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O CALDEIRÃO AMAZÔNICO: NEGOCIAÇÃO OU CANHÃO?

O CALDEIRÃO AMAZÔNICO: NEGOCIAÇÃO OU CANHÃO

Hoje, como aconteceu na década de 1980, debatem-se  o desmatamento e as queimadas na Amazônia como uma questão global (entre tantas outras, como os direitos humanos, os recursos hídricos, o combate à fome, o direito à saúde, as diversas formas de emergia, o acesso à educação, as migrações, etc, que extravasam os limites fronteiriços). No caso do desmatamento (deforestation) e das queimadas, vale dizer que são duas questões distintas. Em nível das mudanças climáticas, ou seja, dos gazes que produzem o chamado «efeito estufa», o que conta são as queimadas, pois destroem o carbono das árvores e o transformam em CO e CO2. O desmatamento, em si, visto nesse nível das alterações climáticas, é neutro, por deixar estocado—sim, estocado, valha-nos a Dilma!– o carbono na forma de madeira, desde que essa madeira estocada—na forma de móveis, por exemplo–não seja queimada. Será o desmatamento até mesmo positivo (deste ponto de vista, não obviamente de outros. a floresta amazônica é um ecossitema essencial no equilíbrio da matriz climática em nível global , estimando-se que seu desaparecimento, ou virtual redução, traria consequências traumáticas para a vida no planeta), na medida em que dará lugar a novas plantações, com a consequente fixação de carbono adicional. Há também mitos que convém desfazer, a respeito do desmatamento na Amazônia: conviria questionar a afirmação, ainda que compreensível, de que a amazônia, como bioma, responde por 20% da produção líquida de oxigênio no mundo. A evidência seria no sentido de que a floresta amazônica , em idade chamada de «adulta», ou seja , não está em formação, e tampouco em decomposição, seencontra «em equilíbrio»: consome todo o oxigênio que produz, nem mais nem menos. Caso a Amazônia tivesse, e felizmente que não tem,  uma grande cobertura de grama, seria então uma grande produtora de oxigênio líquido para o resto do planeta. Na verdade, os oceanos detêm esse mérito.

Já as queimadas, estas com certeza, são  grandes vilãs no que toca às alterações climáticas, pois produzem gazes do efeito estufa. Ainda mais se tiverem suas áreas originalmente florestais substituídas pela criação de gado, notório produtor, pelo estrume, de outro importante gaz do efeito estufa, talvez um dos mais nocivos, o metano, pois não se decompõe com facilidade. Note-se, porém, que a contribuição das queimadas da Amazônia para o efeito estufa, geralmente estimada em torno de 6%, fica muito abaixo de outros vilões: carvão mineral e petróleo, quanto mais não fora, por serem recursos energéticos não renováveis. A queima de carvão mineral e do petróleo são, em série histórica, e em dimensão absoluta, os grandes responsáveis pelos atuais níveis de mudança climática, de origem antropogênica, no mundo, cabendo a principal responsabilidade aos países industrializados, pela histórica e contínua utilização irresponsável desses recursos.

Os conceitos de responsabilidade histórica,e o da responsabilidade comum (a todos) porém diferenciada ( para admitir quotas históricas e atuais entre os maiores emissores de gazes do efeito estufa) estão aceitos como princípios, entre outros—como o do desenvolvimento sustengtável—norteadores do tratamento da questão ambiental no nível internacional multilateral e também no nível interno de cada país. Para tanto serviram as múltiplas e intensas negociações internacionais havidas nas últimas décadas e que seguem seu curso.

Como referido mais acima, as queimadas na Amazônia não são um fato novo. São recorrentes, muitas vezes originadas de fenômenos naturais, como os raios. Têm ademais base em fatores sócio-culturais: por todo o Brasil, e outras partes do mundo, usam-se tradicionalmente as queimadas para preparar o solo para o plantio. Até hoje, no interior do Brasil, desenvolve-se um esforço constante das entidades responsáveis, governamentais ou não, para combater essa prática ainda comum na agricultura tradicional.  O caso da Amazônia brasileira e nas grandes áreas adjacentes no Pantanal e no Cerrado, assim como nas áreas de savanas como em Roraima, as queimadas decorrem da expansão da «frontier», das frentes agrícolas e de cultivo de gado, em prefeita harmonia com os interesses madeireiros—nacionais e internacionais.  Em diversas partes do mundo, passou-se algo semelhante, quem não se lembra, por exemplo, dos episódios de destruição ambiental e humana na «frontier» norte-americana, inclusive com direito a guerras? A Amazônia, entretanto, desperta, por diversos motivos, inclusive interesses econômicos internacionais, sensibilidade especial no plano global, e por certo o Brasil tem de levar em conta essa diversidade de interesses sobre a região. É clara a importância de negociar, de conversar. O próprio Barão do Rio Branco deu o exemplo, ao negociar com a Bolívia a aquisição do hoje estado do Acre, com o tratado de Petrópolis, de 1903. Região pertencente à Bolívia, estava em permanente estado de conflito com a invasão dos brasileiros que para lá haviam emigrado por conta dos seringais.

 Bem, falávamos de que as queimadas e o desmatamento têm um histórico significativo na Amazônia, com grande potencial para a geração de conflitos. Isto, sem estímulo particular dos governos. Vai ver como fica com a ajuda de uma «mãozinha» do Planalto.

Particularmente desde a posse até no presente momento, em fins de agosto de 2019, o governo Bolsonaro, com a participação de seus ministros, inclusive o lamentável apoio de seu chanceler, Ernesto Araújo, tem deixado implícito, ou mais bem explícito, o estímulo a essas atividades, sob o manto duplo de incentivo à agroindústria (como a salvação da pátria) e de desmérito à questão ambiental (tratada como um obstáculo ao desenvolvimento e ao crescimento econômico). Ora, tais atitudes se chocam frontalmente com os princípios contemporâneos da convivência internacional, arduamente negociados pela comunidade de países, tanto nos diversos planos multilaterais como em planos regionais e mesmo internos. Tais princípios—que obviamente não se restringem apenas ao âmbito ambiental, mas também ao comercial, econômico, político (abrangência da democracia e dos direitos humanos, por exemplo)—pressupõem, na verdade exigem, dos governos nacionais uma atualização dos conceitos de fronteira, e que de forma alguma transgride o pleno respeito às soberanias nacionais. Ao contrário.

É apenas uma mudança de paradigma. O efeito estufa não conhece as fronteiras (limites) nacionais, claro. Compreende-se que, desde o primeiro momento de sua posse, e da posse do seu chanceler, o governo Bolsonaro venha insistindo sobre a necessidade de combater o «globalismo», retomar o culto da soberania nacional nas suas formas tradicionais, renegando o multilateralismo, e adotando o nacionalismo histriónico decantado por Trump.

Somente conseguiremos fazer respeitar nossa soberania sobre o território nacional e sobre seus recursos se entendermos que estamos diante de um novo paradigma para as fronteiras. Já temos os nossos limites bem negociados e plenamente reconhecidos pelo direito internacional. Nossa soberania não está ameaçada em termos de limites. Ainda que eu dê plena razão a Bolsonaro com respeito a suas críticas quanto à delimitação de grandes áreas indígenas em regiões fronteiriças (Ianomami, com a Venezuela, Raposa do Sol, Venezuela e Guiana, por exemplo), que por vezes parecem acenar para uma negação dos limites para contemplar a «totalidade» das terras indígenas de um grupo específico.

O atual modismo de construção de muros (por Israel, EUA, países do leste europeu) visa especificamente o isolamento, como se fora possível, com a eliminação da permeabilidade dos espaços fronteiriços. Ignora-se, dessa forma, que os conceitos tradicionalmente ligados à noção de fronteira, na maioria sempre negativos, vinculados à defesa do território (proteção contra imigração ilegal, contrabando, tráfico de drogas, invasão militar ou de terras, etc), cedem algum espaço para as noções mais positivas de cooperação, integração, complementaridade urbana e social, interdependência e ativação econômica (por exemplo, o PIB da faixa fronteiriça que se estende por 150 km de cada um dos dois lados da fronteira entre os EUA e o México está entre os dez mais altos do mundo). 

No contexto da diplomacia multilateral, celebram-se conferências internacionais, promovidas pelas Nações Unidas, sobre temas que implícita ou explicitamente requerem uma atualização da noção de fronteiras:  energia, direitos humanos, comércio, meio ambiente. É falacioso por exemplo aceitar, a não ser por populismo político, que a diversidade biológica da nossa Amazônia, um bioma com uma área de cerca de 5 milhões de km2, dois terços do território nacional, possa ser protegida e defendida por soldados e armas tradicionais: trata-se de riqueza que pode ser transportada no bolso de um pesquisador estrangeiro, que a patentiza no exterior. A forma de defender nossa biodiversidade consiste em negociar tratados e convenções internacionais que protejam os direitos e a soberania sobre tais recursos bem como a regulamentação da sua exploração. Isto, para não mencionarmos a permeabilidade de fronteiras trazida pelas tecnologias da informação.

Vale o contraste: como disse, não é a primeira vez que as queimadas na Amazônia brasileira atingem o elevado nível de atenção e de críticas ao governo brasileiro que vemos hoje. Nas décadas de 1970 e de 1980, ocorreu situação semelhante—agravada, à época, pelos danos ambientais provocados pelo garimpo e a poluição dos rios amazônicos por mercúrio—as imagens de Serra Pelada eram muito vivas. Naquele período, entretanto, sobretudo no final da década de 1980, o Brasil já emergente dos longos anos do regime militar, o governo brasileiro optou pela iniciativa de sediar no Brasil a Conferência das Nações Unidas sobre Meio ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92. Em outras palavras, sendo, na ocasião, alvo de críticas massivas ao desmatamento e às queimadas na Amazônia, os governos Sarney e depois Collor optaram, com evidente acerto político, por abrir as portas do Brasil e do diálogo à comunidade internacional. A Rio-92, com a presença de mais de 100 Chefes de Estado e de Governo, e milhares de ONGse outros representantes da sociedade civil interna e internacional, teve pleno êxito, consolidou-se ali o conceito de desenvolvimento sustentável, foi aprovada a Agenda XXI, um receituário para o desenvolvimento que gradualmente passou a ser incorporado às agendas nacionais, inclusive a do Brasil. O Brasil, em seguida, adotou diversas políticas de gestão ambiental que, no caso da Amazônia, praticamente silenciaram as críticas internacionais.

 Corta-se a cena. Entra o governo Bolsonaro, retornam as críticas sobre queimadas e desmatamento na Amazônia. O Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ameaça denunciar os Protocolos à Convenção Quadro sobre Mudança do Clima e mesmo retirar o Brasil da Convenção. Cancela o compromisso de sediar, no Brasil, a próxima Conferência das Partes dessa Convenção, alegando falta de recursos (!). Denuncia a Convenção sobre Migrações Internacionais, que o Brasil, no governo anterior, havia assinado. Bolsonaro e seu chanceler exaltam o «agronegócio» e a exploração dos recursos naturais na região amazônica, ao mesmo tempo em que o governo como um todo critica o desgoverno das gestões ambientais anteriores no país, e sugere a prática de políticas liberalizantes a respeito de fiscalização e controle ambiental. E, finalmente, Bolsonaro põe em dúvida as pesquisas de uma instituição da respeitabilidade do INPE, aliás apoiadas pela EMBRAPA (ninguém falou disso) cujos números sobre o desmatamento na Amazônia revelam um crescimento da atividade acima dos parâmetros de anos anteriores, e despede o seu diretor. Mais recentemente, e previsivelmente, continua atribuindo a ONGs ambientais e movimentos internacionais, e mesmo a governos estrangeiros, entre eles França e Bolívia, a culpa pela deterioração ambiental na região. Visivelmente acuado, não sabe que rumo tomar. Em reunião do gabinete de crise, diante da forte pressão internacional, decide mandar as Forças Armadas para o combate aos incêndios na Amazônia. Cinco milhões de km2! Acre declara estado de emergência. Macron, o presidente francês, acusa Bolsonaro de mentiroso e propõe, com apoio da Alemanha, seja a questão amazônica objeto de tratamento pelo G-7, que se reúne em Biarritz. TV Record, pró-Bolsonaro, censura matérias da imprensa nas suas transmissões internacionais. Enfim, o caos. Os danos virão depois. Os prejuízos que o Brasil incorrerá, função das bravatas, a maioria em termos chulos e de baixo calão, de Bolsonaro, não serão pequenos. Prejuízos para a imagem do Brasil, já tão vilipendiada pela corrupção, pelos desequilíbrios sociais que só aumentam; mas, sobretudo, prejuízos econômicos, no comércio exterior e em investimentos, e, o que é pior, em termos de respeitabilidade. Ora direis, soldados na Amazônia para combater incêndios? Em cinco milhões de km2?

No caso da Venezuela, os nossos militares ajudaram e impediram que o ministro Ernesto Araújo seguisse pelo caminho da provocação ditada pelos EUA, e que quase nos leva a um conflito armado com o país vizinho, na fronteira de Roraima. Com respeito às atuais críticas às queimadas e ao desmatamento, pouco podem fazer, por estarem ainda muito vinculados às noções tradicionais de defesa e de agressão.  Pena que Bolsonaro não possa contar com a orientação que lhe seria devida pelo Itamaraty,  de que o caminho para sairmos dessa caldeira quente está na negociação, não no canhão.