Ensaios

COMER SOZINHO: MUITO PRAZER (Parte III)


Comer sozinho. Taí. Pronto, confesso. Tenho sido, ao longo da vida, um praticante dessa modalidade de alimentar-se. Não sempre, claro. Mas, quando como a sós, me identifico positivamente com a refeição solitária. Quando como sozinho, em casa ou fora, por prazer ou por precisão, gosto. Gosto, porque todos queremos sempre ter boas refeições, e a boa mesa oferece muito espaço para o comer a sós.

O conceito de comer sozinho extravasa, contudo, e como se pode esperar, limitações de natureza, digamos, sensorial. Senão, vejamos.

Recordemos, antes de mais nada, o Holocausto, o extermínio em massa de mais de seis milhões de judeus pela Alemanha nazista em campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Milhões de seres humanos famintos, deixados à fome, cadavéricos, covardemente assassinados por conta de uma ideologia tresloucada. Para sobreviver, e pelo–tempo que sobreviveram, ou que lhes foi permitido resistir, terão esses milhões de prisioneiros se alimentado de sonhos, os escritos e os seus testemunhos não deixam dúvidas quanto a isso. Alimentaram-se de sonhos, de forma solitária, ou de sonhos recíprocos.

O sonho terá sido para eles a última ceia, e muitos a terão feito em sonhos solitários, como aquele que faz a penitência no deserto. Podemos chamar a esse estado de espírito de oração: «O Pão Nosso de Cada Dia Nos Dai Hoje».

A oração muita vez se oferece como a refeição solitária, e a recíproca igualmente se valida: como iremos sugerir mais adiante, a refeição a sós sempre será um momento de prece, mesmo para agnósticos e ateus.

Todo ser humano, ao comer seja o que for, consciente ou inconscientemente se depara com a situação de fazer a refeição a sós ou em grupo, seja no deserto, no mar, nas tribos, nos centros urbanos ou nas aldeias, nos conventos e na trincheira, nas catacumbas dos cristãos romanos, na nave espacial ou nas tendas para desabrigados ou refugiados. Por certo, o que importa é o alimento, nessa hora não nos ocorre pensar se estamos sozinhos ou com companhia. De qualquer forma, sempre temos a companhia de Deus. E o Cristo, na Última Ceia, terá sido, vale repetir a indagação feita acima, terá sido um comensal solitário, Ele com Seus Apóstolos?

Eis que a condição solitária se nos surge de repente.
Muitos detestam, sequer admitem essa condição. O que proponho, nestes ensaios—ainda que em tom de confissão– sobre a teoria e a prática do comer a sós, é que o indivíduo, quando faz uma refeição a sós, e que esteja consciente de sua condição, pode ou costuma viver experiências únicas. Aquele que tem fome, quando alcança um alimento, tende a concentrar-se em saciar a fome, isola-se, pelo menos mentalmente, daqueles em sua volta, por um bom momento, solidão somente interrompida talvez pelo olhar de gratidão que o faminto dirige a quem lhe ajudou.

Da mesma forma, concentrar-se num belo prato, sentir plenamente o prazer do vinho, partilhar solitariamente os bons momentos de uma refeição com desconhecidos nas mesas próximas ou distantes, imaginar e construir sonhos e segredos. Sem os constrangimentos de participar de diálogos banais, ou mesmo enlevados, mas que deixam esfriar um langostino grelhado.

Sexta feira, 23 de Junho de 2017 .
Estou em casa, preparo o almoço. Comensal solitário. Minha mulher, dentista, com clínica em Lisboa, almoça fora, assim como milhões que trabalham longe de casa. Almoço a sós, na maioria dos dias. Uma situação bastante comum. Até aqui, nada de novo. À primeira vista, a refeição solitária é um fato, ou uma condição, a ser encarada sem maiores qualificativos, positivos ou negativos. Será mesmo?

Aviso aos desatentos: seguem-se afirmações fortes. Muitos se indagarão se não exagero, se não «se le fue la mano» a este cidadão, assim como devem pensar se não «se les fue la mano a los catalanes» ao buscar assim, assim, tão de repente, a independência da Catalunha ao longo do segundo semestre de 2017.

Tenho como tema de meu almoço de hoje exemplificar a tese, acima referida, de que o comensal solitário pode experimentar– se quiser, claro, ou se sua sensibilidade no momento o permitir–, em cada refeição solitária, uma epifania, uma revelação sobre si mesmo.

A refeição desnuda a pessoa que come a sós. Convenhamos que se trata de ato voluntário, e dependente do grau de sensibilidade pessoal.

Sozinho, diante de uma mesa e de uma refeição, a mente solitária, se estiver disposta e aberta, se desvela diante do ser. O ser cresce e a mente mergulha em reflexões perante sensações e circunstâncias. As pessoas e os objetos em torno se transformam, diante daquele que faz sua refeição sozinho, em referências, distantes ou próximas, para uma construção reflexiva sobre o próprio eu.

Podemos, sim, ser um comensal solitário, mesmo com muitas pessoas em nossa mesa.

Longe de conjeturar sobre migalhas da condição humana, e carecer de expressividade, a reflexão sobre o comer só justifica-se, quando nada porque essa condição é capaz de revelar o homem nu, na sua essência, desvestido das convenções inerentes ao gregarismo.

Não se pretende aqui fazer qualquer tipo de apologia do individualismo per se, mas de defender o potencial de expressividade que cada indivíduo carrega dentro de si.


O momento da refeição solitária leva à reflexão, expõe-nos à nudez mental, a reflexão se libera como que por encanto da roupagem do diálogo, seja ele enlevado ou banal. Impossível evitar, diga-se de passagem e como terão notado, o paralelismo, ainda que transfigurado, com a forma com que Eça de Queiroz sugere possa a realidade transformar-se em arte, com a linda imagem do «manto diáfano da fantasia».

Na multiplicidade das sensações que nos traz mastigar, solitariamente, um simples pedaço de pão dormido, ou belos ravioli de abóbora al burro e salvia, olhamos em volta e nos vemos por inteiro a nós mesmos, numa misteriosa perspectiva cujo ponto de fuga está dentro de nós. Nesse momento, somos íntimos de nós mesmos, ainda que vistos sob «o manto diáfano da fantasia».