AMAZÔNIA.VIVÊNCIAS- UM MINEIRO MATUTO NA DIPLOMACIA-PARTE III
AMAZÔNIA E MEIO AMBIENTE
AMAZÔNIA.VIVÊNCIAS-PARTE III
AMAZÔNIA
— Dizer que a Amazônia é um mundo é dizer nada e tudo. O nada, de nossa pequenez, e o tudo, do bioma mais impressionante que se pode vislumbrar, são revelados na transparência luminosa (para seguir a sugestão dos termos que minha amiga, a Vidraça, usou uma vez, para falar da região) que sinto ao cruzar, já quase à noite, o rio Javari, junto ao Solimões, numa «voadeira», esta canoa com motor de popa, feita de alumínio, e que, como uma faca meio cega, negocia fendas na imensidão das águas já escuras. Somos quatro ou cinco a bordo, alguns dos membros da delegação brasileira que me coube chefiar.
Regressamos de visita oficial ao município fronteiriço de Benjamin Constant, em direção a Tabatinga, onde fincamos nosso «quartel general» diplomático. Foi a propósito de projeto que desenvolvi, enquanto chefe da Divisão da América Meridional-II (DAM-II), do Departamento das Américas, encarregada de nossas relações com os países amazônicos.
Certo dia, na DAM-II, fiquei fascinado ao ler um relatório do Banco Interamericano de Desenvolvimento—BID, a propósito de projeto de cooperação fronteiriça entre Colômbia e Equador, região do rio Pilcomayo. Eram ali desenvolvidas ideias novas, pelo menos para mim, sobre o conceito de fronteiras, com vistas a promover o desenvolvimento da região fronteiriça, dos dois lados da linha de limites, com base na cooperação e no entendimento entre os países vizinhos. Em vez de darem-se as costas, os países limítrofes se articulam e juntam forças.
Ocorreu-me aplicar o mesmo conceito para as áreas fronteiriças com os países amazônicos, minha área de trabalho. Propus aos meus chefes promover a cooperação e a integração das comunidades fronteiriças na região, inicialmente com a Colômbia, tendo como base sempre a premissa de que as fronteiras não são apenas limites, ou linhas que separam dois ou mais países, mas constituem também um espaço, o espaço fronteiriço, propício para ações conjuntas e para a integração social e econômica.
É preciso ver que, à época, em 1987, o presidente Sarney, na boa tradição da política externa do Brasil, havia definido como prioritárias as nossas relações com os países da América do Sul. Em consequência dessa linha de política externa, ele próprio, e seu chanceler Abreu Sodré fizeram turnos em visitas oficiais e de Estado praticamente a todos os países da região.
A minha Divisão havia sido reforçada, tinha dez diplomatas sob minha chefia! Parecia um luxo. Trata-se, contudo, de prática normal no Itamaraty, a de reforçar as divisões e departamentos com atribuições conjunturalmente prioritárias. O que é menos comum é deixar ao nível de chefia de Divisão, pelo menos no Ministério das Relações Exteriores, a liberdade para a proposição e execução de iniciativas bastante abrangentes de política externa, como a que estamos apreciando. Essas divisões reforçadas de funcionários e da atenção maior por parte das chefias eram qualificadas pelos diplomatas na Secretaria de Estado por divisões «poderosas». Os seus chefes com frequência despacham diretamente com o Secretário Geral ou mesmo com o Ministro de Estado. Mas nem sempre têm a mesma liberdade de ação que me foi dada na DAM-II.
A propósito dessa relativa autonomia com responsabilidade, permitam-me uma digressão. Tive oportunidade bem semelhante ao chefiar a Divisão do Meio Ambiente, de 1992 a 1994, logo após a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92, da qual participei, ainda como Conselheiro, na chefia de um de seus grupos negociadores, por acaso o grupo negociador sobre mudança do clima, os demais (grupos sobre florestas, recursos financeiros, Agenda XXI-desenvolvimento sustentável e desertificação) tendo ficado a cargo de embaixadores. A propósito, convém dizer que, até a Rio-92, a chefia dessa «poderosa» Divisão do Meio Ambiente– «poderosa» por estarem ali concentrados os poucos colegas familiarizados com a complexa temática do meio ambiente tal como trabalhada no plano negociador multilateral– coube a Luís Filipe de Macedo- Soares, então Ministro[1], com quem mantive, desde Genebra, por estar comigo o «desk» de meio ambiente na nossa Delegação Permanente naquela cidade suíça, estreita correspondência no contexto das negociações sobre meio ambiente.
Participei como delegado principal do Brasil às sessões preparatórias da Conferência do Rio, em Nova York, aos intensos trabalhos, que ocorriam concomitantes, nos comitês negociadores da Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima, com muitas das sessões em Genebra ou Nova York, da Convenção sobre Diversidade Biológica, com sessões em Genebra e Nairóbi, cidade sede do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente-PNUMA, assim como da Convenção sobre a Proteção da Camada de Ozônio. Vez por outra, era acompanhado de algum colega da Secretaria de Estado que conseguisse escapar por alguns dias do pesado trabalho de articulação e preparação da Conferência do Rio dentro do Brasil, exigido a todos na Divisão do Meio Ambiente.
Curioso que a Missão do Brasil junto à ONU, em Nova York, à época muito voltada para temas candentes ligados à chamada «Agenda para o Desenvolvimento», sendo o Brasil, leia-se, nossa Missão junto à ONU, um dos seus principais proponentes, optou por não envolver-se com as negociações substantivas preparatórias da Rio-92, que se passavam justamente em Nova York. Para dar início a essas negociações, creio que ainda em 1991, fomos juntos, o Embaixador Ronaldo Sardenberg, chefe da Missão do Brasil junto às Nações Unidas em Nova York, e eu, a uma reunião consultiva dos chefes das principais delegações com o Secretário Geral da Conferência, o canadense Maurice Strong e o Presidente do Comitê Preparatório. Ronaldo não disse palavra, quem falou pela nossa delegação fui eu. Passei meses à frente de nossa delegação, sem a presença ativa de colegas lotados em Nova York. Evidente que tal não teria acontecido se eu não contasse com total apoio e confiança do nosso embaixador Ronaldo Sardenberg.
Bem, talvez outro motivo para a Missão manter-se à margem, no nível das negociações substantivas, do processo s preparatório da Rio-92, ainda que prestando sempre inestimável apoio às nossas delegações, decorrerá da percepção de que a temática ambiental era desprezível.
O tema do meio ambiente, com efeito, era, ainda nessa época, visto com desconfiança. Teria sido incluído na agenda multilateral por pressão e interesse dos países desenvolvidos, com o objetivo de «desviar» a atenção da comunidade internacional de questões maiores, ligadas ao desenvolvimento econômico e social dos países em desenvolvimento.
A questão ambiental era identificada como uma simples questão ecológica. Além do mais, estava instrumentada de uma linguagem altamente complexa, e de conceitos forâneos aos veios tradicionais da linguagem diplomática. Testemunhei sinal sintomático desse equívoco de percepção quando finalizamos, depois de muitas sessões noite adentro na sede ONU, o projeto de «Declaração do Rio de Janeiro», a ser submetido e assinado pelos Chefes de Estado e de delegações na Rio-92.
Trata-se de documento de princípios, na quase totalidade, se não por completo, voltados para a área de desenvolvimento econômico, com o endosso para uma série de reivindicações e proposições ( tais como: direito ao desenvolvimento; responsabilidades comuns mas diferenciadas; eliminação de barreiras não tarifárias; acesso, sem discriminação, de bens e produtos dos países em desenvolvimento aos mercados de países desenvolvidos; soberania sobre recursos naturais; acesso à tecnologia; respeito aos direitos e conhecimentos tradicionais dos povos indígenas; financiamento ao desenvolvimento e acesso a recursos financeiros para financiamento ao desenvolvimento sustentável; responsabilidade histórica dos países desenvolvidos na questão ambiental, etc.) de interesse dos países em desenvolvimento, a maioria ainda objeto de debate e sem consenso em diversos foros onde se negociavam esses temas ligados ao comércio intrenacional e ao desenvolvimento, como UNCTAD, a Rodada Uruguai, em pleno curso, inclusive na própria Assembléia Geral da ONU.
Finalizado e acordado o projeto da »Declaração do Rio de Janeiro», vim à Missão junto à ONU para transmitir o texto final para a Secretaria de Estado. Quando o mostrei aos colegas, inclusive ao Embaixador Sardenberg e ao Embaixador Alterno, Luís Augusto Araújo Castro, bem como ao Ministro Conselheiro Adhemar Bahadian, todos se espantaram de ver consignada nesse documento, que acreditavam contendo uma série de princípios ambientais, no sentido ecológico do termo, uma abrangente declaração de princípios de natureza política e sobretudo econômica, absolutamente dentro da perspectiva de interesses defendidos pelos países em desenvolvimento.
«Mas, isso não é meio ambiente!», um deles, creio que o Luís Augusto, não se contendo, chegou a declarar. Era a percepção ainda preponderante no Itamaraty, inclusive nos diversos departamentos ligados à diplomacia multilateral, em quaisquer das áreas, política, econômica , comercial , cultural e de cooperação, onde o tema do meio ambiente ainda era visto com desconfiança.
Parecia ter havido um esquecimento quase que absoluto a respeito da I Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, havida em Estocolmo, em 1972. Verdade que lá, o conceito que informava os debates era o da «poluição», conceito algo primário no tratamento da questão ambiental—na verdade, apenas um de seus efeitos, e nem de longe o mais importante–, e praticamente ausente na Conferência do Rio, 20 anos depois. Com efeito, os conceitos ligados ao meio ambiente evoluíram muito desde 1972, e depois do Rio de Janeiro, ainda muito mais. Estocolmo não debateu mudança do clima, biodiversidade, camada de ozônio, responsabilidades comuns porém diferenciadas, responsabilidades históricas. E a destruição das florestas equatoriais e tropicais apenas começava a ser notada. Mas, Estocolmo debateu originalmente o conceito de desenvolvimento sustentável, dando as bases que informaram o famoso «Relatório Bruntland» sobre a matéria, impondo-se finalmente na Rio-92 como sua principal conclusão.
A pergunta se impõe: porque, nessas condições, terá o Brasil oferecido sediar a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992? As queimadas e o desmatamento na Amazônia, objeto de críticas intensas na midia internacional (não são de hoje), terão tido um papel significativo. Mostrar de perto a transparência com que o tema era debatido e tratado pelo Brasil ( que se fez, e agora se evita, o que dá mostras do autoritarismo que nos assola hoje)) vinha ao encontro das tendências de abertura num quadro político recém democratizado.
Tanto o Presidente Sarney como o Presidente Collor tomaram, no plano externo, medidas relevantes. Sarney, com a citada aproximação com os demais países da América do Sul, e com o lançamento das bases do MERCOSUL, junto com o presidente argentino Alfonsín; Collor, com significativa abertura comercial , os entendimentos com a Argentina na área nuclear e a adoção de uma política ambiental mais consolidada. De comum, o interesse em buscar maior integração do Brasil no contexto internacional, depois das décadas de isolamento do regime militar.
Em todo esse contexto negociador preparatório da Rio-92, onde as convenções citadas foram abertas à assinatura pelos mais de cem Chefes de Estado e de Governo participantes, pude contar com as instruções extraordinárias da Secretaria de Estado, de responsabilidade de Filipe de Macedo-Soares na chefia da Divisão do Meio Ambiente, bem como da liberdade e da plena confiança que me estendeu o Embaixador Rubens Ricupero, meu chefe direto em Genebra. Essa convivência estreita com Luís Filipe durante o intenso trabalho negociador na questão ambiental reforçou muito nossa amizade, forjada na primeira relação de trabalho, quando me convidou para a sub-chefia da Divisão do Mar, da Antártida e do Espaço (DMAE), outra «poderosa» divisão, que chefiava quando o Brasil instalou a estação permanente na Antártida, em 1983/84.
Tive dois grandes mestres em negociação multilateral: o Embaixador Miguel Osório de Almeida, que mencionei mais no início dessas «Vivências»; e o meu amigo Filipe, Embaixador Luís Filipe de Macedo–Soares. Quando fui designado para meu último posto, antes da aposentadoria, como Embaixador Representante Permanente do Brasil junto à Conferência do Desarmamento-CD, em Genebra (2014-2016), Filipe, que anos antes já havia também ocupado essa função, telefonou-me. Deu-me os parabéns pelo posto, e recomendou a cozinheira da Residência da nossa Missão junto à CD, que ele havia amparado e de quem havia cuidado, a Maria. Ao cumprimentar-me, Filipe foi efusivo ao tecer as mais altas distinções ao trabalho na área do desarmamento e da CD, opinando que ali, na CD, se tratava de temas da mais alta relevância mundial, e no mais alto nível de articulação negociadora, «uma área de relevância ainda muito maior que a do meio ambiente». Disse isso num tom de voz que me fazia supor que o que dizia era quase uma incongruência, pois sei que para ele as negociações na área ambiental foram e são da mais alta relevância na diplomacia multilateral. Filipe sempre teve pela CD e pela área do desarmamento no plano multilateral a maior admiração e o maior respeito.
Tomei a liberdade de inserir, talvez fora de ordem, essas referências às negociações multilaterais sobre meio ambiente, e minha participação nas mesmas, em função do contexto das experiências que tive, de poder tomar iniciativas e de negociar com liberdade responsável, sempre com a confiança dos chefes. De mais a mais, como é óbvio, a Amazônia estará centralmente vinculada a praticamente todos os temas da agenda multilateral do meio ambiente.
Voltemos à região amazônica, pois.
Com a boa recepção à proposta pela chefia, em especial do Secretário Geral, Embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, parti logo para o trabalho de campo com o projeto Tabatinga-Letícia[2], devidamente articulado, no Brasil, com o governo do Estado do Amazonas, o Ministério (então) do Interior, e por via diplomática com a chancelaria colombiana. Cabe reconhecer, ademais, que a decisão de tratar a América do Sul como uma área prioritária, opção tradicional e lógica de nossa diplomacia, não tinha efetiva correspondência na densidade ainda relativamente limitada das linhas de cooperação e de comércio em toda a região—o processo de integração no Cone Sul, com a Argentina, ensaiava os primeiros e importantes passos em direção ao MERCOSUL e aos entendimentos, igualmente importantes, Sarney-Alfonsín, para a cooperação na área nuclear, com a eliminação das rivalidades e dos programas paralelos e com tecnologias distintas para o desenvolvimento da energia nuclear para fins pacífcos. Nesse contexto, os projetos de cooperação em áreas de fronteira terão sido bem vindos para ajudar a «tornar mais densas» as agendas substantivas dos encontros de chanceleres e presidenciais. Com o Peru, por exemplo, lembro-me bem da satisfação do Paulo Tarso, ao presidir uma reunião interministerial na Secretaria Geral, preparatória das visitas do chanceler Sodré e em seguida do próprio presidente Sarney ao país vizinho, em poder relatar os nossos entendimentos recentes, com a parte peruana acerca do projeto de cooperação fronteiriça Brasil-Peru, na região de Iñapari-Assis Brasil.
Tendo chefiado a delegação brasileira, integrada por diplomatas e técnicos de algumas áreas do governo, às reuniões em Lima, havia proposto, com aceitação pelo lado peruano, que o encontro de cúpula, «cimeira» como se costumava dizer, entre os presidentes Sarney e Alan García, já pré-agendado, se desse não em Lima, mas na região de fronteira. Foi uma dupla cimeira: do lado brasileiro, em Rio Branco, no Acre, em dia a meio da ocorrência do fenômeno da «friagem», quando os ventos frios do sul conseguem furar o bloqueio da umidade na Amazônia oriental, fazendo com que os termômetros baixem repentinamente; e, do lado peruano, no dia seguinte, em Puerto Maldonado, capital da província Madre de Diós, a mais pobre do Peru, por acaso terra de Alan García, recebido em grande ovação da população da região, e já onde o forte calor fazia contraste com as delícias do raro frio acreano. Dentre os protocolos então firmados, estava o da construção da ponte transfronteiriça entre Iñapari e Assis Brasil, concretizada há alguns anos, e concebida não só como ligação regional, mas como integrante do «corredor Atlântico-Pacífico», já pensado para o escoamento de produtos agrícolas brasileiros em direção ao mercado asiático. Devo admitir que se «pensava grande» por esses tempos. E não fica por aí: recorde-se o visionário projeto peruano, a chamada «Carretera Marginal de la Selva». Ainda na fase de ideia, contemplava a construção de uma estrada de rodagem de norte a sul da América do Sul, e que apenas ladeava o território brasileiro, sem nele entrar. Seria algo como que perpendicular ao traçado de outro projeto visionário, do feitura brasileira, a «Transamazônica», já sendo implantado, à maneira «Brasil Grande» do regime militar (graças aos abundantes petrodólares que fizeram a graça do então ministro todo poderoso da Fazenda, Delfim Neto, e, com o aumento exponencial de nossa dívida externa, a desgraça de nossas finanças), fazendo então a ponte referida a ligação entre os dois projetos, ainda que nenhum desses projetos a tivesse contemplado.
Digo-lhe, Vidraça, que não é um conceito de fácil aceitação, o de tratar as regiões fronteiriças como tal, isto é, como região comum aos dois (ou mais) lados, uma zona comum, própria à integração, respeitadas as soberanias respectivas dos países limítrofes, e não apenas como linhas de limites que separam e afastam. É certo que esse conceito já é praticado há muitas décadas, no contexto da Comunidade Econômica Européia, bem antes da União Europeia e do Tratado de Schengen , que eliminou as barreiras fronteiriças dentro da UE. A dinâmica sócio-econômica e política criada no desenvolvimento desse conceito é extraordinária. Basta ver o nível de interação e de integração em regiões tais como as fronteiras entre França e Alemanha, França e Espanha, o Benelux, da Suíça com os países circunvizinhos, as fronteiras entre os países nórdicos. Ou também as regiões de fronteira entre os EUA e o Canadá, e pasme: entre os EUA e o México! Sim, os entendimentos e a integração de várias regiões fronteiriças entre o México e os EUA são marcantes, fato pouco conhecido, e ofuscado, claro, pelos fenômenos que comumente se identificam com as realidades fronteirças: contrabando, imigração ilegal, tráfico de drogas, violência, clandestinidade, barreiras de toda ordem, muros. Obviamente, esse conceito de espaço fronteiriço transcende o conceito de linha de limites fronteiriços, com o qual a maioria das pessoas e, infelizmente, o grosso dos diplomatas brasileiros, se identifica. Mas, sem desrespeitá-lo. Ao contrário, o pressuposto desse conceito de espaço fronteiriço é justamente a linha dos limites, que define legalmente a soberania de cada Estado de cada lado dessa linha. Não se quer nem se pode, nem se deve, obviamente, extinguir a linha dos limites, e sim valorizar os espaços que essa linha entrecorta. Tanto a linha de limites, como os espaços vizinhos definem esse espaço fronteiriço, dentro do conceito maior de vizinhança. Somente isso, nada mais. O Barão do Rio Branco, com toda a justiça, é venerado no Itamaraty e no Brasil como o grande negociador das fronteiras (limites) do Brasil, vencendo no mérito, pela arbitragem e de forma pacífica, praticamente todas as questões de fronteira herdadas da época colonial. Tem todo o nosso reconhecimento por deixar estabelecidas as nossas fronteiras (limites) terrestres, definido os contornos do espaço nacional brasileiro, tal como o conhecemos hoje. E tudo sem disparar um tiro, sem entrar em conflitos. Foi um grande diplomata e um grande brasileiro .É, por todos os méritos, e por todas as honras nossas, o Patrono da diplomacia brasileira.
Foi, entretanto, um profissional de seu tempo, por mais que digam que sintetizou, com sua política externa clarividente—leia-se: pró norte-americana, o passado monárquico do Brasil com o seu futuro republicano. Falamos do início do Século XX, e as questões que se colocavam para um diplomata com a extraordinária visão do Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores do Brasil, à época, tinham na definição dos limites fronteiriços do Brasil um de seus pontos cardeais. Com efeito, o Barão do Rio Branco, ao assumir no Governo Rodrigues Alves, se propôs a missão de resolver diplomaticamente a serie de diferendos –alguns conflituosos, como o caso do Acre—que ainda deixavam pendentes de definição com os países vizinhos os limites em áreas e regiões significativas.
Passado mais de século,, e já resolvida a questão dos limites, o tema das fronteiras necessariamente assume perspectivas distintas, entre elas a dos espaços fronteiriços. Os movimentos de integração na Europa e em outras regiões, inclusive na América do Norte, com o NAFTA, e na América do Sul, com o MERCOSUL, no Cone Sul da África e na Ásia, com a ASEAN, são propositivos da abertura das fronteiras, o que não tem nada que ver com a linha dos limites, que, no caso do Brasil e de boa parte do mundo, está acordada e consolidada. Há ainda muitos países com diferendos de fronteira, pensemos na China, com Hong Kong e Taiwan, Israel, a índia e Paquistão com o Cashemir, a penísnula das Coreias, Rússia e Ucrânia com a Crimeia, diversos diferendos entre países africanos, a diversidade é grande. Mesmo na América do Sul, nem todos os limites estão resolvidos, há pendências que resistem, o Essequibo, por exemplo, entre a Venezuela e a Guiana (antiga Guiana Inglesa).
Há que ver também que, nessa evolução do conceito de fronteira, no qual não se toca na sacralidade da linha fronteiriça, nos limites, persiste, cada dia mais forte, o contra senso da construção física de barreiras, muros, por sobre a linha de limites, em decorrência de políticas ultra nacionalistas. Trata-se de ações anacrônicas, justamente por tentarem impedir os movimentos transfronteiriços, migratórios ou de outra natureza, hoje parte inerente da convivência internacional e dos esforços de integração por parte de cada país no quadro das nações. Note-se que essa ação anacrônica pouco ou nada tem que ver com as legítimas preocupações de segurança de cada país, uma vez que já existem os mecanismos adequados de controle de movimentos transfronteiriços ilegais tradicionais (contrabando, tráfico de drogas, imigração ilegal, etc). O problema é que as questões de segurança, e outras, como as ambientais, ou do fluxo de informações, extravasam as fronteiras, vistas sob o ângulo estrito de limites.
O CALDEIRÃO AMAZÔNICO: NEGOCIAÇÃO OU CANHÃO
Hoje, como aconteceu na década de 1980, debate-se o desmatamento e as queimadas na Amazônia como uma questão global (entre tantas outras, como os direitos humanos, os recursos hídricos, o combate à fome, o direito à saúde, as diversas formas de emergia, o acesso à educação, as migrações, etc), que extravasam os limites fronteiriços. No caso do desmatamento (deforestation) e das queimadas, vale dizer que são duas questões distintas. Em nível das mudanças climáticas, ou seja, dos gazes que produzem o chamado «efeito estufa», o que contam são as queimadas, pois destroem o carbono das árvores e o transformam em CO e CO2. O desmatamento, em si, visto nesse nível das alterações climáticas, é neutro, por deixar estocado—sim, estocado, valha-nos a Dilma!– o carbono na forma de madeira, desde que essa madeira estocada—na forma de móveis, por exemplo–não seja queimada. Será o desmatamento até mesmo positivo, na medida em que dará lugar a novas plantações, com a consequente fixação de carbono adicional. Há também mitos que convém desfazer, a respeito do desmatamento na Amazônia: é simplesmente falso e irresponsável, ainda que compreensível, dizer que a amazônia, como bioma, responde por 20% da produção líquida de oxigénio no mundo. Falso, porque a floresta amazônica , em idade chamada de «adulta», ou seja , não está em formação, e tampouco em decomposição, encontra-se «em equilíbrio»: consome todo o oxigênio que produz, nem mais nem menos. Caso a Amazônia tivesse, e felizmente que não tem, uma grande cobertura de grama, seria então uma grande produtora de oxigênio líquido para o resto do planeta. Na verdade, os oceanos detêm esse mérito.
Já as queimadas, estas com certeza, são grandes vilãs no que toca às alterações climáticas, pois produzem gazes do efeito estufa. Ainda mais se tiverem suas áreas originalmente florestais substituídas pela criação de gado, notório produtor, pelo estrume, de outro importante gaz do efeito estufa, talvez um dos mais nocivos, o metano, pois não se decompõe com facilidade. Note-se, porém, que a contribuição das queimadas da Amazônia para o efeito estufa, geralmente estimada em torno de 6%, fica muito abaixo de outros vilões: carvão mineral e petróleo, quanto mais não fora, por serem recursos energéticos não renováveis. A queima de carvão mineral e do petróleo são, em série histórica, e em dimensão absoluta, os grandes responsáveis pelos atuais níveis de mudança climática, de origem antropogênica, no mundo, cabendo a principal responsabilidade aos países industrializados, pela histórica e contínua utilização irresponsável desses recursos.
Os conceitos de responsabilidade histórica,e o da responsabilidade comum (a todos) porém diferenciada ( para admitir quotas históricas e atuais entre os maiores emissores de gazes do efeito estufa) estão aceitos como princípios, entre outros—como o do desenvolvimento sustengtável—norteadores do tratamento da questão ambiental no nível internacional multilateral e também no nível interno de cada país. Para tanto serviram as múltiplas e intensas negociações internacionais havidas nas últimas décadas e que seguem seu curso.
Como referido mais acima, as queimadas na Amazônia não são um fato novo. São recorrentes, muitas vezes originadas de fenômenos naturais, como os raios. Têm ademais base em fatores sócio-culturais: por todo o Brasil, e outras partes do mundo, usam-se tradicionalmente as queimadas para preparar o solo para o plantio. Até hoje, no interior do Brasil, desenvolve-se um esforço constante das entidades responsáveis, governamentais ou não, para combater essa prática ainda comum na agricultura tradicional. O caso da Amazônia brasileira e nas grandes áreas adjacentes no Pantanal e no Cerrado, assim como nas áreas de savanas como em Roraima, as queimadas decorrem da expansão da «frontier», das frentes agrícolas e de cultivo de gado, em prefeita harmonia com os interesses madeireiros—nacionais e internacionais. Em diversas partes do mundo, passou-se algo semelhante, quem não se lembra, por exemplo, dos episódios de destruição ambiental e humana na «frontier» norte-americana, inclusive com direito a guerras? A Amazônia, entretanto, desperta, por diversos motivos, inclusive interesses econômicos internacionais, sensibilidade especial no plano global, e por certo o Brasil tem de levar em conta essa diversidade de interesses sobre a região. É clara a importância de negociar, de conversar. O próprio Barão do Rio Branco deu o exemplo, ao negociar com a Bolívia a aquisição do hoje estado do Acre, com o tratado de Petrópolis, de 1903. Região pertencente à Bolívia, estava em permanente estado de conflito com a invasão dos brasileiros que para lá haviam emigrado por conta dos seringais.
Bem, falávamos de que as queimadas e o desmatamento têm um histórico significativo na Amazônia, com grande potencial para a geração de conflitos. Isto, sem estímulo particular dos governos. Vai ver como fica com a ajuda de uma «mãozinha» do Planalto.
Particularmente desde a posse até no presente momento, em fins de agosto de 2019, o governo Bolsonaro, com a participação de seus ministros, inclusive o lamentável apoio de seu chanceler, Ernesto Araújo, tem deixado implícito, ou mais bem explícito, o estímulo a essas atividades, sob o manto duplo de incentivo à agroindústria (como a salvação da pátria) e de desmérito à questão ambiental (tratada como um obstáculo ao desenvolvimento e ao crescimento econômico). Ora, tais atitudes se chocam frontalmente com os princípios contemporâneos da convivência internacional, arduamente negociados pela comunidade de países, tanto nos diversos planos multilaterais como em planos regionais e mesmo internos. Tais princípios—que obviamente não se restringem apenas ao âmbito ambiental, mas também ao comercial, econômico, político (abrangência da democracia e dos direitos humanos, por exemplo)—pressupõem, na verdade exigem, dos governos nacionais uma atualização dos conceitos de fronteira, e que de forma alguma transgride o pleno respeito às soberanias nacionais. Ao contrário.
É apenas uma mudança de paradigma. O efeito estufa não conhece as fronteiras (limites) nacionais, claro. Compreende-se que, desde o primeiro momento de sua posse, e da posse do seu chanceler, o governo Bolsonaro venha insistindo sobre a necessidade de combater o «globalismo», retomar o culto da soberania nacional nas suas formas tradicionais, renegando o multilateralismo, e adotando o nacionalismo histriónico decantado por Trump.
Somente conseguiremos fazer respeitar nossa soberania sobre o território nacional e sobre seus recursos se entendermos que estamos diante de um novo paradigma para as fronteiras. Já temos os nossos limites bem negociados e plenamente reconhecidos pelo direito internacional. Nossa soberania não está ameaçada em termos de limites. Ainda que eu dê plena razão a Bolsonaro com respeito a suas críticas quanto à delimitação de grandes áreas indígenas em regiões fronteiriças (Ianomami, com a Venezuela, Raposa do Sol, Venezuela e Guiana, por exemplo), que por vezes parecem acenar para uma negação dos limites para contemplar a «totalidade» das terras indígenas de um grupo específico.
O atual modismo de construção de muros (por Israel, EUA, países do leste europeu) visa especificamente o isolamento, como se fora possível, com a eliminação da permeabilidade dos espaços fronteiriços. Ignora-se, dessa forma, que os conceitos tradicionalmente ligados à noção de fronteira, na maioria sempre negativos, vinculados à defesa do território (proteção contra imigração ilegal, contrabando, tráfico de drogas, invasão militar ou de terras, etc), cedem algum espaço para as noções mais positivas de cooperação, integração, complementaridade urbana e social, interdependência e ativação econômica (por exemplo, o PIB da faixa fronteiriça que se estende por 150 km de cada um dos dois lados da fronteira entre os EUA e o México está entre os dez mais altos do mundo).
No contexto da diplomacia multilateral, celebram-se conferências internacionais, promovidas pelas Nações Unidas, sobre temas que implícita ou explicitamente requerem uma atualização da noção de fronteiras: energia, direitos humanos, comércio, meio ambiente. É falacioso por exemplo aceitar, a não ser por populismo político, que a diversidade biológica da nossa Amazônia, um bioma com uma área de cerca de 5 milhões de km2, dois terços do território nacional, possa ser protegida e defendida por soldados e armas tradicionais: trata-se de riqueza que pode ser transportada no bolso de um pesquisador estrangeiro, que a patentiza no exterior. A forma de defender nossa biodiversidade consiste em negociar tratados e convenções internacionais que protejam os direitos e a soberania sobre tais recursos bem como a regulamentação da sua exploração. Isto, para não mencionarmos a permeabilidade de fronteiras trazida pelas tecnologias da informação.
Vale o contraste: como disse, não é a primeira vez que as queimadas na Amazônia brasileira atingem o elevado nível de atenção e de críticas ao governo brasileiro que vemos hoje. Nas décadas de 1970 e de 1980, ocorreu situação semelhante—agravada, à época, pelos danos ambientais provocados pelo garimpo e a poluição dos rios amazônicos por mercúrio—as imagens de Serra Pelada eram muito vivas. Naquele período, entretanto, sobretudo no final da década de 1980, o Brasil já emergente dos longos anos do regime militar, o governo brasileiro optou pela iniciativa de sediar no Brasil a Conferência das Nações Unidas sobre Meio ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92. Em outras palavras, sendo, na ocasião, alvo de críticas massivas ao desmatamento e às queimadas na Amazônia, os governos Sarney e depois Collor optaram, com evidente acerto político, por abrir as portas do Brasil e do diálogo à comunidade internacional. A Rio-92, com a presença de mais de 100 Chefes de Estado e de Governo, e milhares de ONGse outros representantes da sociedade civil interna e internacional, teve pleno êxito, consolidou-se ali o conceito de desenvolvimento sustentável, foi aprovada a Agenda XXI, um receituário para o desenvolvimento que gradualmente passou a ser incorporado às agendas nacionais, inclusive a do Brasil. O Brasil, em seguida, adotou diversas políticas de gestão ambiental que, no caso da Amazônia, praticamente silenciaram as críticas internacionais.
Corta-se a cena. Entra o governo Bolsonaro, retornam as críticas sobre queimadas e desmatamento na Amazônia. O Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ameaça denunciar os Protocolos à Convenção Quadro sobre Mudança do Clima e mesmo retirar o Brasil da Convenção. Cancela o compromisso de sediar, no Brasil, a próxima Conferência das Partes dessa Convenção, alegando falta de recursos (!). Denuncia a Convenção sobre Migrações Internacionais, que o Brasil, no governo anterior, havia assinado. Bolsonaro e seu chanceler exaltam o «agronegócio» e a exploração dos recursos naturais na região amazônica, ao mesmo tempo em que o governo como um todo critica o desgoverno das gestões ambientais anteriores no país, e sugere a prática de políticas liberalizantes a respeito de fiscalização e controle ambiental. E, finalmente, Bolsonaro põe em dúvida as pesquisas de uma instituição da respeitabilidade do INPE, aliás apoiadas pela EMBRAPA (ninguém falou disso) cujos números sobre o desmatamento na Amazônia revelam um crescimento da atividade acima dos parâmetros de anos anteriores, e despede o seu diretor. Mais recentemente, e previsivelmente, continua atribuindo a ONGs ambientais e movimentos internacionais, e mesmo a governos estrangeiros, entre eles França e Bolívia, a culpa pela deterioração ambiental na região. Visivelmente acuado, não sabe que rumo tomar. Em reunião do gabinete de crise, diante da forte pressão internacional, decide mandar as Forças Armadas para o combate aos incêndios na Amazônia. Cinco milhões de km2! Acre declara estado de emergência. Macron, o presidente francês, acusa Bolsonaro de mentiroso e propõe, com apoio da Alemanha, seja a questão amazônica objeto de tratamento pelo G-7, que se reúne em Biarritz. TV Record, pró-Bolsonaro, censura matérias da imprensa nas suas transmissões internacionais. Enfim, o caos. Os danos virão depois. Os prejuízos que o Brasil incorrerá, função das bravatas, a maioria em termos chulos e de baixo calão, de Bolsonaro, não serão pequenos. Prejuízos para a imagem do Brasil, já tão vilipendiada pela corrupção, pelos desequilíbrios sociais que só aumentam; mas, sobretudo, prejuízos econômicos, no comércio exterior e em investimentos, e, o que é pior, em termos de respeitabilidade. Ora direis, soldados na Amazônia para combater incêndios? Em cinco milhões de km2?
No caso da Venezuela, os nossos militares ajudaram e impediram que o ministro Ernesto Araújo seguisse pelo caminho da provocação ditada pelos EUA, e que quase nos leva a um conflito armado com o país vizinho, na fronteira de Roraima. Com respeito às atuais críticas às queimadas e ao desmatamento, pouco podem fazer, por estarem ainda muito vinculados às noções tradicionais de defesa e de agressão. Pena que Bolsonaro não possa contar com a orientação que lhe seria devida pelo Itamaraty, de que o caminho para sairmos dessa caldeira quente está na negociação, não no canhão.
Claro também que há abusos: na ânsia de colocar o foco sobre a permeabilidade sobre as fronteiras tradicionais da temática contemporânea, muitos contemplam ideias que chegam à beira da ofensa, como o chamado «right to protect» («R2P»), no linguajar onusiano, e que escondem o perigo de intervenções sem a devida cobertura da Carta da ONU.
Convém reiterar: estamos diante de um novo paradigma no trato das questões de fronteira. É certo que, mais recentemente, com as ondas migratórias de zonas de conflito no Oriente Médio e da África para a Europa, concomitantes com—ou a justificarem—a eleição de líderes populistas e nacionalistas em diversas partes do mundo, as fronteiras ressurgem como um elemento de contenção e de separação, numa noção anacrônica, mais próxima daquela da fronteira como limite. Prevalece a visão simplista, dando origem a barreiras de toda ordem, construção proliferante de muros, e à adoção de leis e medidas protecionistas, não só no âmbito comercial, mas sobretudo de ordem político-social, dentro de um nacionalismo exacerbado, e que dá valor maior ao isolacionismo. Não é nada difícil prever que tais tendências se depararão com a ineficácia das ações correspondentes, na medida em que preferem ignorar as causas dos fenômenos a serem objeto de barreiras, e se concentram apenas em tratar os seus efeitos: o muro de Trump se erige contra a imigração ilegal, mas nada se faz para combater a fome e a pobreza que a gera. O mesmo se aplica aos movimentos emigratórios em massa do Oriente Médio e da África em direção à Europa. Ao contrário, os conflitos cada vez mais se acirram, e o subdesenvolvimento cada dia mais manifesto.
A diplomacia brasileira, nesse contexto, tem adotado uma atitude prática. Conceitualmente, não evoluiu, continua a aferrar-se aos princípios valorativos da fronteira tais como vistos à época do Barão do Rio Branco. Fronteira equivale a limites. Ponto. Não somente o Itamaraty tem predominantemente essa visão. Boa parte de nossa população, e de todo o estamento do poder público partilha da mesma.
Por força da Constituição e do papel ali atribuído às Forças Armadas na defesa de nossa soberania, é correto dizer que cabe às Forças Armadas defender nossas fronteiras (limites) contra invasores, contrabandistas, trafico de drogas, e por aí vai. Está correto, mas não é suficiente. Convenhamos que não é uma tarefa fácil proteger uma fronteira de mais de 24 mil km, 17 mil dos quais por terra, boa parte dela na Amazônia. Mas, não é necessário questionar essa postura, em primeiro lugar porque ela é natural: protegemos nossas propriedades, em muitos lugares—não em todos–, com cercas e muros, além dos títulos e registros apropriados. E em todos os sistemas políticos, considera-se dever do Estado a proteção policial ao cidadão. Por extensão, as fronteiras devem estar protegidas. E estão, em primeiro lugar, pelo Direito Internacional, bom não esquecer. E, sim, pelas Forças Armadas, mas acabo de dar alguns exemplos, como no que diz respeito à biodiversidade na Amazônia, da relativa limitação da proteção oferecida, mesmo teoricamente, por essa forma, às nossas fronteiras.
Pois bem, a política exterior do Brasil, ainda que conceitualmente não se refira a essa questão, na prática vinha trabalhando com uma visão atualizada do que significam as fronteiras. Por exemplo no MERCOSUL, cujo espaço, composto pelos quatro países originários (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) e mais cerca de uma dezena de países sul-americanos associados) está sendo articulado de forma bastante integrada, ou seja, as fronteiras, como limites, tendem a receber valor subsidiário, adicional, ligado à valorização das regiões fronteiriças. A ponto de virem as Forças Armadas do Brasil (o mesmo ocorrendo com os demais países vizinhos) a deslocarem para outras regiões o grosso de suas bases e instalações tradicionalmente sediadas em espaços ao longo dos limites do Brasil justamente com os países vizinhos do MERCOSUL, no Cone Sul. No MERCOSUL, se a movimentação de bens e serviços não é ainda totalmente livre, como na União Européia, é bastante fluido e livre o movimento de pessoas. O que ocorre ali, no nosso Cone Sul da América do Sul é de fato a prática de uma nova visão da fronteira, de acordo com a qual a defesa (das fronteiras e da nação) se faz por meio da integração (o que chamo de defesa «ex post»), e não mais pelo posicionamento de canhões dos dois lados (o que chamo de defesa «ex ante». Alerto, contudo, que esse conceito de defesa não está na linguagem oficial do governo brasileiro nem de qualquer dos demais países do MERCOSUL. A minha tese no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco, em 1991, é um ensaio em defesa dessa nova visão de fronteira, que apliquei no contexto da Amazônia. Quando a expus, perante a banca, o embaixador Celso Amorim, à época chefe do Departamento Econômico do Itamaraty, e membro da banca, estranhou essas posturas, e tempos depois chegou a qualificar-me como «bom diplomata, mas visionário».
Salvaram-me na aprovação da tese o colega Gelson Fonseca, e sobretudo a Professora Maria Regina Soares de Lima, ambos de perfil intelectual mais aberto a esse tipo de desafio. Ao final a tese foi aprovada por todos, e em seguida publicada. Vale assinalar que as minhas digressões sobre a ideia da fronteira como espaço e não apenas como linha de limites foram geradas concomitantemente com meu trabalho na Divisão da América Meridional II, hoje elevada ao nível de departamento, com início justamente no caso que relato presentemente, do projeto de cooperação entre as comunidades vizinhas na Amazónia Ocidental, centrado de momento nas cidades de Tabatinga, do lado brasileiro, e Letícia, do lado colombiano.
Falávamos do ambiente fronteiriço Brasil-Colômbia, uma região esquecida, de beleza úmida e forte, que se abre à imensidão do Rio Amazonas, lá ainda chamado de Solimões.
Dia feriado no Peru, data em que se celebra a independência, 28 de Julho. Defronte quase a Tabatinga, uns quilômetros rio acima, vamos, as delegações do Brasil e da Colômbia ao posto peruano na fronteira tríplice, em visita de cordialidade pela data nacional. Chegamos, ao sol do meio dia, de voadeira, a tempo de participarmos das singelas cerimônias relativas ao dia, com hasteamento da bandeira.
Fomos recebidos de braços abertos pela guarnição peruana naquela tosca cabana a beira rio, com ceviche ( de peixe amazônico, claro) e pisco. Mais sanduíches de pernil de porco bem apimentados, típicos, estes sim, da região serrana. Um deleite em plena floresta. E um deleite em pleno rio, pois navegar pelas águas sempre cheias de mistério do Javari e do Solimões é, repito, uma das mais extraordinárias experiências. Perigosa, basta cair um pouquinho a tarde, e não se vêem por exemplo as terras flutuantes, verdadeiros «terrabergs», barrancos por vezes enormes, arrancados das margens pela força das águas, capazes de jogar os navegantes na corrente da água imensa, viagem sem retorno. Não aconteceu conosco, felizmente, os mestres das voadeiras eram bons pilotos. De volta a Tabatinga, outro cuidado ao desembarcar: as cobras, que não se vêem no luscofusco do entardecer. Passamos por esses obstáculos, também. E aí, antes de entrarmos nos temas propriamente ditos da nossa reunião bilateral, outra confissão importante, Vidraça: comi, ao jantar, num restaurante de fundo de quintal em Tabatinga, os melhores escalopinhos de vitela ao limão de minha vida. Inacreditável encontrar tal delicadeza numa comunidade em plena selva nos confins da Amazônia?
Tivemos uma significativa conferência bilateral em Letícia, no nosso nível operacional, mas com grande pompa e circunstância. Os colombianos, mais que nós, temo, valorizam suas regiões de fronteira na Amazônia, seja com o Equador, ou com a Venezuela, neste último caso com uma interação transfronteiriça muito densa, na região da comunidade de San António. Presenciamos a dinâmica transfronteiriça nessa área nos tempos atuais, com a desestruturaçãio política e social na Venezuela, função da ditadura Maduro, e os consequentes movimentos emigratórios de venezuelanos para a Colômbia, o mesmo acontecendo, em muito menor escala, mas nem por isso de forma insignificativa, para o Brasil, na região de Santa Elena de Uairém.
No caso da fronteira colombiana com o Brasil, existe um grande vazio ocupacional, exceto nas regiões vizinhas às cidades de Tabatinga, pelo Brasil, e Letícia, do lado colombiano. Ambas as cidades constituem pontos isolados em seus respectivos territórios nacioanais. A brasilera Tabatinga, talvez um pouco menos isolada, está ajacente a outro município importante, Benjamin Constant, e tem vida comercial intenda. Fornece combustíveis a Letícia, produtos alimentícios e industriais, que lhe chegam tanto por via do rio Solimões, como por voos regulares, civis e militares brasileiros. Letícia, por seu lado, é uma cidade graciosa, bem urbanizada, espelha a cultura eurocêntrica de Bogotá, mas suas termelétricas são alimentadas por diesel fornecido por Tabatinga. Muitos brasileiros de Tabatinga tratam-se no hospital de Letícia e as escolas intercambiam alunos. As duas cidades são divididas por uma rua, ou seja, como em muitas outras comunidades fronteiriças, Uruguaiana, por exemplo, na nossa fronteira com o Uruguai, se transita livremente de uma para a outra, de um país para o outro.
Nosso projeto de cooperação fronteiriça foi aprovado na reunião, da qual participaram delegações rerpesentativas das diversas áreas de cooperação, de ambos lados. Em outras palavras, as diversas interações acima mencionadas, em áreas como saúde, educação, transportes, meio ambiente, comércio, energia, etc, passaram a receber tratamento mais articulado, nos níveis municipal, e federal (no caso de Tabatinga, tendo Letícia status especial na Colômbia).
Projetos semelhantes foram desenvolvidos com os demais países amazônicos, inclusive com as Guianas, a notar , em muitos casos, literalmente, a construção de pontes, como sobre o rio Oiapoque, com a Guiana francesa, ou a ponte sobre o rio Tucuruvi, para acessar o território da Guiana (ex inglesa), ou ainda a já mencionada ponte Iñapari-Assis Brasil, entre os estados de Madre de Diós e o Acre. Na realidade, essas iniciativas ocorriam e ocorrem no conjunto das fronteiras do Brasil com os demais vizinhos sul-americanos. Estão muito mais adiantados, evidentemente, no sul do continente, sendo o MERCOSUL forte catalizador dos mesmos, função da dinamização do comércio e dos movimentos fronteiriços intrarregionais, projetando a vocação de integração de toda a região do Cone Sul.
A escala relativamente modesta desses projetos de cooperação em áreas de fronteira pode ser enganosa, na medida em que, gradualmente, tais iniciativas tendem a integra-se em projetos mais ambiciosos, de desenvolvimento regional ou congêneres. Sua importância, contudo, advém do elemento essencial que os caracteriza, o fato de necessariamente envolverem pelo menos dois países, os países vizinhos. Temos alguns casos de cooperação tríplice: o mais conhecido sendo o da fronteira tríplice entre Argentina, Brasil e Paraguai, mas citemos Cobija, na fronteira tríplice entre Bolívia, Brasil e Peru. Tampouco estamos longe da fronteira tríplice com o Peru e a Colômbia, em Tabatinga. Ademais, há que considerar o efeito positivo sobre a imagem da região sul-americana a partir do exemplo que damos ao resto do mundo, de buscarmos, sempre de forma pacífica, estabelecer nossos limites, como o fez no passado o Barão do Rio Branco, e mais nos tempos atuais com uma visão pacífica e de integração e cooperação nas fronteiras, regiões historicamente mais vocacionadas para os conflitos em muitas outras partes do mundo. Resulta por demais anacrônica, assim, a política de fechamento de fronteiras, tal como a vemos adotada por diversos países, EUA, Israel, alguns países da Europa Oriental. Resultam igualmente anacrônicas, ademais de econômica e politicamente irracionais, iniciativas de governos centrais, que visam a estimular o desenvolvimento regional, adotadas sem a articulação pertinente com os países vizinhos, sempre que se projetarem sobre áreas ou regiões fronteirças. Citaria dois casos sintomáticos: o primeiro foi, claro, o projeto da hidroelétrica de Itaipu, que nos custou sérias desavenças com a Argentina, justo por não aceitarmos o conceito, inquestionável do ponto de vista do direito internacional, da famosa «consulta prévia». Outro foi o do projeto—militar—do Exército brasileiiro, iniciado nos anos finais da década de 1980, chamado «Calha Norte», que consistiu no estacionamento de guarnições militares brasileiras ao longo da fronteira norte na Amazônia, gerando desconfianças desnecessárias nos países vizinhos. De outra natureza, no sul do Brasil, a respeito dos chamados «corredores Atlâmtico-Pacífico», para o escoamento de produtos brasileiros, notadamente agrícolas, para os mercados asiáticos: a visão desses «corredores» que prevalecia entre nossos governantes, e mesmo entre os técnicos, era a de vê-los apenas em seus pontos de início—onde começavam–, e de término—o porto a ser definido do lado do Pacífico. Entre os dois pontos, um suposto vácuo, pois aparentemente, não se consideravam as regiões por onde passariam esses tais «corredores». Esqueciam-se provavelmente de que, sem o devido desenvolvimento das regiões por onde passariam essas rotas, o «corredor» teria pouca viabilidade. Jaime Lerner, então prefeito de Curitiba, arquiteto e urbanista, teve dúvidas em responder-me, quando levantei essa questão com ele numa reunião onde essa autoridade política, mas também autoridade por seus reconhecidos méritos técnicos, fazia uma explanação sobre a conveniência desses projetos, entendidos por ele somente como de ponto de origem a ponto de destino. Mas, admito que esses conceitos, ligados à visão de fronteira como uma região passível de cooperação entre vizinhos, não sejam de fácil assimilação. Ainda hoje. Mesmo diante da experiência da União Européia, do MERCOSUL, e de outros entendimentos de integração regional bem sucedidos mundo afora.
Triste ver, nesse contexto, as linhas de política externa para a região praticadas pela atual chancelaria brasileira, de críticas aos processos de integração, erroneamente confundidos com ações e movimentos socialistas partidaristas; e que, no caso da Venezuela, por pouco não nos levou, ao Brasil, não fora o bom senso de nossos militares, a um conflito armado com o país vizinho, em decorrência de desacertos provocados na fronteira de Roraima pelo chanceler brasileiro Ernesto Araújo, ao tentar espelhar, toscamente, as ações autoritárias do presidente norte-americano Trump contra a ditadura de Maduro. Justo numa região fronteiriça, a de Santa Elena de Uairém, onde o potencial de cooperação e de integração é extraordinário: ali, o Brasil vende enorme quantidade de produtos industriais e manufaturados, especialmente máquinas agrícolas e produtos alimentícios, para as comunidades venezuelanas da região; e recebe, da Venezuela, a energia para Roraima. Independentemente da integração energética de Roraima ao sistema brasileiro, já projetada e quando vier, resulta incompreensível, mesmo na atual conjuntura política desastrosa na Venezuela, ignorar o potencial de integração econômica e social na região, entre dois países vizinhos, ambos demasiadamente importantes para se darem ao luxo de valorizar apenas a separação, a linha de limites, em detrimento da cooperação e da integração.
Continuamos, no entanto, a trabalhar com a visão
unidimensional desse mundo amazônico.
Pois a Amazônia é um mundo à parte, altamente complexo, ao mesmo tempo
integrado no resto do mundo pelo clima, pelos recursos naturais ali explorados
nem sempre de forma sustentável e pelo desrespeito à soberania de cada um dos
nove países sul.americanos que a compõem. A Amazônia será sempre maior do que
todos os projetos que ali se desenvolvem ou ali foram implantados, se sempre
maior que o conjunto de políticas nacionais, como o Plano de Integração
Nacional-PIN do governo Médici (com seu «slogan», ao que parece sendo hoje
revivido, «integrar para não entregar») e as rodovias transamazônicas, dos anos
1970, ou internacionais—lembram da Fordlândia?, com que se pretende conhecê-la
e desenvolvê-la. É preciso aprender a Amazônia. E respeitar os que lá vivem.
Vale recordar um caso muito curioso e bastante emblemático de nossa ignorância
a respeito desse mundo: ainda como chefe da Divisão da América Meridional II, e
depois como chefe da Divisão do Meio Ambiente, nas minhas andanças de serviço
pela reião, participei certa vez, creio que em 1987, de reunião em Manaus com
os governadores dos estados do Amazonas e de Roraima, junto com vários técnicos, a propósito do traçado da
BR-174, projeto de rodovia federal que liga Manaus a Boa Vista, e de lá até Paracaima
(974 km.), na fronteira com a Venezuela. A rodovia, cuja construção havia sido
iniciada ainda em 1970, foi «concluída» várias vezes, primeiro em
terraplenagem, depois em asfalto precário (1998) que, como tantas outras
rodovias da Transamazônica, não resistiu ao tráfego pesado dos caminhões e às
chuvas intensas, se dissolveu, e finalmente asfaltada em 2013, A questão em
exame se referia à passagem da rodovia por extensa área, boa parte da qual no
estado do Amazonas e parte também em
Roraima, então ainda um Território, onde há uma grande reserva indígena,
Waimiri-Atroari. Aventurei-me, em meio à discussão que se instalara, a apoiar
um traçado mais longo para a rodovia, que contornasse a reserva indígena. Minha
alegação era de que seriam apenas algumas dezenas de quilômetros a mais. Interrompeu
subitamente a discussão o governador do Amazonas, Amazonino Mendes, se não me
engano, para comentar em tom enfático, dirigindo-se a mim, em resposta ao meu
aparte: na Amazônia, a unidade de mensuração das distâncias não é o quilômetro,
nem dezenas de quilômetros, e sim mil qulômetros. Aprenda isso! Enfiei minha viola no saco. Claro que a observação do governador,
corretíssima como conceito, embasava o ponto de vista por ele defendido, e que
de fato prevaleceu, de que o traçado da rodovia cruzasse a reserva dos
Waimiri-Atroari. A BR-174 efetivamente cruza a reserva indígena e tem, por
conta dessa passagem, um histórico tristemente negativo, em que consta
populações inteiras de indígenas dizimadas pela ocupação forçada por colonos,
madeireiras e mineradoras (Paranapanema), inclusive com apoio e ação armada do
Comando Militar da Amazônia, assim como pela indiscriminada contaminação dolosa
de indígenas, gerando epidemias, por diversos vírus, tais como sarampo.
[1] Termo de nossa hierarquia interna, mais precisamente Ministro de Segunda Classe, cargo seguinte ao de Conselheiro, e que precede ao de Embaixador, equivalente a Ministro de Primeira Classe.
[2] Originalmente denominado «Projeto de Cooperação Fronteiriça das Comunidades Vizinhas ao Eixo (geodésico) Tabatinga –Apaporis entre Brasil e Colombia»
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