lá, tendo montado um «consulado itinerante», e prestamos a atenção básica àqueles brasileiros desvalidos. A cada dia que passava, casos semelhantes se multiplicavam. Em outras palavras, havia uma forte e crescente demanda pelos serviços consulares, por parte dos cidadãos nacionais, a maioria recém emigrada, portanto mais carente de orientação, apoio e atenção. Isso acontecia sobretudo na circunscrição de Lisboa, talvez um pouco menos na do Porto, onde a comunidade brasileira era, e creio que ainda é, mais estável, com uma média maior de tempo de residência em Portugal. Recorde-se que à época, a circunscrição do Consulado Geral em Lisboa abrangia as regiões do centro e do sul do país, inclusive o Algarve, onde tínhamos apenas um consulado honorário. O empreendedor brasileiro André Jordan, nosso Cônsul Honorário no Algarve, mantinha aberto um escritório em Villa Moura, prestando-nos inestimáveis serviços de apoio consular.
Disse a Câmara Pestana que o Departamento Consular do Ministério das Relações Exteriores , em Brasília, estava naquele momento empenhado em projeto de aperfeiçoamento e informatização do sistema consular como um todo, uma necessidade que se evidenciava ainda mais com o crescente surto de emigração brasileira para diversos países em várias partes do mundo. A situação do Consulado Geral em Lisboa, conforme assinalei, não era nem de longe um caso isolado, mas era urgente buscar de imediato meios de automatizar diversos procedimentos internos e de atendimento ao público.
O Consulado Geral em Lisboa ainda tinha a sede na Praça Camões, num vetusto prédio alugado há quase um século, com condições precárias para atender a nova demanda de forma eficiente. Tendo em vista que o projeto referido, ainda na fase de testes, não estaria pronto para aplicação a curto prazo, indaguei a Câmara Pestana se não seria possível obter-se do Banco Itaú, diante da sua alta capacidade em informática, projeto a ser aplicado no Consulado Geral em Lisboa de forma quase imediata.
Câmara Pestana aceitou o desafio, e se dispôs a examinar sua factibilidade com o Itaú. Pendente a minha observação, de que teria que preliminarmente submeter ao Itamaraty a proposta, ficamos, naquela breve visita, acordados com a perspectiva de encontrar pronto alívio para muitas das dificuldades burocráticas que emperravam o trabalho consular. Submeti logo em seguida esse entendimento à Secretaria de Estado e recebi, passado pouco tempo, a concordância oficial para seguir adiante com a proposta.
Tivemos, Câmara Pestana e eu, vários encontros subsequentes, por assim dizer de trabalho, para «afinar» a proposta. Não é nada fácil traduzir, para uma linguagem operativa, do ponto de vista empresarial, os procedimentos de que tratam os manuais do serviço consular. Ademais, há, naturalmente, no serviço consular, como no serviço diplomático, áreas de segurança, fora os arquivos confidenciais, que deveriam ficar isolados, excluídos da eventual cooperação com o Itaú.
Passadas algumas poucas semanas de recebida a autorização devida do nosso Departamento de Assuntos Consulares em Brasília, chega a Lisboa uma equipe de 5 ou 6 técnicos em informática do Itaú. Essa equipe trabalhou, por várias semanas, entre idas e vindas, nos diversos setores do consulado, em todo o horário do expediente, inteirando-se dos procedimentos ligados a cada tipo de serviço prestado, notadamente os de natureza cartorial, mas não só. Os procedimentos de atendimento, por exemplo, foram os primeiros a serem agilizados. Devo notar que pude contar com todo o apoio da Secretaria de Estado e do Departamento de Assuntos Consulares.
O projeto foi preparado e posto em aplicação ao final de um período de cerca de três meses. Com boa parte dos métodos de trabalho e dos procedimentos informatizados, foi notável a melhoria na eficiência e produtividade dos serviços no consulado.
Diante desses resultados, cheguei a sugerir à Secretaria de Estado fosse o projeto utilizado em outras unidades consulares, tendo entretanto recebido a resposta de que o projeto de informatização e de uniformização dos serviços consulares já estava em fase adiantada de testes e que portanto seria melhor evitar a duplicação de esforços. Foi, de fato, num momento de transição que pudemos aproveitar a oferta de ajuda oferecida pelo doutor Câmara Pestana, até que o projeto abrangente desenvolvido pelo Departamento de Assuntos Consulares do Itamaraty, de informatização de todos os serviços consulares, começasse, ao longo dos anos seguintes, a ser aplicado gradativa mas uniformemente em todo nosso sistema consular.
[1]Carlos Câmara Pestana, Web: O Publico, Revista-2, 12 de Janeiro de 2014, «O banqueiro que viveu duas vezes»: « O homem que antes da revolução, a meio da vida, se tornara um dos obreiros (há quem afirme que foi o principal) da transformação do Banco Português do Atlântico num império financeiro mais poderoso do que os grupos Mello ou Espírito Santo surgia agora acossado. Sentira-o no ambiente da instituição financeira, percebera-o numa conversa com Álvaro Cunhal, ficara com a certeza de que ser banqueiro, e para mais bem sucedido, era ser contra o novo regime. Tarde ou cedo, teria de abandonar o país. À sua espera estava o Brasil, onde Câmara Pestana iria repetir a façanha do BPA: começa por baixo e no prazo de quinze anos, chega à cúpula do Itaú, que ajudará a transformar no mais importante banco privado da América Latina ( com activos de 400 mil milhões, três vezes mais do que o défice público português).»
[2] O Público, Revista-2, op.cit