REFEIÇÃO A SÓS: MUITO PRAZER—ATO 2: DESENVOLVIMENTO
ATO 2-PRÓLOGO
Nas primeiras 16 partes destes ensaios, que chamarei de «Ato 1», procurei alinhar os elementos temáticos, tratados de forma mais bem descritiva. O foco foi na representação da condição de quem faz a refeição a sós em função de uma evidente polaridade. De um lado, a aparente percepção de desconforto que envolve aqueles nessa condição, e no fato de que se trata de milhões de pessoas, homens e mulheres de todas as idades; de outro, a perspectiva de prazeres insuspeitos, para além do prazer intrínseco ao ato de alimentar-se, que se revela potencialmente ao comensal solitário, sobretudo, mas não apenas, na forma de melhor conhecimento próprio.
Passemos agora, no «Ato 2», a um tratamento um pouco mais analítico de nossa temática, com recurso a algumas categorias forçosamente mais genéricas, como a política e a economia, outras mais intimistas, como o amor, a temperança, ou mesmo o silêncio ou o drama. Para os amigos familiarizados com a música, tento seguir nesse desenvolvimento, de longe e de forma livre, claro, a estrutura da «forma sonata», onde os temas e contra temas, os sujeitos e contra sujeitos, após apresentados e descritos (na música, fala-se de «exposição») , são explorados , ou desenvolvidos, em seu potencial de tensão, riqueza e diálogo, percorrendo—em modulações variadas– regiões em tonalidades distantes, para em seguida encontrarem o merecido repouso na tônica original.
E, por aí, aparecerão, como no «Ato 1», algumas citações, para fins de apoio ao argumento, e por dever de respeito aos donos das ideias, aos direitos intelectuais do próximo. Podem ser ignoradas sem demérito para a linha do argumento. Citações, tais como as vejo, são fotos tiradas em museus intelectuais, do nosso acervo cultural, válidas portanto apenas nesse contexto: apoiam nossas ideias. Como dizia Van Loon na seu compêndio «As Artes», podemos, com alguma solidez e suporte que seus ombros—lá, das artes– nos oferecem, construir nossas observações e sugestões a partir de ideias que, verdadeiras ou falsas, já foram testadas e de algum modo consolidadas, com suas virtudes e defeitos, naquele nosso acervo cultural. Ajudam-nos, criticamente, a nos conhecer melhor; e a descobrir, no caso destes ensaios, os tais prazeres ocultos ou transcendentais que vislumbro embutidos na refeição a sós.
REFEIÇÃO A SÓS:
MUITO PRAZER-PARTE XVII-A POLIS
A POLIS E A REFEIÇÃO SOLITÁRIA-PARTE XVII (a)
Fica, nessa perspectiva, mais evidente a vinculação da refeição solitária com a polis, ou seja, a política, e com o nível de desenvolvimento sócio-econômico de cada sociedade, objeto de exame mais adiante. Surgem desde logo perguntas, ou percepções, do tipo: por definição, é o ser político—e somos todos seres políticos, ou não?– avesso a comer a sós, já que está sempre em busca de apoio ou aprovação para seu mandato, afinando-se sempre as refeições como momento particularmente favorável para a interação pessoal com os eleitores? Não somos necessariamente candidatos a mandatos políticos, mas queremos sempre a aprovação, ou pelo menos a interação, com aqueles que nos rodeiam. Ou não? Mas, se trata de correlação da mesma natureza: votem em mim!. Somos, politicamente, avessos a comer a sós? Digo que aparências enganam.
A questão é simples, mas tem força própria a partir da teoria da linguagem, da filosofia da linguagem. O comensal solitário quase não fala, a não ser ocasionalmente, em conversas com os garçons ou na troca de palavras com algum conhecido ou amigo que passe pela sua mesa. Há, claro, o telefone celular, e os fones aos ouvidos. São casos específicos, e os há numerosos, que podem diluir, mas que não neutralizam a validade do princípio básico que rege a refeição a sós: o silêncio—ainda que relativo, ou a falta—ainda que relativa, de conversa, do diálogo.
Esse princípio significa que a refeição a sós distancia, daquele que a faz, da ideologia sempre contida na escolha da linguagem da conversa. Podemos discordar, mas, cada palavra, por fixar-se em determinada língua, está carregada pela ideologia, isto é, pela coleção de valores e significados dessa língua. Ao falarmos, por exemplo, a palavra «mesa», ou a palavra «floresta», em português, ou mesmo em outra língua , para um falante nativo em português, fazemos a ideia do objeto referido conforme nossos valores, nossa cultura, nossa ideologia. Ao dizermos «floresta», sendo brasileiros, muito provavelmente pensaremos na Amazônia ou na Mata Atlântica, com árvores latifoliadas, enquanto o mesmo termo em outra língua terá como referência imediata, para o interlocutor francês ou alemão, por exemplo, uma floresta angustifoliada, de clima temperado ou uma formação de pinheiros.
Lamentavelmente, estamos todos presos a um, ou mais de um, sistemas de ideias, que vamos referenciando junto com o aprendizado da língua. Os estudos de outras línguas, e a nossa própria educação e cultura nos dão oportunidade de nos libertarmos de ideologias próprias e partilharmos, aceitando ou não, ideologias alheias.
Porque vamos à escola? Para nos educarmos, por certo, e assim nos inteirarmos de nossa ideologia. E vamos à universidade para aprendermos a ser inteligentes, críticos e inovativos, isto é, relativizarmos a nossa ideologia, ou nossas ideologias, com respeito (nas duas acepções da expressão) à multiplicidade de ideologias existentes, passadas ou porvir.Nesse caminho, aprendemos técnicas úteis, como a informática, a advocacia, a medicina, ou a engenharia, para ficarmos nas tradicionais, o que está bem, mas está longe de ser a essência da educação.
Dos estudos de teoria política e da experiência como professor de inglês e francês, assim como de meu interesse específico na teoria da linguagem, cheguei a imaginar, por puro exercício mental, dar um curso de metodologia (ou de epistemologia, se quiserem) onde, na primeira aula, eu ficaria diante dos alunos sem dizer coisa alguma. Esperaria que algum participante questionasse a respeito de meu silêncio. Pois, em geral, numa classe, qualquer uma, é costume o professor falar primeiro, nem que seja, como manda a norma, para dar bom dia a todos. E porque esperaria até que alguém, dentre os estudantes da classe, rompesse o silêncio? Porque, ao fazê-lo, esse estudante estaria definindo, ali e naquele momento, em qual ideologia estaríamos trabalhando. Como professor, eu não mais estaria impondo à classe alguma ideologia, e sim seguindo a escolhida pelo aluno, na suposição de que seria o consenso da classe.
Nesse momento então eu começaria efetivamente a falar e a tratar da matéria do dia. Em outras palavras, em cada diálogo, temos escolhas à nossa disposição, e mesmo dentro de uma só língua, elas são infinitas. Há muita verdade na expressão comum: «pense bem no que vai dizer…».