A REFEIÇÃO A SÓS: MUITO PRAZER—PARTE X–A DIETA
Tema bastante delicado, e que toca a muita gente. Desde as miríades da dieta «facultativa» até, muito triste e trágico reconhecer, os milhões de miseráveis, pelo mundo fora, que têm, quando têm, uma «dieta forçada», comem quando podem ou quando têm acesso a algum alimento. Refiro-me igualmente àqueles arredios ao alimento, por motivo que seja, desde os abúlicos e os anoréxicos, até os que por problemas de saúde sofrem restrições alimentares. Não há porque distingui-los no contexto da refeição solitária.
São sujeitos igualmente ativos, para efeitos destes ensaios, desde os que sofrem com a fome, aos que fazem qualquer tipo de dieta, ou aqueles que se submetem a restrições alimentares, até mesmo os anoréxicos, à condição que estabeleçam relação consciente com o alimento, ou que simplesmente tenham como se alimentar.
Há, contudo, que levar em conta algumas variações no entendimento da proposta: «refeição solitária: muito prazer». Vejam alguém que faz uma dieta, seja qual for. Sua atenção, a concentração em torno do alimento que lhe é dado comer assume características próprias. Está ali embutida, por um lado, uma questão de sobrevivência; mas, por outro, a limitação, ou a restrição alimentar pode não deixar a pessoa inteiramente livre para a reflexão. A própria natureza reflexiva, ou racional, dessa restrição, ocupará algum lugar na mente do dietista, em prejuízo da liberdade mental que oferece ao comensal solitário uma refeição livre de restrições.
Por sua vez, o combate à fome no mundo deveria ser o maior esforço humanitário e econômico de todos em todas as épocas.
Em talvez não poucos casos, existe a percepção de estar-se sacrificando algo, já que por aí passa a essência de muitas dietas, as «facultativas», por assim dizer. O caso das dietas «forçadas» pela pobreza, repita-se, é uma questão vital, sua mera existência constitui crime contra a humanidade, pelo qual toda e cada sociedade é responsável Por uma questão de respeito à questão da miséria e à fome no mundo, que nos ofende a todos e à humanidade em seu conjunto, deixemos a sua referência mais explícita, que extravasa os limites do tema, para o devido lugar, em especial na nossa consciência.
A condição de alimentar-se proporciona, por si mesma, a restauração da dignidade do ser; mas, se a refeição se faz solitariamente, essa condição, aplicada àquele que passa fome, talvez até mais que aos seus semelhantes, permitirá com mais facilidade o fortalecimento do ser. O ato de comer só, com efeito, ocorre sem a interferência da conversa, permitindo a abertura para a reflexão.
A favor do dietista, ou mesmo do anoréxico, ou daqueles que por questões de saúde têm restrições alimentares, vale notar, de fato, certa tendência pela refeição solitária. Afinal, fazer dieta em companhia de outros que comem normalmente pode implicar disciplina, força de vontade extra. Digo apenas que pode implicar, para aqueles mais predispostos a interromper o programa dietético ao ver e sentir nos pratos dos companheiros de mesa alimentos, sabores e odores de que gosta e que estão excluídos de sua lista da dieta. Como dizia Oscar Wilde, «posso resistir a tudo, menos às tentações».
Daí dizermos que, como tendência, o dietista se sentirá melhor, ao fazer e observar as restrições alimentares prescritas, em refeições solitárias. Terá, portanto, condições, ou pelo menos a possibilidade, de multiplicar os aspectos positivos, libertadores, de uma ação—, no caso,a dieta—em detrimento dos seus aspectos restritivos (sem exagero: angústia, tensão e stress, sentimentos de culpa, preocupação com a saúde e, pior de todos, a fome) .
O indivíduo estará melhor diante da refeição solitária sem qualificativos, daí advindo a oportunidade para a reflexão desvestida de interferências, a libertação da mente, em momentos conectados com o alimento.
A propósito, Já tive a oportunidade de ressaltar a conexão entre jejum, dieta «facultativa», e reflexão, tão comum entre os valores ascéticos tanto no Ocidente como no Oriente. Nada de novo.
Indo um pouco além, seria justa a referência aos procedimentos e atitudes zen.
Conto uma historinha a respeito: sou flautista amador. Iniciei meus estudos de flauta, já em Brasília, com a professora Odette Ernst Dias, então recém contratada pelo departamento de música da Universidade de Brasília. Fui da primeira classe de Odette na UNB, e para tanto fiz vestibular—mais um– e me inscrevi no departamento de música. Odette foi a seu modo uma pioneira no ensino de flauta no Brasil, criou escola, primeiro no Rio de Janeiro, depois em Brasília. Meus colegas de então vieram a tornar-se flautistas profissionais, professores e chefes de departamentos de música, regentes, compositores, no Brasil e lá fora. Pois bem, desde as primeiras aulas, Odette insiste na percepção de que o som, as notas, a música que emitimos com a flauta seguem, se desprendem do instrumento e adquirem vida, voam, e nós, ao tocarmos, vamos junto, voamos junto com os sons e a música que produzimos. Diz ela, na aula, que é uma atitude zen. Cita livro que àquela altura não conhecia, o «Arqueiro Zen», para ilustrar o voo do som, e do instrumentista, com as lições do mestre zen, ao dizer ao aluno do tiro com arco e flecha que ao atirar a flecha, o atirador vai junto, voa junto com a flecha, para chegar ao alvo.
Em qualquer circunstância, mesmo nos casos citados, da dieta ou da restrição ao alimento, a circunstância da refeição solitária pode propiciar o voo libertador da mente.
Como não mencionar, nesse contexto, o samba intitulado «Tiro ao´ Álvaro», de Adoniran Barbosa, desse grande artista e compositor («Trem das Onze», «Arnesto me convidou»…) e, para mim, também grande linguista: trata-se da maravilhosa ilustração, com a temática da atracão amorosa posta em linda melodia, prosodicamente integrada à sugestiva letra, dessa atitude zen: «De tanto levar frechada do teu olhar, meu peito até parece, sabe o quê, ´táubua` de tiro ao ´álvaro`, não tem mais onde furar…».
Vejam só: por motivos diversos, horários incompatíveis, há famílias inteiras cujos membros não se sentam juntos para comer. Comem solitariamente, os horários de trabalho e de estudo são diferentes, um chega, outro sai, fica ali a frigideira com as salsichas e o pão de forma, cada um esquenta a comida quando pode. Comedores solitários ocasionais e no mais das vezes inconscientes dessa condição.
Caberia aí um trabalho de «catequese e evangelização», digamos assim, para que possam disfrutar melhor dessas refeições a sós, em geral rápidas. Assim como caberia o mesmo cuidado com os «TV diners», ou, atualizando a expressão, com os «NET diners».
Forçoso admitir, a respeito desses últimos, a contribuição quantitativa à categoria dos comensais solitários. Lamentavelmente, parece que a contribuição qualitativa a essa categoria ainda está por ser mapeada. É com efeito enorme o número daqueles que fazem as refeições «ligados» ao aparelho celular e à internet, ao ponto de literalmente ignorarem a companhia de mesa, de tão entretidos na navegação na Web e na convivência com o cyber world.
Quanto à contribuição qualitativa, a prudência manda aguardar, tendo em vista as implicações éticas, estéticas , culturais, e, mais imediatamente, sejamos claros, daquilo que em outros tempos bem se aproximaria da desconsideração convivial (muito comum ver as pessoas em determinada mesa absortas a digitarem os teclados dos celulares em navegações por mares internáuticos os mais diversos, com mais qualificativos– incertos, tormentosos, plácidos, profundos, amorosos, desconhecidos, densos, irrelevantes, incultos, qualquer atributo terá seu lugar — do que os enfrentados por Vasco da Gama, tal como poetizado por Camões em «Os Lusíadas», no caminho marítimo para as Índias).
Fica apenas a pergunta: será essa a nova forma de libertação, a nova epifania a desvelar-se a cada momento diante daquele que come a sós, pois, mesmo estando em companhia, isola-se?
Inevitável o contraponto com as pessoas que, por circunstâncias do momento, se vêem a sós com a refeição. Meses atrás, por exemplo, compro uma coifa para a cozinha de nosso apartamento em São Paulo, e contrato os serviços de instalação da mesma firma, hoje em moda em São Paulo, e dominante no mercado up. O equipamento apresenta defeitos de fabricação, tudo já pago, não foi barato, e dita coifa somente se instala após muitas idas e vindas. Inauguro a coifa numa refeição solitária. Uns cogumelos porto belo salteados com coentros. A maminha de alcatra maturada, selada na manteiga e azeite ao fogo razoavelmente forte, mas não em demasia, mal passada e fatiada, uma salada de agrião. Depois, queijo «da ilha» dos Açores, bem picante. Puro. Meu testemunho: valeu o contraste dos dissabores tidos com a instalação da coifa com os sabores da refeição. Deu-me prazer a equação assim resolvida.
Asim, a situação momentânea faz a refeição solitária, independentemente dos parâmetros de vontade ou de necessidade, os tais «pólos» que menciono ao início como norteadores da condição de quem come a sós. Penso no executivo ou na executiva, em viagem a serviço, solitários em um restaurante de hotel. Ou, por preguiça ou outro motivo qualquer a pessoa, num momento a sós, resolve ir comer fora, na padaria ou no bar da esquina. São tantas as situações e circunstâncias.
Muita diversidade. Mas, em comum, a oportunidade de refletir, de acercar-se do eu. De tirarmos a roupa das conveniências e de nos mentalizarmos, de acharmos o nosso eu substantivo, deixando de lado o nosso eu adjetivo. Não quer dizer que nossa imaginação se tornará mais fértil de momento a outro; ou que descobriremos a pólvora ou que estaremos prestes a tocar o sublime.
Tocaremos mais de perto o eu íntimo, estaremos do lado de dentro de nossas peles. As imagens que vemos contam, mas nós as importamos do exterior sem termos que pagar o pedágio ou direitos aduaneiros de interpretação. Estamos só, mas somos nós, nossos amores, amigos e o mundo. Pode ser só um pedaço de pão adormecido. E que prazer!