Ensaios

REFEIÇÃO A SÓS: MUITO PRAZER (PARTE IX)-A MARMITA

A MARMITA

Ode à marmita! Ode à merendeira! A palavra «merendeira» sofreu muito, como termo, tragédia das tragédias, quando se atualizou por «lancheira». Não conheço objeto mais universalmente vinculado à refeição solitária do que a marmita.

Hoje em dia, então, com a humanidade atacada e ameaçada pela COVID-19, restaurantes fechados ou funcionando de modo precário, a marmita assume uma presença crescente, junto com a refeição a sós. Até mesmo para quem fica ou trabalha em casa. Claro, hoje, há a entrega a domicílio, a «delivery», e o «take away», termos que já estão quase apropriados pelo vernáculo. A marmita, porém, mantém-se, com sua sólida–e creio que crescente–freguesia.

Desde a preparação da comida, em casa, cedo ou de madrugada, pelo próprio ou pelo  ente querido, está ali uma tarefa solitária. Com o carinho que toda atitude solitária tem. O moleque de rua, se está sozinho quando chuta a lata velha de conserva, ou vazia de cerveja, deixada por algum incauto sem educação, ou quando chuta uma pedra no seu caminho, chuta com carinho. Basta estar em companhia, o chute pode assumir modos que vão do violento ao desprezo, passando em primeiro lugar pela funcionalidade: qual o motivo do chute, sua função, acertar alguém, dar vazão a um impulso infantil? Passando também pela inconsequência e pela gratuidade: o moleque só se dá conta do chute quando sente doer o dedão do pé que chutou. Agora, se está sozinho, pode acontecer tudo isso, pode doer o dedão, mais vai junto um gesto de carinho para com o objeto chutado. É como jogar futebol sozinho, jogar peteca sozinho. Golfe não vale, por ser jogo individual.

Não faço aqui a ode à individualidade «per se». Apenas busco ilustrar, no caso da marmita, o quão embrenhado está, o processo de sua preparação e uso, da individualidade característica de quem faz a refeição à sós.

E depois, convenhamos: trabalho pesado na construção, stressante no escritório, paradisíaco mas longo para o pescador, estafante para o taxista e para o professor, descuidado ou custoso para o estudante, poluidor para o lojista, absorvente para o pesquisador, para o escritor, e para o compositor, extenuante para o médico e o músico—depois de longas horas matinais em resumo trabalhosas, dá-se a hora do encontro entre a pessoa, quase sempre solitariamente, e sua marmita, preparada em casa de manhãzinha, ou pela madrugada friorenta, com tanto carinho, ainda que às pressas. Virá sempre à sua mente o ente querido. Pode ser até o cachorro ou o gato. Não importa.

A marmita tende a ser um agente catalisador de boas reações químicas para o comensal solitário. A comida da marmita pode não ser lá essas maravilhas, ainda que seja sempre aprazível, senão sempre gostosa. Junto com o arroz, e mais essa carne moída, a abóbora cozida e aquele resto da couve de ontem, essa farofa eleva esta refeição ao grau de acepipe digno dos deuses.

Vejam as conjecturas de meu amigo Zé Taboão: «Aprendi a comer quiabo com Maria José. Sempre tinha na marmita. Marmita é igual a comida caseira, nada igual, se vou a um restaurante. Fora o dinheirão da conta. Então, prefiro a marmita, que de resto, sem trocadilho, é de graça. Dois trocadilhos, comida engraçada, e pode ser feita de restos, dos restos de ontem, nossa, como come o meu amigo Cristófilo, que veio jantar em casa, algo contudo sobrou … Mas restos, com amor, igual a amor. Ponto. Já lá estou eu pensando em minha mulher. Maria José. Agora então, que voltou para casa, deixando o Vicente. Viveu com ele dez anos. Dez anos! Muito tempo, com certeza. Não mudou nada, mas parece outra mulher. E penso nela o tempo todo, quando dá tempo e quando não dá. Agora volta, feliz, como se nada tivesse acontecido, só que mais madura. Não que não gostasse dela antes, sempre a amei, senti muito sua saída e sua falta, Deus sabe como. Fazer o quê?

Pois voltou, foi uma alegria, fiquei feliz, nunca soube porque ela me deixou. Decidiu sair de casa, assim, sem mais. Por aventura, por canseira, sei lá. Nosso filho, Eustáquio, então com treze anos, foi viver com ela e o Vicente em Santos. Era melhor pra ele, pelo colégio. Em Itarém, onde foi nossa casinha, o colégio fica longe.  Eu, sozinho, sempre na estrada, levando carga por esse Brasil afora, não vou dar conta de acompanhar Eustáquio nos estudos, cuidar dele como devo e como ele merece. Continua merecendo! E pensar que está quase se formando bacharel em direito lá em Portugal, na Universidade de Coimbra! Graças ao Cristófilo, amigo dele, agora nosso amigo. Filósofo e tanto, ele, professor de literatura, africano, sofreu muito na terra onde nasceu, na Guiné, Guiné-Bissau, que já foi colônia de Portugal. Já me mostrou onde fica, mas não sei bem. Me aposento em breve, acabei ficando pelos lados da sede da nossa empresa, a TRANSSILVA, em Jacareí, ai perto de São José dos Campos. Quando Maria José retornou pra mim, achamos nova casa, um apartamento bem jeitoso, lá, em Jacareí. Temos tudo pertinho, supermercado, shopping. Voltamos a nos amar, nunca deixei de amá-la. Sei compreender o tempo que ficou fora, com o Vicente, bom sujeito, cuidou bem do Eustáquio. Amor maduro, mas intenso. Fizemos amor como adolescentes, muito carinho. E sei que ela sempre me amou. Aventuras acontecem. Ponto. Não sei porque fico sempre dizendo «ponto» ao final de uns dizeres meus mais pensados que outros. Acho que é porque já pensei muito no assunto e não carece matutar mais naquilo. Marmita vazia, hora da soneca, antes de voltar para a estrada.»

 Sábio, esse  Zé Taboão, pai do Eustáquio. Terá pensado tudo isso numa refeição solitária.

A MERENDEIRA

E a merendeira? Agora são as maletas de rodinhas, iguais às que levamos para bordo nos aviões». Sei disso porque meu neto Lucas, de oito anos recém feitos–falo de tempos pré-confinamentos– leva todo dia para o colégio, ele e todos os colegas, uma maleta dessas, muito mais pesada do que os portadores, graças aos céus que a maleta tem rodinhas. Tudo vai dentro, claro. Livros, cadernos, gorro de natação, kimono, estojo—ah, os estojos!, tablet e dois ou três jogos de dinossauros. Iria a merenda, não fosse ele almoçar na cantina. Penso ter visto ali também pequenos comensais solitários. Não muitos, mais ou menos na média dos restaurantes, cerca de dez a quinze por cento. Sentados às mesas com outros, mas visivelmente fazendo solitariamente a refeição. Ou seja, podemos estar sentados à mesa com outras pessoas e estar fazendo uma refeição solitária.Como vamos compreender isso?

 O tema da merendeira nos leva a tocar numa questão que me parece essencial, a relação entre o alimento, como objeto, e o ser. Não para filosofar. Inquirir sobre o ser e a coisa, isso fica para a filosofia, platônica, idealista, realista, objetiva, transcendente, etc. e tal. Aqui, interessa, buscar aproximações sobre as formas como o ser– humano, no caso–se coloca diante do objeto-alimento. Sem pretensões.

A temática da merendeira vem a calhar, pois enquadra nossa questão num ambiente temporal. Passado, presente, futuro. Mais ainda nos tempos pandêmicos que vivemos, onde o distanciamento e o confinamento são condições afins da refeição solitária.

Minha conjetura, a ser testada, por certo, é que quem faz a sós a refeição, à diferença da refeição gregária, tem condições de experimentar, à maneira einsteiniana, variações no referencial do tempo. Dito de forma simples: o tempo, para quem come a sós, pode variar muito, não sendo necessariamente o tempo do relógio. Pode até coincidir com esse tempo objetivo (dir-se-ia neste caso que, nas equações relativistas, a constante kapa seria igual à unidade, e retornaríamos ao mundo não-relativista newtoniano, sendo então o tempo de relógio igual ao tempo percebido pelo comensal solitário)[1].

Caso típico de quem faz às pressas a refeição à hora do almoço pensando no retorno ao escritório e no relógio—agora digital– de ponto. Mas eu diria que, mesmo neste caso, um tarimbado comensal solitário, consciente da condição, poderá experimentar variações sutis no referencial do tempo.

O que digo vale da mesma maneira para quem, estando à mesa com outras pessoas,  consegue, por um motivo ou outro, ou por ato voluntário, isolar-se mentalmente do resto do grupo. Às vezes por minutos ou mesmo por segundos, mas a experiência , o sentimento do tempo relativizado, estará ali. E com ela, os prazeres insuspeitos oferecidos pela viagem, ainda que rápida, ao tempo interior.

Um teste rápido pode ser feito logo por ocasião das esperas. Tempo de espera por uma mesa num restaurante. Há igualmente uma relativização do tempo na espera em seguida à tomada pelo garçon de sua «comanda», ou na espera pela atenção do garçon quando, tendo optado por vinho a copo, se quer pedir que lhe sirvam mais uma dose. A contrario sensu, percebe-se uma contração excerbada do tempo quando o servente se aproxima da mesa para retirar o prato servido e, ao menos em lugares civilizados, pergunta: «já terminou?», enquanto nos lugares menos considerados o mesmo atendente vem e retira incontinenti o seu prato, sem o diálogo de praxe, antes mesmo que o comensal tenha terminado as colheradas ou garfadas finais. E ainda por cima, para ad insult to injury, complementa o gesto inoportuno com a pergunta gentil, mas servilmente injuriosa, por precipitada: «espero que tenha gostado?».

É preciso notar que, em todos esses casos, e demais ocasiões semelhantes, que tendem a proliferar em restaurantes (mas também em recepções, coquetéis e outros comes e bebes), e que afetam particulamente , mas não só, a quem come solitariamente, se está diante de variações objetivas do tempo. Tais variações, contudo, se complementam, ou podem mesmo ser superadas, pelas variações subjetivas que parecem aplicar-se em particular como atributo próprio ao comensal solitário.

Sirvo-me novamente aqui do exemplo, citado mais acima, de Proust, em «A la Recherche du Temps Perdu»,  no volume «Du Côté de Chez Swann»[2]. E qual a referência, ou, para uma melhor compreensão, qual o referencial que utiliza? Uma simples, mas muito especial, «madeleine». O gosto desse acepipe abre-lhe as portas do tempo. Não só do tempo passado, a um nível microscópico de detalhes. Experimentamos sempre sensações, revelações semelhantes. Creio que podemos chamar a essas experiências de epifanias, à nossa maneira. E esse processo de revelações e de descobertas pode ser muito longo ou curtíssimo em nosso tempo interior, eis algo que não dominamos.

Carregamos conosco pela vida uma merendeira subjetiva, cheia de cheiros, odores, perfumes, gostos, de memórias e conhecimentos íntimos. De vez em quando ousamos abri-la, e que prazer! Especialmente quando o fazemos ao mastigarmos solitariamente, algo que já experimentamos com prazer no passado, a renovação do prazer já sentido, por vezes ligada a algum prazer oculto no espaço e no tempo—até mesmo o futuro: quem nunca teve aquela sensação do «já vi isso!», o «déjà vu», ao ver algo novo e buscar identificá-lo no seu inconsciente? Pois a memória gustativa, relativa ao passado, mas ao presente e (ousamos dizer, com base em nossas energias inexploradas), também ao futuro, expande sobremaneira essas prazerosas sensações individuais.


[1] Aqueles dentre os leitores com alguma familiaridade com as teorias de Einstein terão notado que, ao tratar do tempo relativo de quem come a sós, tomei emprestada, apenas para fins de ilustração, a equação que define tanto a constante kapa (k), que será igual à unidade se a velocidade de um corpo for normal, isto é, bem menor do que a da luz; como define igualmente a massa (m) de um corpo em movimento (m1), em relação à massa de um corpo em repouso (m0): k=1/raiz quadrada de (1-v2 sobre c2), sendo (c) a velocidade da luz; e: m1=m0/raiz quadrada de (1-v2 sobre c2).

[2] Vide p. 12 acima e notas (3) e (4)

2 Comments

  • Laila

    Lindo texto! Parabéns!
    A marmita faz parte, com muito orgulho, do meu dia a dia e de todas as minhas recordações de viagem!
    Sempre com muito amor envolvido!!
    Desde os lanches preparados de madrugada antes das viagens de carro (com toda a espectativa do momento em que iríamos comer!), passando pelas marmitas q vc preparou tantas vezes para nós (lilila e eu) até as que eu preparo hoje!
    Abrir a marmita é sempre o momento especial do dia!!!
    Muitos beijos!!!