II-GENEBRA
DOIS CASOS GENEBRINOS
A) GATT e a Rodada Uruguai; o meio ambiente.
Após o almoço no «Café de Paris», recém chegados à cidade, minha mulher, Moira, então Primeira-Secretária, as filhas pequenas Laila e Cecília e eu, Conselheiro, prestes a assumir nossas funções na Missão do Brasil junto aos Organismos Internacionais sediados em Genebra, na Suíça, chamada de Delegação Permanente em Genebra–DELBRASGEN, descíamos a Rue du Mont Blanc em passeio despreocupado. De repente, caminhando em nossa direção, uma jovem senhora, de preto, mais magra do que o comum, olhos retorcidos por detrás de óculos de gatinho, gritou em tom exaltado conosco: « vous ne pouvez pas vous mettre dans ma trajectoire!», algo como «afastem-se do meu caminho», ou «saiam da minha frente».
Tomados de espanto, como não oferecemos qualquer reação, outra vez repetiu a frase, omitindo o sujeito para ser mais ríspida, em modo sempre imperativo, «pouvez pas vous mettre dans ma trajectoire!», e seguiu caminho, pisando duro.
Pronto! O que era aquilo? Logo vi que caminhávamos agrupados, nós, Moira e eu, de mãos dadas com as duas crianças e que talvez tivéssemos ocupado pelo menos em parte o espaço que marcaria a trajetória projetada em seu caminho pela senhora de preto e cara de evangélico em transe. Bem, Genebra, terra onde se fez o francês Calvino, compreende-se.
Nós seguíamos pelo amplo passeio do lado direito de quem desce a rua, ela subia. Com passos tão fortes e decididos como, tirante os militares que o fazem por ofício, só os políticos e os autocratas donos da verdade dão. Imagino, pelo sotaque entre estridente e compassado, que fosse uma suíça, provavelmente genebrina, de perfil talvez algo racista e xenófobo. A «trajetória» dela tinha que estar livre, sem impedimentos.
Não me dei conta no momento, mal havia pisado nas margens do Lago Léman, mas essa frase sintetizará o ambiente negociador da maioria dos foros genebrinos de que participei, e não foram poucos, onde os países desenvolvidos são igualmente imperativos em suas «trajetórias», que esperam ver sempre desimpedidas.
E nós pobres, novinhos em folha na terra do calvinismo, de Rousseau e do GATT, do Palácio das Nações, sede das Nações Unidas por essas bandas europeias, não devíamos opor impedimentos ao livre caminhar da senhora irritadiça, de óculos de gatinho. Devíamos, como manda a educação, ir adiante aglomerados pela direita.
Sabíamos disso, claro, somos pessoas educadas, mas era um começo de tarde num domingo, pouca gente na rua, e a calçada bem ampla. De nada valem essas considerações, aprendemos logo a lição.
Anos mais tarde, na segunda vez que servi em Genebra, já como embaixador, Representante Residente do Brasil junto à Conferência do Desarmamento, cheguei mesmo a indagar, a sério, de um colega suíço, se fazia parte do currículo escolar no país curso sobre como caminhar nas ruas. Ele ficou de início na dúvida—o que mostra que minha pergunta fazia sentido, mas acabou por dizer que não, não fazia parte do currículo escolar aulas sobre como andar pelas ruas.
Pois bem, o episódio descrito acima é, como sugeri, o retrato fiel dos contextos e foros negociadores multilaterais em Genebra. Disciplina rigorosa na definição de agendas e mandatos, ênfase nos aspectos técnicos dos temas, em geral econômicos, com a marginalização de sua dimensão política, e tendência forte ao prevalecimento dos interesses dos países ricos em cada texto negociado, a ser aprovado em trajetória livre, sem oposição efetiva: «vous ne pouvez pas vous mettre dans notre trajectoire», é o que sempre parecem dizer os países desenvolvidos ao grupo de países em desenvolvimento, nas reuniões levadas a efeito em Genebra. Talvez não seja mais assim, agora, as coisas mudam, evoluem, a OMC veio no lugar do GATT, por exemplo, mas o era então, com certeza.
O Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas-GATT, entidade que precedeu a Organização Mundial do Comércio-OMC, esta somente criada no início de 1995, após as negociações da Rodada Uruguai em 1994, espelhava bem isso, dominado por quatro ou cinco grandes países ricos—EUA, Japão, Canadá, mais a Comissão da União Europeia, o seleto e exclusivo «clube do Green Room» que, reunidos nessa sala da sede do GATT, ali na Rue de Lausanne 154, ditavam as regras do comércio mundial: Rússia, ainda União Soviética quando lá cheguei pela primeira vez, em 1989, e China não eram membros do Acordo Geral, uma espécie de associação limitada a pouco mais de 40 países, as «Partes Contratantes», onde, dentre os poucos em desenvolvimento membros, apenas alguns sobressaíam, entre eles Brasil e Índia, únicos capazes de opor alguma resistência aos ditames dos maiorais do clube, sendo sempre, contudo, lembrados de que a oposição à «trajetória» deles, os maiorais, tinha limites.[1]
Durante a Rodada Uruguai, nós, de DELBRASGEN, sobretudo e eu e meu colega mais novo, hoje embaixador e com carreira marcada pela seriedade e alto nível de competência, Tovar da Silva Nunes, delegados pelo Brasil junto aos chamados «Novos Temas», recebíamos na Missão quase toda semana um qualificado técnico da UNCTAD para conversas informais muito instrutivas e orientadoras sobre o processo negociador, a partir do que podíamos melhor balizar nosso trabalho com base nas instruções de Brasília. Vale lembrar, como descrevo a seguir, que pouca gente sabia exatamente o que eram as negociações sobre comércio de serviços ou sobre propriedade intelectual, do ponto de vista de disciplinas do comércio internacional.
Também em Genebra, no carinhosamente chamado «Palais», atua o Conselho da ONU para Direitos Humanos, com seu Alto Comissariado; e ali, com toda sua tradição de altas negociações sobre os destinos da humanidade, está sediada a Conferência (das Nações Unidas) do Desarmamento-CD, à qual está reservada, com exclusividade de uso para suas sessões, a sala mais imponente de todo o Palais, sobriamente decorada com os afrescos de De Sert sobre «a Guerra e a Paz», que cobrem todo o teto e dão à sala um ar de bronze atemporal.
Na segunda vez em que servi em Genebra, de 2014 a 2016, apresentei, no salão nobre contíguo à esta sala, minhas cartas credenciais como embaixador Representante Permanente do Brasil junto à Conferência do Desarmamento ao Secretário Geral da ONU («Deputy»)-em Genebra.[3]
Contrariamente a Nova York, onde o grosso da atividade diplomática multilateral se concentra na ONU e seus escritórios, como o PNUD, em Genebra a regra é a diversificação desse trabalho pelos diversos foros. Qualquer um de nós, diplomatas lotados na cidade, acaba inevitavelmente por participar de reuniões e sessões negociadoras em muitos dos foros sediados na cidade e arredores, sem exagero. A princípio, pareceria que nos concentramos, no trabalho, nas distintas especializações. O diplomata especializado em política comercial concentrará suas atividades na OMC.
Isso pode ocorrer, sobretudo com diplomatas de países com mais de uma Missão sediada em Genebra, como é o caso do Brasil, com três Missões, uma junto à ONU, outra junto à OMC e ainda uma terceira, a Representação junto à CD-Conferência do Desarmamento (esta, no momento, apenas em termos funcionais, já que administrativamente está vinculada à Missão junto à ONU-DELBRASGEN).
Dá-se entretanto que, hoje em dia, os mesmos temas, inclusive os comerciais, tratados sob diferentes perspectivas, ou perspectivas complementares, são negociados em muitos foros, ao mesmo tempo ou quase. Como resultado, uma intensa agenda de trabalho para cada diplomata, parecida, mal comparando, claro, com a de um médico que se desdobra em sua jornada para atender em diversos hospitais e consultório, dar aulas, participar de seminários. Lembrar ainda que estamos sempre já cedo, em nossas Missões, para tomar conhecimento das instruções recebidas da Secretaria de Estado, e para lá retornar ao fim das sessões negociadoras—que muito amiúde se estendem a desoras e pelos fins de semana, limitando mais ainda o o pouco tempo reservado para nossa vida privada.
A recompensa por todo esse enorme trabalho? O vanguardismo da agenda. Mais talvez do que em Nova York, os temas negociados em Genebra costumam estar na vanguarda da agenda internacional multilateral. São temas que posteriomente, anos depois, senão décadas depois, entrarão nas agendas de outros foros, alhures, ou mesmo em Nova York, em foros regionais, e, sempre décadas depois, nas agendas nacionais de cada país.
O tema da mudança do clima, com o IPCC-International Panel on Climate Change, pequeno grupo seleto de cientistas, reunindo-se com representantes governamentais em fins da década de 1980 e começos da década seguinte, em Genebra e arredores, sem merecer qualquer atenção focal no âmbito multilateral, e muito menos nos âmbitos regionais ou nacionais, é um exemplo marcante e atual dessa dinâmica. Mesma coisa para temas como o comércio de serviços, ou o da propriedade intelectual. Toda a temática ambiental com seu disciplinamento internacional, nas suas diversas ramificações, esteve por vários anos concentrada em Genebra, no desdobramento da Conferência de Estocolmo de 1972.
Logo de minha primeira chegada a Genebra «como posto», isto é, em lotação permanente na Missão do Brasil– DELBRASGEN, em 1989, a Rodada Uruguai—conjunto de negociações comerciais de abrangência ampla no contexto do GATT estava a meio do caminho, desde seu lançamento em reunião ministerial em Montevideu, em 1986. Meu chefe, o embaixador Rubens Ricúpero, com quem eu já havia trabalhado na embaixada em Washington e outras ocasiões, integrou-me, como já mencionei, à nossa delegação aos três «Novos Temas»–comércio de serviços; comércio e propriedade intelectual; e comércio e investimentos. Fizemos assim uma dupla, Tovar e eu, num bom trabalho em equipe. Eram essas questões assim chamadas de «novos temas» pelo ineditismo de sua inclusão no âmbito das negociações comerciais no GATT, estas tradicionalmente restritas ao comércio de bens e às negociações tarifárias, ademais de temas correlatos, como as exceções relativas ao «balanço de pagamentos»–BOP, na sigla em inglês, de cada país, tema mais afeto, por óbvio, aos países em desenvolvimento, por sempre apresentarem deficits crônicos nesse quesito. Justamente por esse motivo, as reuniões sobre BOP eram muito divertidas, sendo das poucas onde nós, os PEDs no GATT, podíamos conseguir resultados favoráveis, com exceções, ou «waivers», na aplicação de disciplinas do GATT, como «nação mais favorecida» ou «tratamento nacional».
Com a mudança das regras ao fim da Rodada Uruguai, e a criação da OMC, as exceções BOP se diluíram ou evoluíram, tendo ademais ficado sem sentido com o processo de globalização e o prevalecimento, no âmbito do comércio internacional, do liberalismo econômico iniciado nos EUA em 1980, de que foi consequência, aliás, o lançamento da própria Rodada Uruguai.
No Brasil, essa virada em direção ao liberalismo e à abertura comercial deu-se no início da década de 1990, no governo Collor. Senti na pele essas mudanças, ao longo das negociações na Rodada Uruguai, sobretudo no Grupo Negociador sobre Serviços, mas também com força no Grupo Negociador sobre Propriedade Intelectual. No terceiro grupo negociador relativo aos «novos temas», o grupo sobre «medidas de investimento relacionadas ao comércio-TRIMs, na sigla em inglês, as negociações se arrastavam, quase paralizadas pelas dificuldades inerentes à questão e pelas posições muito diferenciadas acerca do tema de como regular, controlar e proteger o investimento direto estrangeiro).
Nos dois outros grupos negociadores referidos, contudo, nós, delegados dos países em desenvolvimento mais ativos na articulação de seus interesses nas negociações, notadamente Brasil e Índia, atuávamos dentro de um quadro tradicionalmente mais bem protecionista. Meu antecessor na chefia da nossa delegação a esses grupos tinha sido o próprio Chefe da nossa Missão em Genebra, o Embaixador Paulo Nogueira Batista, a quem Ricúpero havia substituído meses antes.
Paulo Nogueira Batista era , conforme pude sentir nos meus primeiros contatos com as delegações nesses grupos, reverenciado e respeitado por suas intervenções lúcidas, e pela coragem na defesa de interesses comuns aos PEDs, enfrentando quase que sozinho, e sempre em apoio mutuo com a índia, o verdadeiro «rolo compressor» em favor de uma abertura indiscriminada do comércio em serviços e da proteção absoluta aos direitos de propriedade intelectual (por conta da necessidade de proteção dos avanços tecnológicos nos países desenvolvidos), razão de ser da inclusão desses temas na Rodada na visão dos EUA, Comissão da União Européia, e demais poderosos do Green Room .
Devo insistir em que o comércio de serviços nunca tinha sido, até então, objeto de disciplinas no GATT. O «Acordo Geral» sempre se limitou ao comércio de bens. Serviços, na macro-economia e na contabilidade pública, eram os « invisíveis» (transações de serviços no balanço de pagamentos, tais como seguros, fretes, mas sem incluir, por exemplo, as transações ligadas ao investimento direto estrangeiro). Ainda em 1989, eram novidade, realmente um «novo tema», que havia sido introduzido no mandato negociador da Rodada Uruguai por conta do interesse dos países ricos que, no processo de globalização da economia com a aplicação das novas tecnologias da informação, começaram a vislumbrar o potencial do comércio de serviços e a necessidade da abertura dos mercados, notadamente nos países em desenvolvimento, ainda bastante fechados nessa área. Ainda eram os tempos da União Soviética e do Muro de Berlim. Mesmo muitos países desenvolvidos, como a Suíça e os nórdicos, tinham seus serviços públicos, tais como serviços financeiros ou de telecomunicações, controlados pelo Estado, sem qualquer tipo de abertura para a entrada de prestadores de serviços estrangeiros.
Somente em 2002 a ONU publicou o «Manual de estatísticas de Comércio Internacional de Serviços», com a descrição em pormenor dos quatro «modos» através dos quais os serviços podem ser comercializados internacionalmente, tendo em conta a localização de fornecedores e consumidores dos serviços transnacionais.
Nos países em desenvolvimento, não havia, efetivamente, tanto no setor público como no privado, noção da extensão do comércio de serviços ou de seu significado, em termos de negociação no âmbito do GATT. Meu colega da Colômbia, vizinho da bancada do Brasil no Grupo sobre Serviços, e meu parceiro de tênis nos fins de semana, estava recém chegado a Genebra, diretamente de Bogotá, onde desempenhava altas funções no Banco Central daquele país, no setor de serviços. Tendo já participado de algumas reuniões do Grupo sobre Serviços, confessou-me sua ignorância e perplexidade acerca do que se discutia ali, pois não tinha nada a ver com o seu trabalho anterior, ligado aos «invisíveis». Estávamos, de fato, diante de uma novidade, num debate bastante abstrato sobre como aplicar as disciplinas tradicionais do GATT, como «nação mais favorecida», «tratamento nacional», «barreiras não tarifárias» , etc, a este novo tipo de comércio, cujas peculiaridades apresentavam, do ponto de vista do estabelecimento de regras ou disciplinas no âmbito do comércio internacional, não poucas dificuldades—com poucas afinidades com o comércio de bens.
Algo semelhante, para dar outro exemplo do vanguardismo característico de Genebra no trato de temas de alcance internacional, se passa desde 2015, no âmbito da Conferência do Desarmamento, com as consultas e grupos de peritos sobre sistemas automáticos de armas-robôs que independem do controle humano.
Justo em 1989, o GATT publicou o primeiro relatório da instituição sobre «comércio de serviços». Revelou-se então, para espanto generalizado, que o comércio de serviços, em nível mundial, excedia em torno de 10% o valor do comércio de bens também em nível mundial. A partir daí, e por acaso o processo de globalização afirmando-se em coincidência com o fim da União Soviética e a Queda do Muro de Berlim, deu-se uma extraordinária ativação das negociações em curso no Grupo de Serviços da Rodada Uruguai.
O Brasil via-se num momento de transição, com os ensaios promovidos pelo governo Collor de abertura de sua economia. A essa altura, estávamos, Brasil, Índia e alguns outros países em desenvolvimento, engajados na afirmação, no processo negociador, do princípio do «tratamento especial e diferenciado» para os PEDs, conceito já adotado nos foros negociadores sobre a temática ambiental, e que no âmbito do GATT tinha seu fundamento na Parte IV do Acordo Geral, introduzida em 1965, de natureza apenas exortativa à facilitação do comércio com os países em desenvolvimento.
Fácil imaginar o quanto Brasil, Índia e alguns outros poucos países em desenvolvimento, como Argentina, Colômbia (que presidia o grupo Negociador sobre Serviços) e Egito, se viam pressionados para aceitar um acordo liberalizante na área do comércio de serviços, com a consequente abertura de seus mercados ainda bastante protegidos. Serviços financeiros ou de telecomunicações envolveram negociações especialmente complexas
O mesmo naturalmente se passava nos demais grupos dos «novos temas», ou seja, propriedade intelectual e investimentos, dentro das peculiaridades de cada um. Não havia, no GATT, experiência negociadora sobre essas temáticas, tipicamente navegávamos em águas não mapeadas, «unchartered waters», mas com uma única certeza: interesse forte dos países desenvolvidos, em especial EUA, UE, e Japão («demandeurs», em linguajar gattiano), em normatizar essas áreas no âmbito do comércio internacional. No caso da propriedade intelectual, pela evidente necessidade de proteger os direitos desse tipo de propriedade decorrentes do desenvolvimento tecnológico e seu valor comercial. Necessário ir portanto para além das convenções existentes sobre a matéria, geridas em sua maioria pela OMPI e pela Convenção de Paris e, e tratá-las na perspectiva de mercado e das relações comerciais: patentes, denominações de origem, registros, segredos comerciais, direitos autorais, praticamente todo o universo da propriedade intelectual passou a ser disciplinado comercialmente.
Em investimentos, havia questões ainda mais delicadas, muitas delas a tocar em áreas sensíveis de soberania nacional, como a da proteção dos direitos do investidor ou o da remessa de dividendos, ou o da movimentação de capitais.
Sabíamos que para nós, países em desenvolvimento, seria bastante difícil sustentar posições muito restritivas, defensivas ou de proteção de mercado, que não envolvessem compromissos abrangentes em outras áreas, onde nós tínhamos mais interesse em acessar os mercados dos países ricos, em especial em agricultura, outro tema que pela primeira vez, com a rodada Uruguai, foi objeto de negociações diferenciadas no âmbito do sistema GATT.
Nos «novos temas», sem dúvida, os «spoilers», os que questionavam o consenso acerca da adoção de disciplinas que favoreceriam uma liberalização abrangente e rápida dos mercados eram Brasil e índia, principais negociadores dos PEDs, já que a maioria adotava posturas discretas. Por essa época, em 1989 e 1990, no início de cada sessão negociadora, os chefes de cada grupo promoviam almoços ou jantares de consulta, com participação restrita aos principais negociadores. Dos PEDs, invariavelmente, apenas, Brasil e Índia, ocasionalmente também o Egito. Foram incontáveis as vezes em que, nessas ocasiões, o delegado norte-americano me qualificava como «spoiler» das discussões. Simplesmente por eu trazer à mesa objeções a «consensos» que evidentemente se formavam, junto com cardápios sofisticados e vinhos elegantes, em torno das posições dos países ricos. Certa vez chegou mesmo a dizer que eu sempre «envenenava» os jantares do grupo negociador. Pior que era uma quase verdade, no plano imagético.
Aprendi muito nessas reuniões informais. Sobre negociação e sobre culinária e gastronomia.
Constrangimento. Creio que foi esse o estado mental em que nos deixaram, a nós, os negociadores brasileiros nessa altura da Rodada Uruguai, as novas atitudes do governo Collor, de disposição para uma relativa abertura do mercado brasileiro. Tratava-se de uma política de comércio exterior mais do que devida, diante do anacronismo de um Brasil ainda quase que completamente fechado ao resto do mundo. As mudanças, porém, vinham com uma característica sem precedentes em termos de negociações internacionais: abertura unilateral, sem a proposta de contrapartidas. Reciprocidade, como se sabe, é uma condição indispensável a levar-se em conta em negociações diplomáticas. Não digo que seja imprescindível sempre a sua aplicação, mas é sempre bom ter esse elemento por perto.
No caso, passamos a ceder abertura de nossos mercados sem maiores contrapartidas. Algo como estamos fazendo hoje, no governo Bolsonaro, em nossas relações avassaladas com os EUA de Trump, nosso suserano incontestável do momento.
Por essa mesma época, despontava no horizonte negociador genebrino a temática do meio ambiente, na perspectiva da preparação da Conferência das Nações Unidas sobre Meio ambiente e Desenvolvimento—UNCED, prevista para o de Janeiro, em 1992, assim como das negociações paralelas das convenções e outras propostas de normatização dos temas «ambientais» (mudança do clima, diversidade biológica, proteção da camada de ozônio, florestas e desertificação). Em Genebra para uma reunião, Filipe Macedo-Soares, então ministro (da carreira diplomática, chamamos de «ministro de segunda classe», grau logo abaixo do «ministro de primeira classe», o seja , o de embaixador), chefe da recém-criada e toda poderosa Divisão do Meio Ambiente no Itamaraty, convidou-me para ficar com o «desk» de meio ambiente na nossa Missão, DELBRASGEN. Nas circunstâncias em que me encontrava, aceitei, pendente, claro, de consulta e aprovação pelo chefe da Missão, o embaixador Rubens Ricúpero.
Com efeito, a proposta era de meu interesse. As atividades sobre meio ambiente em Genebra começariam para valer somente em setembro, após o verão que se iniciava. Já as reuniões da Rodada Uruguai seguiam em ritmo frenético, e não me dariam espaço e tempo para finalizar a minha tese em preparação para o Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco–CAE. Ademais seria estimulante voltar a tratar das questões ambientais, um dos temas que primeiro me atribuíram na DNU, no começo da carreira, em 1973, e com o qual logo me afeiçoei—ainda que por então se tratasse de um tema «menor».
Sim, a Conferência de Estocolmo sobre Meio Ambiente Humano havia ocorrido há menos de um ano, em 1972, mas o seu seguimento («follow-up») apenas engatinhava, e não era absolutamente uma prioridade no contexto internacional, e muito menos nas agendas de política externa e de política interna nos países periféricos, como o Brasil. Menos ainda em um Brasil sob a ditadura militar, isolado externamente.
Única medida interna relativa ao desdobramento de Estocolmo foi a criação da Secretaria Especial do Meio Ambiente-SEMA, vinculada ao então Ministério do Interior, uma diminuta repartição cuja chefia coube ao saudoso Professor Paulo Nogueira Neto, um cientista biólogo de São Paulo, com especialidade em «abelhas sem ferrão», mas compreensivelmente sem a mínima noção do que constituía a questão ambiental no plano internacional. Seguira-se a Estocolmo a criação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente-PNUMA, com sede em Nairóbi. Paulo Nogueira Neto chefiou nossa delegação à primeira reunião do PNUMA. Guardo com carinho na memória o relatório oficial escrito pelo estimado professor Paulo Nogueira Neto: uma descrição pormenorizada da beleza da fauna e flora vistas no caminho do hotel para a sede do PNUMA, onde se deu o encontro, nos aforas de Nairóbi. Sobre a reunião, propriamente dita, apenas uma ou duas linhas, para dizer que tinha sido ótima. Sua bem intencionada ingenuidade encantou-nos a todos naquele momento, em meio à preocupação que já tínhamos com a desconexão, tão bem simbolizada no citado relatório, entre a agenda do governo brasileiro, para quem a questão ambiental ainda era praticamente ignorada, e tratada como uma mera questão menor, e a complexidade dessa agenda tal como já se desenhava no plano global.
Exceto pelas críticas intenacionais ainda incipientes mas já notáveis sobre desmatamento, garimpo predatório e queimadas na Amazônia, a questão ambiental entrou em nossa agenda indiretamente, com Itaipu e o diferendo com a Argentina sobre a questão do aproveitamento de rios compartidos. Como se recorda, tivemos um enorme e desnecessário desgaste de política externa, tanto em nossas relações com a Argentina e outros países vizinhos, como multilateralmente, na ONU, onde o Brasil ficou isolado, sofrendo derrotas vergonhosas na Assembléia Geral—tudo por conta de nossa equivocada insistência em não aceitarmos a noção de «consulta prévia» no aproveitamento hidrelétrico de rios compartilhados por dois ou mais países.
Sem dúvida, é uma questão complexa e potencialmente muito conflitiva. Ainda hoje, a Etiópia enfrenta objeções fortes de seus vizinhos ao norte, Sudão e Egito, por conta da grande represa construída sobre o Nilo em seu território, mas ao que parece sem obter ainda os entendimentos suficientes com os países a jusante (naturalmente defensivos diante das possíveis alterações do regime das águas desse rio).
Como ponto de conexão, o princípio da soberania sobre os recursos naturais. Trata-se de princípio que nunca foi questionado seriamente no plano internacional, ao contrário. Verdade que por tratar-se de fator prioritário sobretudo na agenda negociadora dos países em desenvolvimento, o fato é que sempre constou de todos os instrumentos internacionais negociados multilateralmente, em quaisquer das áreas correlatas ao meio ambiente (mudança do clima, biodiversidade, etc) como em outras áreas (direito do mar, recursos energéticos, renováveis ou não, recursos hídricos,etc). De tal forma que o desrespeito a esse princípio—na verdade uma norma de direito internacional–quando ocorre, não encontra guarida nas relações entre Estados. Assim como se dá em todas as áreas das relações internacionais, o conceito de soberania de cada Estado sobre seus recursos naturais evolui e se enriquece junto com a ampliação do conhecimento e em função das novas realidades. Sem prejuízo, naturalmente, de suas características fundamentais.
O mesmo se verifica por exemplo na ciência, com a mudança de paradigmas. Como sabemos, as descobertas einsteinianas sobre as relações de espaço e tempo, com as teorias da relatividade geral e restrita, não invalidaram as leis de Newton; apenas as expandem para o terreno até então inexplorado das velocidades próximas à da luz. No campo das relações internacionais, o conceito de soberania sobre os recursos naturais viu-se, em décadas recentes, sobretudo a partir da segunda parte do século XX, diante de desafios particularmente exigentes, bem visíveis no trato de questões como o direito do mar, o meio ambiente, e outros, como os recursos hídricos ou energéticos, que necessariamente, por sua característica transnacional, interagem com as noções de fronteira e de limites da soberania dos Estados.
Convém contudo admitir que essa norma, relativa à soberania dos Estados sobre seus recursos naturais, tem, periodicamente, sido arguida de forma distorcida, sobretudo por regimes de inclinação autoritária, para justificar a adoção de políticas públicas questionáveis. Isso, por mero receio e oposição a dinâmicas de desenvolvimento e integração cujo pressuposto será sempre a transparência inerente ao Estado democrático de direito. Pode-se, por essa linha, verificar, como descrevo mais acima, o quão falaciosa tem sido a postura do governo Bolsonaro, em especial na área externa, ao contra-argumentar as críticas à sua (inação) política e estímulo ostensivo à ocupação predatória da Amazônia com a alegação de «ameaças externas» à soberania do país sobre seus recursos naturais.
Ricúpero, sempre muito compreensivo, o que vejo como uma das qualidades dos grandes chefes, anuiu à minha mudança de «desk» na Missão, facilitada, no momento, pela chegada de novos colegas, entre eles o (então) ministro Sérgio Amaral e o (então) conselheiro Piragibe Taragô, colegas de «primeira água» e com certeza muito mais qualificados do que eu para assumirem as negociações nos grupos de minha responsabilidade no Rodada: Ricúpero confiou com tranquilidade a ambos, ao Sérgio Amaral os grupos sobre serviços e investimentos, e a Piragibe o grupo sobre propriedade intelectual. Pude assim contar com os meses de verão para terminar a minha tese, antes de entrar de chofre nas negociações ambientais em Genebra, e que me levaram a périplos constantes—e por vezes bem longos– a Nova York e Nairobi.
Minha saída das negociações da Rodada causou alguma surpresa, sobretudo no grupo sobre serviços, pois a essa altura já éramos, no «núcleo duro» dos negociadores, uma espécie de família, em virtude da frequência das reuniões, encontros informais, seminários, almoços e jantares de que participávamos. Pude explicar aos colegas que havia sido convocado para trabalhar nas negociações preparatórias da Conferência do Rio de Janeiro—UNCED, o que efetivamente foi o caso, as mesmas ocupando-me totalmente até o fim de minha primeira estada em Genebra, em 1992, e depois, vez que fui transferido para a Secretaria de Estado em Brasília, e chefiar a Divisão do Meio Ambiente-DEMA em seguida à UNCED e nos anos subsequentes.
Ficou, contudo, algo subentendido que minha saída se devia à mudança das posições que até então defendíamos, em função da abertura econômica e comercial levada a efeito pelo governo Collor. Com efeito, e tal como acima referido, essa abertura, ainda que mais do que devida em sua substância, no contexto de um país que política e economicamente necessitava de abrir-se ao resto do mundo e atualizar-se em suas relações externas, causou-nos algum constrangimento nas negociações, pela forma como foi ali traduzida, tirando-nos «o tapete», por assim dizer, ao ser feita com base em concessões sem crédito às noções de reciprocidade ou de contrapartidas.
São práticas que por vezes o Brasil tende a repetir, pelo bem ou pelo mal, como por exemplo no atual governo Bolsonaro, com a eliminação sem contrapartida da exigência de vistos para cidadãos norte-americanos (ainda que possa haver alguma justificativa de natureza vária, em casos como esse), ou a desistência, na OMC, da condição de país em desenvolvimento, com a perda das vantagens que essa condição nos proporciona no âmbito dessa organização. É falacioso, nesse sentido, o argumento de que a contrapartida para essa desistência da condição de país em desenvolvimento será a eventual entrada para a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico-OCDE, já que a acessão a essa organização, para além do «benefício» da mudança apenas formal e duvidosa de «status», apenas nos levará, em longo, custoso, e pouco realista processo de adaptação—em todos os setores da atividade econômica—a novas obrigações, próprias do quadro normativo dos países desenvolvidos.
Todos nós almejamos a que um dia o Brasil alcance o nível e a qualidade de vida de um país desenvolvido. Penso, entretanto, que a entrada—ou não—para a OCDE será marginal nesse processo, cuja dinâmica dependerá muito mais de nosso esforço interno e de políticas públicas no combate à pobreza e à visceral desigualdade social, com prioridade para a educação e saúde, bem como na busca de um entendimento construtivo com os vizinhos e o resto do mundo.
B) DESARMAMENTO. A CONFERÊNCIA DO DESARMAMENTO-CD: o Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares–TPAN
Já tive ocasião de referir-me aos de painéis de De Sert, no sala da Conferência do Desarmamento, a que se tem acesso principal pela Entrada XVI do Palais des Nations. Preconizam, em sua sobriedade e na temática da paz e da guerra, a seriedade e os altos propósitos do que ali se discute. A sala tem história, que se inicia nos seus tempos de sede dos debates da Liga das Nações, quando foi criada a CD em 1932.
Com o renascimento do multilateralismo em seguida à criação das Nações Unidas, deram-se várias iniciativas intergovernamentais em desarmamento a partir de 1960, com o Comitê dos Dez-TNDC, o Comitê dos Dezoito-ENDC, sempre em Genebra, de 1962 a 1968, e a Conferência do Comitê sobre Desarmamento-CCD, de 1969 a 1978. A CD, tal como é hoje, apenas ampliada para 65, de seus 40 membros originais, foi constituída em 1979, objeto de decisão da Primeira Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas, dedicada ao tema do desarmamento, em 1978. É definida como «the single multilateral disarmament negociation forum of the international community», sendo responsável por série importante de negociações sobre desarmamento, como a Convenção sobre Armas Tóxicas e Biológicas, ou a convenção sobre Armas Químicas ou o Tratado Abrangente de Proibição de Testes Nucleares-CTBT, ainda que alguns dos principais entendimentos sobre contenção e desarmamento entre as principais potências nucleares, como até o próprio Tratado de Não-Proliferação-TNP, tenham sido concluídos alhures.
Contrasta com a nobreza do lugar e os valores em prol da Paz Mundial que representa, e com a história de entendimentos e negociações bem sucedidas, o sentimento generalizado de frustração que acompanha, ao longo das duas últimas décadas aproximadamente, os Representantes Permanentes e delegados dos cerca de 65 Estados-membros que participam das sessões plenárias semanais da CD. Pois, como me reiterou meu antecessor, o embaixador Antônio Guerreiro quando lhe disse da minha iminente remoção para o posto, «a CD está parada…».
Sim, desde 1996, com a conclusão do Tratado Abrangente de Proibição de Testes Nucleares-CTBT (que ainda hoje não entrou em vigor), a CD encontra-se paralizada, por falta de consenso sobre seu «Programa de Trabalho». «…mas dá pra brincar», afiançou-me Guerreiro, como que consolando-me pela remoção para esse posto.
Claro que não se trata de paralização completa de seus trabalhos, que se desdobram em várias temáticas. A agenda da CD, antes chamada de «Decálogo», hoje abrange sete ou oito temas, os principais sendo aqueles relativos ao desarmamento nuclear e outros tipos de armas de destruição em massa, espaço exterior, garantias negativas e positivas quanto ao não uso de armas nucleares contra terceiros, e alguns outros dentro de uma dinâmica bastante intensa, como o desarmamento de armas convencionais ou o relativo a armas biológicas. Há ainda temas dentro de um quadro inovador, como as tratativas, por enquanto ainda bastante incipientes, sobre a questão dos sistemas de armas completamente automatizados, isto é, armas robóticas completamente independentes do controle humano, chamadas de «Lethal automatic weapons systems»-LAWS.
A par disso, todos os temas básicos da atual agenda da CD, armas nucleares, espaço exterior, garantias de segurança, além de outros indiretos, como não-proliferação e o TNP, ou a própria questão da ampliação do número de países na CD, ou ainda a atualização das estritas regras de procedimento da Conferência—todo esse universo temático segue, se não na ordem do dia, pela ausência de um «Programa de Trabalho» acordado, mas subjacente, no nível de consultas, mais ou menos informais, mais ou menos intensas, mais ou menos programáticas.
Exemplo dessa atividade diz respeito à negociação e conclusão do Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares-TPAN, aprovado em Sessão Especial da Assembléia Geral da ONU, realizada em julho de 2017 em Nova York e aberto à assinatura em setembro do mesmo ano, na sede da Organização . Pelo seu ineditismo, por ser o primeiro instrumento legal de proibição de desenvolvimento, teste, produção, fabricação, uso, aquisição, posse, armazenamento ou transferência de armas nucleares, o tratado, ainda que negociado no seio da ONU, mas fora da CD, rompe praticamente com a inação da CD no tema do desarmamento nuclear, havida desde a conclusão do CTBT em 1996.
A proibição de armas nucleares passa agora a ser norma de Direito Internacional. O Tratado foi aprovado por 122 países, com a abstenção de Singapura e o voto contra da Holanda, único país da OTAN a comparecer. Demais países nuclearmente armados ou que compartilham armas nucleares não participaram e deixaram registrada sua oposição.
É fato que o TPAN, «resultado de um processo iniciado em 2013 com as Conferências sobre os Impactos Humanitários das Armas Nucleares das quais o Brasil participou ativamente desde o seu início», conforme diz oficialmente o Itamaraty, na Nota 317, de 20 de Setembro de 2017, foi concebido e trabalhado, tanto politicamente como em seus contornos objetivos, no ambiente da CD, em Genebra.
Digo sem modéstia que desempenhei papel ativo em levar adiante esse projeto, do qual ainda não se falava praticamente quando de minha chegada à CD, em 2014. Pelo menos, não, no plano intergovernamental na CD. Em consultas informais, como as levadas a cabo em preparação para as sessões do TNP anualmente, em Annecy, ou seminários e colóquios promovidos pelas ONGs mais relevantes acreditadas junto à CD, a necessidade de uma iniciativa do gênero começou a ser ventilada, promovida em especial por uma coalizão de ONGs, na intitulada «International Campaign to Abolish Nuclear Weapons: ICAN».
Sediada em Genebra, a ICAN—que afinal ganhou o Prêmio Nobel da Paz pelo seu trabalho– mereceu, compreensivelmente, pouco ou quase nenhum apoio na CD, órgão formalmente preso à dependência do consenso não consentido pelas potências nucleares. Recebeu, sim, manifestações de simpatia de alguns países, como Áustria (das quais se dissociou quando o governo progressista do país, que integrava a liderança na iniciativa das referidas Conferências sobre o Impacto Humanitário das Armas Nucleares, vindo a sediar a terceira delas, em Viena, em 2014[1], foi substituído por governo conservador, creio que em fins de 2015), México e Brasil.
No nosso caso, não foi imediato esse apoio à ICAN. Fiz meu primeiro pronunciamento na CD, ao chegar, com base nas instruções de então, em que, membros da coalizão chamada da «Nova Agenda», não nos associávamos à proposta da ICAN nem a uma oposição frontal aos países nuclearmente armados. Lembro-me de que, no dia seguinte a essa minha primeira intervenção, uma das pequenas ONGs ligadas à CD, intitulada, creio, «FireWall», circulou carta aberta com críticas fortes, e merecidas, a meu ver, à posição brasileira, por omitir-se a endossar esse projeto.
Em viagem de trabalho a Brasília, para participar de seminário, pude conversar longamente com o Subsecretário de Política Multilateral, meu colega de turma e amigo Carlos Antônio Paranhos, a respeito da conveniência de evoluirmos em nossas posições na CD, inclusive na questão de um instrumento para a proibição de armas nucleares. Propus, inclusive que, caso não pudéssemos negociar tal convenção ou tratado na CD, devíamos fazê-lo na ONU. Paranhos, como eu, já servira mais de uma vez em Genebra, a mais recente como embaixador alterno em nossa Delegação Permanente em Genebra (Delbrasgen), incluindo o desk da CD, compreendeu rapidamente minhas sugestões, com elas tendo concordado, o que levou em seguida à nossa mudança de posição, agora em favor de uma negociação específica para a proibição de armas nucleares. Não sendo possível na CD, minha proposta é de que então se desse a negociação no contexto da ONU.
Por essa época, passados os momentos iniciais na CD, eu já havia feito contatos mais frequentes e abertos com o pessoal da ICAN, mesmo com o FireWall, com quem, a partir das novas instruções de Brasília, comecei a trabalhar de forma muito positiva. Também dentro da CD e no contexto ONU-Genebra, consegui, junto com o México (então na presidência—rotativa—da CD), apoio consensual, primeiro junto ao GRULAC e em seguida junto ao capítulo genebrino (informal) da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e do Caribe-CELAC .
A CELAC havia aprovado, em sua III Reunião de Cúpula, em São José da Costa Rica, em janeiro de 2015, a «Declaração Especial sobre a Necessidade Urgente de um Mundo Livre de Armas Nucleares». Nela, os Chefes de Estado da região se comprometem a iniciar, no mais alto nível político, as negociações de um instrumento nessa matéria.
Foi, assim, sem maiores dificuldades, possível renovar o apoio da CELAC ( grupo ainda informa em Genebra) no ambiente da CD (onde os países em desenvolvimento se representam formalmente no chamado Grupo dos 18). Nosso acerto deu-se durante almoço memorável que promovi num bucólico restaurante em parque próximo do Palais. Foi muito reconfortante sentir apoio imediato e sem maiores cauções da presidência local do CELAC, a embaixadora da Costa Rica, e demais embaixadores e colegas de praticamente todos os países da América do Sul, Central, Caribe e México.
O passo seguinte foi assumido pela Primeira Comissão da AGNU, com base nas articulações prévias com a ICAN, mas também em função dos entendimentos havidos em Nova York previamente, durante a III Conferência de Exame do TNP, em Junho de 2015. Nessa Conferência, renovaram-se, sempre com forte apoio da CELAC, as declarações emanadas das três Conferências sobre Impacto Humanitário das Armas Nucleares, bem como a própria Declaração de Costa Rica. Ali também, a proposta de um grupo de trabalho para negociar um instrumento de proibição das armas nucleares foi objeto de intensas negociações, no debate sobre o Artigo VI do TNP, o que facilitou sobremaneira a retomada do tema pela Primeira Comissão, com a negociação do tratado e sua conclusão em 2017.
Ainda em Nova York, nos dias finais da longa Conferência de Exame do TNP, em junho de 2015, recebo o convite de nosso chefe da Missão junto à ONU, embaixador Antônio Patriota, para almoçarmos. À saída de simpático «corner» restaurante no «East-uppertown», na altura das ruas 70, Antônio Patriota me confidencia estar sendo planejado na Secretaria de Estado, em Brasília, o «fechamento» de REBRASDESARM, a Representação do Brasil Junto à Conferência do Desarmamento. Patriota, quando Ministro de Estado, havia proposto minha remoção para essa «Representação»[2], com a qual concordei: gosto do trabalho multilateral e de Genebra, em particular.
Aceitara a oferta de remoção para Genebra, nas funções de Representante residente do Brasil junto à Conferência do Desarmamento, sobretudo em decorrência do que muitos de nós, diplomatas com mais apreço pela diplomacia multilateral, professamos: a consciência da alta relevância dos temas de desarmamento nas relações internacionais e da prioridade que tais temas sempre mereceram em nossa política externa, em vista dos maiores interesses nacionais. Desarmamento talvez seja o tema de maior constância nos mais altos degraus da escala de valores da agenda internacional, em especial desde o final da II guerra Mundial, pois seu objeto diz diretamente respeito ao tema da paz. Tão simples e tão sóbrio como isso.
O exemplo que menciono mais abaixo, a respeito das negociações e da conclusão do Tratado sobre a Proibição das Armas Nucleares, aberto à assinatura em nova York, na sede da ONU, em 2017, ilustra bem o contraste entre o reconhecimento pelo Brasil da relevância do desarmamento, em especial o nuclear, tal como o atesta o compromisso brasileiro ao ser o então presidente Temer, o primeiro Chefe de Estado a assiná-lo, e decisões ou avaliações equivocadas que por vezes ocorrem por parte da chefia de nossa diplomacia, ao desmerecer o tema por conta de questionáveis políticas precárias e objetivamente inefetivas de contenção de gastos. Sabemos, ademais, que por trás dessas decisões, esconde-se em muitos casos a busca de ganho político até mesmo no nível pessoal ou funcional.
Triste, com efeito, tomar conhecimento, indiretamente e por intermédio da imprensa, que o posto REBRASDESARM seria «fechado», por motivo de «contenção de gastos», justo a meio de um processo negociador da mais alta relevância no âmbito do desarmamento nuclear. Lamentável, ademais, por sabermos, ao contarmos com a relevância sistematicamente atribuída ao tema do desarmamento em nossa política externa, que se trataria de medida sem fundamento, que não traria sequer contenção de gastos significativos, e que seria revertida tão pronto retornasse a coerência à chefia da Casa.
[1] As duas Conferências anteriores realizaram-se em Oslo, 2012 e Nayrit (2013). O Brasil participou ativamente das três conferências e subscreveu as declarações conjuntas sobre o tema, inclusive por ocasião da IX Conferência de Exame do Tratado de Não Proliferação Nuclear (Nova York, 2015), em que me coube a honra de chefiar a delegação do Brasil, na qualidade de Representante Permanente do Brasil junto à Conferência do Desarmamento-CD).
[2] REBRASDESARM, apesar da longa lista de embaixadores representantes residentes do Brasil junto à CD, entre eles Celso Sousa e Silva, Sergio Duarte, Calero Rodrigues, Marcos Azambuja, Antônio Carlos Paranhos, Gilberto Saboia, Filipe Macedo-Soares, Antônio Guerreiro, e que atesta de uma relativa estabilidade da função, terá sido um posto «flutuante», por períodos fictício, mesmo, mas sempre com representatividade. Em certas épocas, ainda que durante a minha e a de alguns outros, onde havia restrições abaixo citadas, foi posto efetivo e funcionalmente independente da Missão em Genebra, com direito a série telegráfica e orçamentos de chancelaria e residência próprios.
No governo Collor, num transe similar de desativação de representações diplomáticas multilaterais no exterior, nossa Representação junto à CD foi reintegrada À Missão junto à ONU em Genebra- DELBRASGEN.
Mais tarde, já com Celso Amorim como Ministro das Relações Exteriores, o posto foi reativado, tendo em vista sua evidente relevância—mas apenas no plano da administração interna. Por precaução (justificável?) diante de prováveis críticas por abrir novo posto onde já existem outros dois independentes, DELBRASGEN e a Missão junto à OMC, Celso Amorim terá preferido evitar ser o posto de REBRASDESARM criado por decreto, e sim apenas por portaria interna. Dessa forma, o chefe do posto, apesar de contar com todas as prerrogativas da função, vê-se excluído da categoria de «Chefe de Missão junto a Organismos Internacionais » (o que significa vencimentos mais baixos, se comparados com o dos dois outros colegas «chefes de missão junto a organismos intenacionais» em Genebra. Por motivos pouco compreensíveis, a Consultoria Jurídica do Itamaraty e a Secretaria Geral sistematicamente denegaram os recursos submetidos por meu antecessor Filipe Macedo-Soares e por mim (eu peticionei por duas vezes), no sentido do reconhecimento do chefe da Representação como «chefe de missão junto a organismo internacional.
REBRASDESARM continuou sem direito a inclusão no organograma formal do Itamaraty, podendo definir-se, mais apropriadamente e com perdão da expressão, como um «puxadinho» de DELBRASGEN. Com efeito, as remoções de todos os funcionários, inclusive a do chefe da Representação, davam-se «para DELBRASGEN». Como continuam a dar-se, pois, de novo, a função acha-se reintegrada a DELBRASGEN, após o «fechamento» de REBRASDESARM decidido pela Chefia da Casa, num afã de economia tão fictício como inoperante, já que, na prática, as instalações físicas de REBRADESARM permanecem as mesmas, ocupadas, como antes, pelo Representante Permanente do Brasil junto à CD, seus assessores, e, como sempre, pela significativo Escritório Militar de Apoio à nossa representação, chefiado, em rodízio com seus pares da Marinha e da Aeronáutica, por general quatro estrelas.
[1] A mesma tendência, de forma mais ou menos evidente, ou mais ou menos intensa, se dava, e se verifica ainda hoje, em vários—não mais todos– foros políticos e técnicos, dentro da miríade de foros multilaterais na ONU-Genebra, nas diversas Agências Especializadas das Nações Unidas, entre elas a Organização Mundial da Saúde-OMS, a Organização Internacional do Trabalho—OIT, a Organização Meteorológica Mundial-OMM, a Organização Mundial para a Propriedade Intelectual-OMPI, a Organização para Migrações Internacionais-OMI, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados-ACNUR, a União Internacional das Telecomunicações—UIT, e centenas de foros governamentais fora do guarda-chuva da ONU, como por exemplo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, para não mencionar as múltiplas organizações não-governamentais—ONGs.
Genebra e cidades vizinhas sediam muitos desses organismos ou os secretariados de convenções, muitas delas concluídas sob a égide da ONU, como a Convenção sobre Diversidade Biológica, a CITES-Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas de Extinção, o Acordo Internacional sobre Madeiras Tropicais, de 1983, substituído por novo Acordo em 1994 e outro em 2006, com a ITTO-Organização Internacional sobre o Comércio de Madeiras Tropicais, ou ainda a RAMSAR-Convenção sobre as Zonas Úmidas de Importância Internacional Especialmente Enquanto Habitat de Aves Aquáticas–Existe, sim, a RAMSAR, e o Brasil é parte importante nessa convenção.
Dentre os foros políticos, e outros de matiz econômico-político, há muitos dentro da estrutura das Nações Unidas, hospedadas no Palais des Nations , edificação imponente construída após a Primeira Guerra Mundial para albergar a então criada Liga das Nações. Lá está a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento-UNCTAD, órgão histórico, foco da articulação em defesa dos países em desenvolvimento-PEDs, categoria de países que então, em fins da década de 1050, inícios da década de 1060, se consolidou no chamado Grupo dos 77, ou G-77.
Por isso mesmo, foi dos poucos foros genebrinos onde era possível fazer prevalecer os interesses dos PEDs no contexto das negociações multilaterais—ali, efetivamente, os PEDs se «meteram» nas «trajetórias» dos países desenvolvidos para lutar pelos próprios interesses. A UNCTAD sem dúvida alguma marcou presença, mas não demorou muito para que os países desenvolvidos articulassem sua marginalização como foro negociador.
A UNCTAD, de algum tempo para cá, perdeu força, pois o foco dos interesses dos PEDs passou gradualmente para outros contextos negociadores mais maleáveis, e menos estigmatizados, mas ainda constitui um importante centro de pesquisas e de estudos sobre as relações internacionais, numa perspectiva de apoio ao desenvolvimento econômico.
[2] Há também na cidade enorme quantidade de organismos regionais, alguns científicos, como o CERN, de pesquisa em física nuclear, outros muitos ligados à União Europeia e outras instituições europeias. Outros, ainda, na área mais bem econômico-comercial, como a EFTA-European Free Trade Association, mais ligada aos países nórdicos e alguns outros europeus não-membros, à época de sua criação (1960), da CEE (ogora apenas integrada por Liechtenstein, Islândia, Noruega e Suíça).
Enfim, Genebra é um mundo. E deixa bem para trás outras cidades européias também importantes para a diplomacia multilateral, como Viena, Londres ou Paris. Compara-se talvez a Bruxelas, por conta da UE. Cidade pequena, mais de 70 por cento de seus habitantes são funcionários internacionais, com um vasto corpo diplomático. Com uma economia pujante, não fora uma cidade suíça, e seu alto custo de vida, deixa a maior parte de nós, pobres funcionários diplomáticos com salários apertados, pouco à vontade diante do luxo e dos altos preços dos serviços, mais bem adequados à extensa população flutuante árabe ou de magnatas e das gentes que podem conviver bem com a atracão financeira desse centro urbano internacional, se não cosmopolita como Nova York.
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A mesma tendência se dava, e se dá ainda hoje, nos foros políticos e técnicos, dentro da miríade de foros multilaterais na ONU-Genebra, nas diversas Agências Especializadas das Nações Unidas, entre elas a Organização Mundial da Saúde-OMS, a Organização Internacional do Trabalho—OIT, a Organização Meteorológica Mundial-OMM, a Organização Mundial para a Propriedade Intelectual-OMPI, a Organização para Migrações Internacionais-OMI, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados-ACNUR, e centenas de foros governamentais fora do guarda-chuva da ONU, como a União Internacional de Telecomunicações-UIT—para não mencionar as múltiplas organizações não-governamentais—ONGs.
Genebra e cidades vizinhas sediam muitos desses organismos ou os secretariados de convenções, muitas delas concluídas sob a égide da ONU, como a Convenção sobre Diversidade Biológica, a CITES-Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas de Extinção, o Acordo Internacional sobre Madeiras Tropicais, de 1983, substituído por novo Acordo em 1994 e outro em 2006, com a ITTO-Organização Internacional sobre o Comércio de Madeiras tropicais, ou ainda a RAMSAR-Convenção sobre as Zonas Úmidas de Importância Internacional Especialmente Enquanto Habitat de Aves Aquáticas–Existe, sim, a RAMSAR, e o Brasil é parte importante nessa convenção.
Dentre os foros políticos, e outros de matiz econômico-político, há muitos dentro da estrutura das Nações Unidas, hospedadas no Palais des Nations , edificação imponente construída após a Primeira Guerra Mundial para albergar a então criada Liga das Nações. Lá está a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento-UNCTAD, órgão histórico, foco da articulação em defesa dos países em desenvolvimento-PEDs, categoria de países que então, em fins da década de 1050, inícios da década de 1060, se consolidou no chamado Grupo dos 77, ou G-77.
Por isso mesmo, foi dos poucos foros genebrinos onde era possível fazer prevalecer os interesses dos PEDs no contexto das negociações multilaterais—ali, efetivamente, os PEDs se «meteram» nas «trajetórias» dos países desenvolvidos para lutar pelos próprios interesses. A UNCTAD sem dúvida alguma marcou presença, mas não demorou muito para que os países desenvolvidos articulassem sua marginalização como foro negociador.
A UNCTAD, de algum tempo para cá, perdeu força, pois o foco dos interesses dos PEDs passou gradualmente para outros contextos negociadores mais maleáveis, e menos estigmatizados, mas ainda constitui um importante centro de pesquisas e de estudos sobre as relações internacionais, numa perspectiva de apoio ao desenvolvimento econômico.
Durante a Rodada Uruguai, nós, de DELBRASGEN, sobretudo e eu e meu colega mais novo, hoje embaixador e com brilhante e séria carreira, Tovar da Silva Nunes, delegados pelo Brasil junto aos chamados «Novos temas», recebíamos na Missão quase toda semana um qualificado técnico da UNCTAD para conversas informais muito instrutivas e orientadoras sobre o processo negociador, a partir do que podíamos melhor balizar nosso trabalho com base nas instruções de Brasília. Vale lembrar, como descrevo a seguir, que pouca gente sabia exatamente o que eram as negociações sobre comércio de serviços ou sobre propriedade intelectual, do ponto de vista de disciplinas do comércio internacional.
Ali também, no carinhosamente chamado «Palais», atua o Conselho da ONU para Direitos Humanos, com seu Alto Comissariado; e ali, com toda sua tradição de altas negociações sobre os destinos da humanidade, está sediada a Conferência das Nações Unidas para o Desarmamento-CD, à qual está reservada, com exclusividade de uso para suas sessões, a sala mais imponente de todo o Palais, sobriamente decorada com os afrescos de De Sert sobre «a Guerra e a Paz», que cobrem todo o teto e dão à sala um ar de bronze atemporal.
Na segunda vez em que servi em Genebra, de 2014 a 2016, apresentei, no salão nobre contíguo à esta sala, minhas cartas credenciais como embaixador Representante Permanente do Brasil junto à Conferência do Desarmamento ao Secretário Geral da ONU («Deputy»)-em Genebra.
Há também na cidade enorme quantidade de organismos regionais, alguns científicos, como o CERN, de pesquisa em física nuclear, outros muitos ligados à União Europeia e outras instituições europeias. Outros, ainda, na área mais bem econômico-comercial, como a EFTA-Associação Europeia de Livre Comércio.
Enfim, Genebra é um mundo. E deixa bem para trás outras cidades européias também importantes para a diplomacia multilateral, como Viena, Londres ou Paris. Compara-se talvez a Bruxelas, por conta da UE. Cidade pequena, mais de 70 por cento de seus habitantes são funcionários internacionais, com um vasto corpo diplomático. Com uma economia pujante, não fora uma cidade suíça, e seu alto custo de vida, deixa a maior parte de nós, pobres funcionários diplomáticos com salários apertados, pouco à vontade diante do luxo e dos altos preços dos serviços, mais bem adequados à extensa população flutuante árabe ou de magnatas e das gentes que podem conviver bem com a atracão financeira desse centro urbano internacional, se não cosmopolita como Nova York.
Faço este arremedo do que diplomaticamente chamamos de «guia de postos», com a descrição dos modos de trabalho e de vida onde servimos, por conta das peculiaridades da atividade diplomática em Genebra.
Contrariamente a Nova York, onde o grosso da atividade diplomática multilateral se concentra na ONU e seus escritórios, como o PNUD, em Genebra a regra é a diversificação desse trabalho pelos diversos foros. Qualquer um de nós, diplomatas lotados na cidade, acaba inevitavelmente por participar de reuniões e sessões negociadoras em quase todos dos foros enumerados acima, sem exagero. A princípio, pareceria que nos concentramos, no trabalho, nas distintas especializações. O diplomata especializado em política comercial concentrará suas atividades na OMC.
Isso pode ocorrer, sobretudo com diplomatas de países com mais de uma Missão sediada em Genebra, como é o caso do Brasil, com três Missões, uma junto à ONU, outra junto à OMC e ainda uma terceira, a Representação junto à CD-Conferência do Desarmamento (esta, no momento, apenas em termos funcionais, já que administrativamente está vinculada à Missão junto à ONU-DELBRASGEN).
Dá-se entretanto que, hoje em dia, os mesmos temas, inclusive os comerciais, tratados sob diferentes perspectivas, ou perspectivas complementares, são negociados em muitos foros, ao mesmo tempo ou quase. Como resultado, uma intensa agenda de trabalho para cada diplomata, parecida, mal comparando, claro, com a de um médico que se desdobra em sua jornada para atender em diversos hospitais e consultório, dar aulas, participar de seminários. Lembrar ainda que estamos sempre já cedo, em nossas Missões, para tomar conhecimento das instruções recebidas da Secretaria de Estado, e para lá retornar ao fim das sessões negociadoras—que muito amiúde o pouco tempo para nossa vida privada.
A recompensa por todo esse enorme trabalho? Mais talvez do que em Nova York, os temas negociados em Genebra costumam estar na vanguarda da agenda internacional multilateral. São temas que posteriomente, anos depois, senão décadas depois, entrarão nas agendas de outros foros, alhures, ou mesmo em Nova York, em foros regionais, e, sempre décadas depois, nas agendas nacionais de cada país. O tema da mudança do clima, com o IPCC-International Panel on Climate Change, pequeno grupo seleto de cientistas, reunindo-se com representantes governamentais em fins da década de 1980 e começos da década seguinte, em Genebra e arredores, sem merecer qualquer atenção focal no âmbito multilateral, e muito menos nos âmbitos regionais ou nacionais, é um exemplo marcante e atual dessa dinâmica. Mesma coisa para temas como o comércio de serviços, ou o da propriedade intelectual.Toda a temática ambiental com seu disciplinamento internacional, nas suas diversas ramificações, esteve por vários anos concentrada em Genebra, no desdobramento da Conferência de Estocolmo de 1972.
Logo de minha primeira chegada a Genebra «como posto», isto é, em lotação permanente na Missão do Brasil (Delegação Permanente junto aos órgãos das Nações Unidas e outros Organismos Internacionais sediados em em Genebra– DDELBRASGEN), em 1989, a Rodada Uruguai—conjunto de negociações comerciais de abrangência ampla estava a meio do caminho, desde seu lançamento em reunião ministerial promovida pelo GATT em Montevideu, em 1986. Meu chefe, o embaixador Rubens Ricúpero, com quem eu já havia trabalhado na embaixada em Washington e outras ocasiões , integrou-me, como já mencionei, à nossa delegação aos três «Novos Temas»–comércio de serviços; comércio e propriedade intelectual; e comércio e investimentos. fizemos assim uma dupla, Tovar e eu, num bom trabalho em equipe.
Eram essas questões assim chamadas de «novos temas» pelo ineditismo de sua inclusão no âmbito das negociações comerciais no GATT, estas tradicionalmente restritas ao comércio de bens e às negociações tarifárias, ademais de temas correlatos, como as exceções relativas ao «balanço de pagamentos»–BOP, na sigla em inglês, de cada país, tema mais afeto, por óbvio, aos países em desenvolvimento, por sempre apresentarem deficits crônicos nesse quesito. Justamente por esse motivo, as reuniões sobre BOP eram muito divertidas, sendo das poucas onde nós, os PEDs no GATT, podíamos conseguir resultados favoráveis, com exceções, ou «waivers», na aplicação de disciplinas do GATT, como «nação mais favorecida» ou «tratamento nacional».
Com a mudança das regras ao fim da Rodada Uruguai, e a criação da OMC, as exceções BOP se diluíram ou evoluíram, tendo ademais ficado sem sentido com o processo de globalização e o prevalecimento, no âmbito do comércio internacional, do liberalismo econômico iniciado nos EUA em 1980, de que foi consequência, aliás, o lançamento da própria Rodada Uruguai.
No Brasil, essa virada em direção ao liberalismo e à abertura comercial deu-se no início da década de 1990, no governo Collor. Senti na pele essas mudanças, ao longo das negociações na Rodada Uruguai, sobretudo no Grupo Negociador sobre Serviços, mas também com força no Grupo Negociador sobre Propriedade Intelectual. No terceiro grupo negociador relativo aos «novos temas», o grupo sobre «medidas de investimento relacionadas ao comércio-TRIMs, na sigla em inglês, as negociações se arrastavam, quase paralizadas pelas dificuldades inerentes à questão e pelas posições muito diferenciadas acerca do tema de como regular, controlar e proteger o investimento direto estrangeiro).
Nos dois outros grupos negociadores referidos, contudo, nós, delegados dos países em desenvolvimento mais ativos na articulação de seus interesses nas negociações, notadamente Brasil e Índia, atuávamos dentro de um quadro tradicionalmente mais bem protecionista. Meu antecessor na chefia da nossa delegação a esses grupos tinha sido o próprio Chefe da nossa Missão em Genebra, o Embaixador Paulo Nogueira Batista, a quem Ricúpero havia substituído meses antes.
Paulo Nogueira Batista era , conforme pude sentir nos meus primeiros contatos com as delegações nesses grupos, reverenciado e respeitado por suas intervenções lúcidas, e pela coragem na defesa de interesses comuns aos PEDs, enfrentando quase que sozinho, e sempre em apoio mutuo com a índia, o verdadeiro «rolo compressor» em favor de uma abertura indiscriminada do comércio em serviços e da proteção absoluta aos direitos de propriedade intelectual (por conta da necessidade de proteção dos avanços tecnológicos nos países desenvolvidos), razão de ser da inclusão desses temas na Rodada na visão dos EUA, Comissão da União Européia, e demais poderosos do Green Room .
Devo insistir em que o comércio de serviços nunca tinha sido, até então, objeto de disciplinas no GATT. O «Acordo Geral» sempre se limitou ao comércio de bens. Serviços, na macro-economia e na contabilidade pública, eram os « invisíveis» (transações de serviços no balanço de pagamentos, tais como seguros, fretes, mas sem incluir, por exemplo, as transações ligadas ao investimento direto estrangeiro). Ainda em 1989, eram novidade, realmente um «novo tema», que havia sido introduzido no mandato negociador da Rodada Uruguai por conta do interesse dos países ricos que, no processo de globalização da economia com a aplicação das novas tecnologias da informação, começaram a vislumbrar o potencial do comércio de serviços e a necessidade da abertura dos mercados, notadamente nos países em desenvolvimento, ainda bastante fechados nessa área. Ainda eram os tempos da União Soviética e do Muro de Berlim. Mesmo muitos países desenvolvidos, como a Suíça e os nórdicos, tinham seus serviços públicos, tais como serviços financeiros ou de telecomunicações, controlados pelo Estado, sem qualquer tipo de abertura para a entrada de prestadores de serviços estrangeiros.
Somente em 2002 a ONU publicou o «Manual de estatísticas de Comércio Internacional de Serviços», com a descrição em pormenor dos quatro «modos» através dos quais os serviços podem ser comercializados internacionalmente, tendo em conta a localização de fornecedores e consumidores dos serviços transnacionais.
Nos países em desenvolvimento, não havia, efetivamente, tanto no setor público como no privado, noção da extensão do comércio de serviços ou de seu significado, em termos de negociação no âmbito do GATT. Meu colega da Colômbia, vizinho da bancada do Brasil no Grupo sobre Serviços, e meu parceiro de tênis nos fins de semana, estava recém chegado a Genebra, diretamente de Bogotá, onde desempenhava altas funções no Banco Central daquele país, no setor de serviços. Tendo já participado de algumas reuniões do Grupo sobre Serviços, confessou-me sua ignorância e perplexidade acerca do que se discutia ali, pois não tinha nada a ver com o seu trabalho anterior, ligado aos «invisíveis». Estávamos, de fato, diante de uma novidade, num debate bastante abstrato sobre como aplicar as disciplinas tradicionais do GATT, como «nação mais favorecida», «tratamento nacional», «barreiras não tarifárias» , etc, a este novo tipo de comércio, cujas peculiaridades apresentavam, do ponto de vista do estabelecimento de regras ou disciplinas no âmbito do comércio internacional, não poucas dificuldades—com poucas afinidades com o comércio de bens.
Algo semelhante, para dar outro exemplo do vanguardismo característico de Genebra no trato de temas de alcance internacional, se passa desde 2015, no âmbito da Conferência do Desarmamento, com as consultas e grupos de peritos sobre sistemas automáticos de armas-robôs que independem do controle humano.
Justo em 1989, o GATT publicou o primeiro relatório da instituição sobre «comércio de serviços». Revelou-se então, para espanto generalizado, que o comércio de serviços, em nível mundial, à época em torno de US$ 550 bilhões, era maior que o comércio de bens também em nível mundial, da ordem de US$ 500 bilhões, naquele momento. A partir daí, e por acaso o processo de globalização afirmando-se em coincidência com o fim da União Soviética e a Queda do Muro de Berlim, deu-se uma extraordinária ativação das negociações em curso no Grupo de Serviços da Rodada Uruguai.
O Brasil via-se num momento de transição, com os ensaios promovidos pelo governo Collor de abertura de sua economia. A essa altura, estávamos, Brasil, Índia e alguns outros países em desenvolvimento, engajados na afirmação, no processo negociador, do princípio do «tratamento especial e diferenciado» para os PEDs, conceito já adotado nos foros negociadores sobre a temática ambiental, e que no âmbito do GATT tinha seu fundamento na Parte IV do Acordo Geral, introduzida em 1965, de natureza apenas exortativa à facilitação do comércio com os países em desenvolvimento.
Fácil imaginar o quanto Brasil, Índia e alguns outros poucos países em desenvolvimento, como Argentina, Colômbia (que presidia o grupo Negociador sobre Serviços) e Egito, se viam pressionados para aceitar um acordo liberalizante na área do comércio de serviços, com a consequente abertura de seus mercados ainda bastante protegidos. Serviços financeiros ou de telecomunicações envolveram negociações especialmente complexas
O mesmo naturalmente se passava nos demais grupos dos «novos temas», ou seja, propriedade intelectual e investimentos, dentro das peculiaridades de cada um. Não havia, no GATT, experiência negociadora sobre essas temáticas, tipicamente navegávamos em águas não mapeadas, «unchartered waters», mas com uma única certeza: interesse forte dos países desenvolvidos, em especial EUA, EU, e Japão («demandeurs», em linguajar gattiano), em normatizar essas áreas no âmbito do comércio internacional. No caso da propriedade intelectual, pela evidente necessidade de proteger os direitos desse tipo de propriedade decorrentes do desenvolvimento tecnológico e seu valor comercial. Necessário ir portanto para além das convenções existentes sobre a matéria, geridas em sua maioria pela OMPI e pela Convenção de Paris e, e tratá-las na perspectiva de mercado e das relações comerciais: patentes, denominações de origem, registros, segredos comerciais, direitos autorais, praticamente todo o universo da propriedade intelectual passou a ser disciplinado comercialmente.
Em investimentos, havia questões ainda mais delicadas, muitas delas a tocar em áreas sensíveis de soberania nacional, como a da proteção dos direitos do investidor ou o da remessa de dividendos, ou o da movimentação de capitais.
Sabíamos que para nós, países em desenvolvimento, seria bastante difícil sustentar posições muito restritivas, defensivas ou de proteção de mercado, que não envolvessem compromissos abrangentes em outras áreas, onde nós tínhamos mais interesse em acessar os mercados dos países ricos, em especial em agricultura, outro tema que pela primeira vez, com a rodada Uruguai, foi objeto de negociações diferenciadas no âmbito do sistema GATT.
Nos «novos temas», sem dúvida, os «spoilers», os que questionavam o consenso acerca da adoção de disciplinas que favoreceriam uma liberalização abrangente e rápida dos mercados eram Brasil e índia, principais negociadores dos PEDs, já que a maioria adotava posturas discretas. Por essa época, em 1989 e 1990, no início de cada sessão negociadora, os chefes de cada grupo promoviam almoços ou jantares de consulta, com participação restrita aos principais negociadores. Dos PEDs, invariavelmente, apenas, Brasil e Índia, ocasionalmente também o Egito. Foram incontáveis as vezes em que, nessas ocasiões, o delegado norte-americano me qualificava como «spoiler» das discussões. Simplesmente por eu trazer à mesa objeções a «consensos» que evidentemente se formavam, junto com cardápios sofisticados e vinhos elegantes, em torno das posições dos países ricos. Certa vez chegou mesmo a dizer que eu sempre «envenenava» os jantares do grupo negociador. Pior que era uma quase verdade, no plano imagético.
Aprendi muito nessas reuniões informais. Sobre negociação e sobre culinária e gastronomia.
Constrangimento. Creio que foi esse o estado mental em que nos deixaram, a nós, os negociadores brasileiros nessa altura da Rodada Uruguai, as novas atitudes do governo Collor, de disposição para uma relativa abertura do mercado brasileiro. Tratava-se de uma política de comércio exterior mais do que devida, diante do anacronismo de um Brasil ainda quase que completamente fechado ao resto do mundo. As mudanças, porém, vinham com uma característica sem precedentes em termos de negociações internacionais: abertura unilateral, sem a proposta de contrapartidas. Reciprocidade, como se sabe, é uma condição indispensável a levar-se em conta em negociações diplomáticas. Não digo que seja imprescindível sempre a sua aplicação, mas é sempre bom ter esse elemento por perto.
No caso, passamos a ceder abertura de nossos mercados sem maiores contrapartidas. Algo como estamos fazendo hoje, no governo Bolsonaro, em nossas relações avassaladas com os EUA de Trump, nosso suserano incontestável do momento.
Por essa época, avizinhava-se o prazo final para a entrega ao Instituto Rio Branco de minha tese no Curso de Altos Estudos—CAE, condição para minha promoção de conselheiro a ministro de segunda classe. Havia submetido o projeto de tese, sobre uma visão individualizada e integrada dos espaços fronteirços na Amazônia, a que já referi mais acima nestas «Vivências», ainda quando chefiava a Divisão da América Meridional-II (DAM-II), pouco antes da remoção para Genebra. Agora, envolvido dia e noite, sem direito a fins de semana, nas cada vez mais intensas e demandantes negociações da Rodada Uruguai, pensei até em trocar de projeto, e mudar o tema da tese para falar das tratativas sobre serviços na Rodada, uma novidade, e sem dúvida de muito interesse. Estando, como estava, «com a mão na massa», não teria maiores dificuldades em assim proceder. Cogitei mesmo de fazer duas teses, a anterior e mais essa sobre serviços, uma inovação que com certeza não seria bem recebida pela banca de examinadores do CAE.
O fato é que eu havia tomado muito apreço pelo meu projeto original, cuja proposta temática ainda é, até hoje, sem rodeios e sem modéstia, muito original, rompendo com as visões tradicionais de fronteira apenas como limites que separam, e cultivadas em nossas políticas externa e interna—ainda é a visão que a sociedade brasileira tem das fronteiras do Brasil– como herança pétrea do Barão do Rio Branco. Tinha a minha tese a pretensão de mostrar a fronteira como uma região de características diferenciadas, um espaço comum entre dois ou mais países, com potencial próprio de cooperação e de desenvolvimento. Algo que a União Europeia pratica tão bem, e que foi elaborado ao longo de muitos anos. Algo que caracteriza também outras regiões fronteiriças pelo mundo afora, inclusive a fronteira EUA-México—apesar de iniciativas equivocadas e em sentido contrário, como a do «muro» do presidente Trump. Já de há tempos praticamos, talvez sem nos dar conta e de modo ainda precário, esse conceito de fronteira fluida no espaço do MERCOSUL.
Verdade que as migrações e os movimentos transfronteiriços contemporâneos, como o de refugiados decorrentes de guerras civis, como a da Síria, mas sobretudo das condições de subdesenvolvimento e pobreza, geram reações de nacionalismo exacerbado, isolacionismo e fechamento de fronteiras.
Infelizmente, outros fatores conjunturais, como o terrorismo, movimentos separatistas regionais, como o da Catalúnia, ou ainda a terrível pandemia do vírus covid-19—esta última de forma mais justificável, constituem ponderáveis intereferências ao conceito de fronteira aberta. Mesmo assim, a realidade dos espaços comuns fronteirços fica sempre latente em todos esses casos, e tende a se impor uma vez superadas as conjunturas desfavoráveis.
Faltava-me tempo para finalizar a tese. Por essa mesma época, despontava no horizonte negociador genebrino a temática do meio ambiente, na perspectiva da preparação da Conferência das Nações Unidas sobre Meio ambiente e Desenvolvimento—UNCED, prevista para o de Janeiro, em 1992, assim como das negociações paralelas das convenções e outras propostas de normatização dos temas «ambientais» (mudança do clima, diversidade biológica, proteção da camada de ozônio, florestas e desertificação). Em Genebra para uma reunião, Filipe Macedo-Soares, então chefe da recém-criada e toda poderosa Divisão do Meio Ambiente no Itamaraty, convidou-me para ficar com o «desk» de meio ambiente na nossa Missão, Delbrasgen. Aceitei de imediato, pendente, claro, de consulta e aprovação pelo chefe da Missão, o embaixador Rubens Ricúpero.
Com efeito, a proposta era de meu interesse. As atividades sobre meio ambiente em Genebra começariam para valer somente em setembro, após o verão que se iniciava. Já as reuniões da Rodada Uruguai seguiam em ritmo frenético, e não me dariam espaço e tempo para finalizar a minha tese. Ademais seria estimulante voltar a tratar das questões ambientais, um dos temas que primeiro me atribuíram na DNU, no começo da carreira, em 1973, e com o qual logo me afeiçoei—ainda que por então se tratasse de um tema «menor».
Sim, a Conferência de Estocolmo sobre Meio Ambiente Humano havia ocorrido há menos de um ano, em 1972, mas o seu seguimento («follow-up») apenas engatinhava, e não era absolutamente uma prioridade no contextoo internacional, e muito menos nas agendas de política externa e de política interna nos países periféricos, como o Brasil. Menos ainda em um Brasil sob a ditadura militar, isolado externamente.
Única medida interna relativa ao desdobramento de Estocolmo foi a criação da Secretaria Especial do Meio Ambiente-SEMA, vinculada ao então Ministério do Interior, uma diminuta repartição de que deram a chefia ao saudoso Professor Paulo Nogueira Neto, um cientista biólogo de São Paulo, com especialidade em «abelhas sem ferrão», mas sem a mínima noção do que constituía a questão ambiental no plano internacional. Seguira-se a Estocolmo a criação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente-PNUMA, com sede em Nairóbi. Paulo Nogueira Neto chefiou nossa delegação à primeira reunião do PNUMA. Guardo com carinho na memória o relatório oficial escrito pelo estimado professor Paulo Nogueira Neto: uma descrição pormenorizada da beleza da fauna e flora vistas no caminho do hotel para a sede do PNUMA, onde se deu o encontro, nos aforas de Nairóbi. Sobre a reunião, propriamente dita, apenas uma ou duas linhas, para dizer que tinha sido ótima. Sua bem intencionada ingenuidade encantou-nos a todos naquele momento, em meio à preocupação que já tínhamos com a desconexão, tão bem simbolizada no citado relatório, entre a agenda do governo brasileiro, para quem a questão ambiental ainda era praticamente ignorada, e tratada como uma mera questão menor, e a complexidade dessa agenda tal como já se desenhava no plano global.
Exceto pelas críticas intenacionais ainda incipientes mas já notáveis sobre desmatamento, garimpo predatório e queimadas na Amazônia, a questão ambiental entrou em nossa agenda indiretamente, com Itaipu e o diferendo com a Argentina sobre a questão do aproveitamento de rios compartidos. Como recordei mais acima, tivemos um enorme e desnecessário desgaste de política externa, tanto em nossas relações com a Argentina e outros países vizinhos, como multilateralmente, na ONU, onde o Brasil ficou isolado, sofrendo derrotas vergonhosas na Assembléia Gerala—tudo por conta de nossa equivocada insistência em não aceitarmos a noção de «consulta prévia» no aproveitamento hidrelétrico de rios compartilhados por dois ou mais países.
Como ponto de conexão, o princípio da soberania sobre os recursos naturais. Trata-se de princípio que nunca foi questionado seriamente no plano internacional, ao contrário. Verdade que por tratar-se de fator prioritário sobretudo na agenda negociadora dos países em desenvolvimento, o fato é que sempre constou de todos os instrumentos internacionais negociados multilateralmente, em quaisquer das áreas correlatas ao meio ambiente (mudança do clima, biodiversidade, etc) como em outras áreas (direito do mar, recursos energéticos, renováveis ou não, recursos hídricos,etc). De tal forma que o desrespeito a esse princípio—na verdade uma norma de direito internacional, quando ocorre, não encontra guarida nas relações entre Estados. Assim como ocorre em todas as áreas das relações internacionais, o conceito de soberania de cada Estado sobre seus recursos naturais evolui e se enriquece junto com a evolução do conhecimento e em função das novas realidades. Sem prejuízo, naturalmente, de suas características fundamentais.
O mesmo se dá por exemplo na ciência, com a mudança de paradigmas. Como sabemos, as descobertas einsteinianas sobre as relações de espaço e tempo, com as teorias da relatividade geral e restrita, não invalidaram as leis de Newton; apenas as expandem para o terreno até então inexplorado das velocidades próximas à da luz. No nosso limitado, ainda que muito rico, campo das relações internacionais, o conceito de soberania sobre os recursos naturais viu-se, em décadas recentes, sobretudo a partir da segunda parte do século XX, diante de desafios particularmente exigentes, bem visíveis no trato de questões como o direito do mar, o meio ambiente, e outros, como os recursos hídricos ou energéticos, que necessariamente, por sua característica transnacional, interagem com as noções de fronteira e de limites da soberania dos Estados.
Convém contudo admitir que essa norma, relativa à soberania dos Estados sobre seus recursos naturais, tem, periodicamente, sido arguida de forma distorcida, sobretudo por regimes de inclinação autoritária, para justificar a adoção de políticas públicas questionáveis ou por mero receio e oposição a dinâmicas de desenvolvimento e integração cujo pressuposto será sempre a transparência inerente ao Estado democrático de direito. Pode-se, por essa linha, verificar, como descrevo mais acima, o quão falaciosa tem sido a postura do governo Bolsonaro, em especial na área externa, ao contra-argumentar as críticas à sua (inação) política e estímulo ostensivo à ocupação predatória da Amazônia com a alegação de «ameaças externas» à soberania do país sobre seus recursos naturais.
Ricúpero, sempre muito compreensivo, o que vejo como uma das qualidades dos grandes chefes, anuiu à minha mudança de «desk» na Missão, facilitada, no momento, pela chegada de novos colegas, entre eles o (então) ministro Sérgio Amaral e o (então) conselheiro Piragibe Taragô, colegas de «primeira água» e com certeza muito mais qualificados do que eu para assumirem as negociações nos grupos de minha responsabilidade no Rodada: Ricúpero confiou com tranquilidade a ambos, ao Sérgio Amaral os grupos sobre serviços e investimentos, e a Piragibe o grupo sobre propriedade intelectual. Pude assim contar com os meses de verão para terminar a minha tese, antes de entrar de chofre nas negociações ambientais em Genebra, e que me levaram a périplos constantes—e por vezes bem longos– a Nova York e Nairobi.
Minha saída das negociações da Rodada causou alguma surpresa, sobretudo no grupo sobre serviços, pois a essa altura já éramos, no «núcleo duro» dos negociadores, uma espécie de família, em virtude da frequência das reuniões, encontros informais, seminários, almoços e jantares de que participávamos. Pude explicar aos colegas que havia sido convocado para trabalhar nas negociações preparatórias da Conferência do Rio de Janeiro—UNCED, o que efetivamente foi o caso, as mesmas ocupando-me totalmente até o fim de minha primeira estada em Genebra, em 1992, e depois, vez que fui transferido para a Secretaria de Estado em Brasília, e chefiar a Divisão do Meio Ambiente-DEMA em seguida à UNCED e nos anos subsequentes.
Ficou, contudo, algo subentendido que minha saída se devia à mudança das posições que até então defendíamos, em função da abertura econômica e comercial levada a efeito pelo governo Collor. Com efeito, e tal como acima referido, essa abertura, ainda que mais do que devida em sua substância, no contexto de um país que política e economicamente necessitava de abrir-se ao resto do mundo e atualizar-se em suas relações externas, causou-nos algum constrangimento nas negociações, pela forma como foi ali traduzida, tirando-nos «o tapete», por assim dizer, ao ser feita com base em concessões sem crédito às noções de reciprocidade ou de contrapartidas.
São práticas que por vezes o Brasil tende a repetir, pelo bem ou pelo mal, como por exemplo no atual governo Bolsonaro, com a eliminação sem contrapartida da exigência de vistos para cidadãos norte-americanos, ou a desistência, na OMC, da condição de país em desenvolvimento, com a perda das vantagens que essa condição no proporciona no âmbito dessa organização. É falacioso, nesse sentido, o argumento de que a contrapartida para essa desistência da condição de país em desenvolvimento será a eventual entrada para a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico-OCDE, já que a acessão a essa organização, para além do «benefício» da mudança apenas formal e duvidosa de «status», apenas nos levará, em longo, custoso, e pouco realista processo de adaptação—em todos os setores da atividade econômica—a novas obrigações, próprias do quadro normativo dos países desenvolvidos. Todos nós almejamos a que um dia o Brasil alcance o nível e a qualidade de vida de um país desenvolvido.
Penso, entretanto, que a entrada—ou não—para a OCDE será marginal nesse processo, cuja dinâmica dependerá muito mais de nosso esforço interno e de políticas públicas no combate à pobreza e à visceral desigualdade social, com prioridade para a educação e saúde, bem como na busca de um entendimento construtivo com os vizinhos e o resto do mundo.