Ensaios

REFEIÇÃO SOLITÁRIA: MUITO PRAZER (PARTE VIII)-OS CONSTRANGIMENTOS

–Boa tarde, tenho reserva em meu nome, Pedro Coelho.

–O senhor está sozinho? indaga-me, num tom impaciente, mas algo suave, o recepcionista no restaurante.

Pronto! Digo-lhe que sim, a reserva é para duas pessoas, mas a outra não pode vir. O recepcionista retruca com um sinal de compreensão, e leva-me à mesa reservada. Mas, sinto, com sua indagação inicial–« o senhor está sozinho?», uma brisa de desconfiança: o que pretende uma pessoa sozinha em um restaurante de bom nível? Saciar a fome? Manda a lógica utilitária que fosse a um local mais prático ou mais em conta. Então, veio para degustar um prato específico, o nosso pato com azeitonas é de fato extraordinário, vem gente de todo lado para prová-lo, ou então, porque? Sento-me à mesa indicada, recebo a pronta atenção do garçon, que me estende o cardápio, enquanto vejo à volta. Percebo alguns olhares de soslaio em mesas próximas, o que ocorre mais amiúde quando essas mesas, mais próximas, estão ocupadas por casais. Não sei, talvez porque sobra mais espaço entre as frases que trocam entre si. Não é como numa mesa que reúne gente de negócios, a conversa em cascata constante de palavras onde sobressaem as consoantes nas frases propositivas, ocupando as vogais, com cara de interjeição, os espaços intermitentes das dúvidas, nas respostas. E tampouco é como em mesas com número maior de pessoas, onde a algazarra ocasional da conversa, especialmente se há vinho ou cerveja na mesa, tende a predominar sobre a filosofia do silêncio.

Em ocasiões, porém, mesmo em mesas grandes ou pouco prováveis, posso perceber um rápido olhar inquisitivo de um vizinho de mesa– o mais das vezes será, pour cause, uma mulher– que, por sensibilidade mais aguçada ou por mera curiosidade, atentará para a condição do comer solitário. Parece que as mulheres sempre são mais atentas do que os homens. A tudo. Nenhum motivo para eu me sentir enlevado, esse olhar não é forçosamente para mim, mas para a minha condição solitária à mesa. Em todo caso, para resumir numa expressão esse conjunto de atitudes dos demais no restaurante para com o comensal solitário, tal como as percebo, diria ser um misto de admiração e… desprezo seria palavra muito forte, descaso será mais apropriado. Pode ser?

A condição individualista de quem come a sós em sítios públicos, restaurantes, praças, etc., não permite dar muito crédito a esses presumíveis sentimentos das outras pessoas. Justamente porque o indivíduo nessa condição carrega consigo um potencial  reflexivo que lhe é próprio. O caso a seguir, relatado por um casal amigo, mostra bem o que poderia ser considerado como quase que paradigmático, quanto à segurança, ou confiança em si próprio que advém dessa disponibilidade e dessa abertura para a reflexão. Paris, em um restaurante de certa reputação, à rua St. Honoré, com mesas bem aparelhadas com toalhas cor de salmão, cadeiras estofadas, tudo como convinha à época, estamos em fins da década de 1970.

Janta o casal amigo, senhor e senhora L.O, ambos brasileiros. Conversam em português. Na mesa ao lado, uma senhora, de ares distintos, faz a refeição a sós. O casal, pouco à vontade no idioma francês, examina o cardápio, tem dificuldades em conhecer os pratos listados, mesmo após alguma ajuda do garçon. Acabam, depois de muita hesitação, por escolher entrada e prato principal a esmo, aleatoriamente, por intuição. Passado o relativo stress da escolha dos pratos, é hora de relaxar um pouco, dão uma olhada ao redor. A senhora L.O. de imediato nota a senhora distinta ao lado, que faz solitariamente sua refeição e não se contém. Comenta casualmente com o marido, em bom português, na suposição de que não será entendida pela outra senhora, ainda que esta a ouça perfeitamente por estar a mesa próxima à deles: –que coisa desagradável, essa gordona, coitada dessa mulher, sozinha no restaurante. Muito triste, isso, vir pra cá sem uma companhia. E continua: –está lendo essas revistas, como consegue?, acho que está fingindo. Marido quieto. Vêm os pratos. Comem e gostam do que estão a comer, sem saber o quê. Reconhecem a sobremesa, peras ao vinho, ficam satisfeitos.

A senhora L.O. continua, finda a refeição, incomodada com a distinta senhora ao lado, que já terminara a refeição e continua na leitura das revistas. Comenta: veja, L., ela continua lendo essas revistas, ou fingindo. Não sei o que comeu, mas seria  bom se ela visse o que nós comemos, estava ótimo! Ao lado, a senhora distinta, não mais se contendo, e dando-lhes, como de esperar, enorme susto, disse-lhes em português perfeito:–queiram desculpar-me, meus amigos, mas não pude evitar, ouvi tudo o que falavam, inclusive sobre a minha pessoa. Meu nome é Manou Bériot. Como vêem, falo português, estive no Brasil por longos anos, meu pai foi cônsul em São Paulo. Depois em Angola e Portugal. Sou francesa, socióloga, professora aqui na Sorbonne, e admiro muito o Brasil. Venho sempre a este restaurante, moro aqui perto. Infelizmente, meu marido já faleceu.

No mais das vezes, venho jantar aqui sozinha, gosto deste lugar, come-se bem aqui. Tiveram sorte na escolha do restaurante, posso dizer-lhes, entraram sem ter feito reservas, não é mesmo? Vi que tiveram dificuldades com o cardápio, mas escolheram muito bem. O primeiro prato que escolheram, a entrada, foi pescoço de ganso farci, recheado de foie gras, acompanhado de seus pequenos filets. É uma iguaria do Périgord, pediram muito bem, com certeza gostaram. Não é em qualquer restaurante de Paris que se encontra cou d´oie farci au foie gras. Já o prato principal, maigret de canard, também é boa escolha, ainda que nada original; e o mesmo diria da sobremesa, pêra ao vinho, penso que esteve bem. Nesse instante, a senhora L.O. quis interromper, para dizer que para eles, no Brasil, essa sobremesa ainda era uma novidade, novidade deliciosa, aliás, mas se conteve, ainda petrificada e constrangida em ouvir a senhora distinta dirigir-lhe a palavra em português, desnudando os segredos indiscretos na conversa que o casal havia mantido até então.

Continuou a senhora Bériot: –pena que não optaram pelos queijos, que os há muito bons aqui. Quanto às revistas, eu as trago para ocupar-me, pois venho, como digo, o mais das vezes a sós. Não quero passar o meu tempo aqui apenas a ver as pessoas. Mas, quero felicitá-los pela estada em meu país, e especialmente aqui em Paris, desejo-lhes bom divertimento.

Silêncio. A senhora L.O não sabia o que dizer. Pediu desculpas, «não sabia que falava português!, estou com a cara no chão», etc, essas coisas que dizemos quando flagrados em situações constrangedoras como essa. E foi correspondida pela senhora francesa com toda a simpatia e compreensão. Sei ainda dizer que ficaram amigos de ocasião, o casal e a comensal solitária.

Talvez o casal meu amigo se tenha esquecido de que o português é a terceira língua mais falada no Ocidente, a primeira mais falada no Hemisfério Sul. Mas aprenderam a lição, de resto muito comum até os dias de hoje, pelo mundo fora.

Nós, os brasileiros, temos um complexo qualquer, não sei de de inferioriade ou de superioridade, ao pensarmos que estamos solitários ao falarmos a nossa língua. Isso, pasmem, vale até em Portugal, pois, superiormente, achamos que os portugueses, que falam, como acreditamos seriamente, uma espécie de «patois» do português, jamais nos entendem. Nem ´falando` devagar.

Examinemos um outro caso, no polo oposto? Ou seja, de entendimento pleno pelo cidadão que come a sós daquilo que falam na mesa ao lado e não se manifesta, propositadamente.

Washington, D.C. Primeiro posto no exterior de minha carreira diplomática, curta então, em 1975, de poucos anos. Estive «lotado», quer dizer, servi, em nossa embaixada, até 1980. Aproveitei bem a estada de cinco anos na capital norte-americana. Para além do trabalho muito estimulante, com direito a participar de toda uma sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas (todo o último trimestre de 1976) em Nova York, e de muitas reuniões multilaterais por obra e graça de minha experiência anterior no Itamaraty, nos primeiros anos de formado, na Divisão das Nações Unidas, graduei-me por duas universidades sitas nessa cidade, George Washington (B.A. em música, flauta, 1978) e Georgetown (M.A. em teoria política, no seleto «Department of Government», 1982). Passei minhas férias, minhas horas de almoço e as horas ativas da noite nas universidades, e muitas madrugadas em claro com as leituras intermináveis sobre teoria política na antiguidade, Tucídides e a História da Guerra do Peloponeso, quem foi o general Alcebíades?, e a democracia mais tarde, São Tomás de Aquino e Santo Agostinho, Hobbes e Locke,  sim, Edmund Burke (Georgetown é sabidamente uma universidade de inclinação conservadora, muitos professores padres jesuítas, muitos outros que foram chamados para servir em administrações republicanas—no Brasil dizemos «governos de direita»), Tocqueville e a Democracia na América; e, no que toca à música, na Universidade George Washington, os exercícios de harmonia, contraponto, e composição (estudei composição e contraponto com Robert Parris, senti muito quando soube de seu falecimento em fins da década de 1990). Portanto, conheci algo da cultura e do modo de vida nos EUA. Digo tudo isso, recupero esses dados pessoais, pelo que peço perdão a quem porventura me lê, para deixar claro que o meu silêncio, no episódio que relato a seguir, foi consciente, não decorrendo, como se poderia suspeitar, de qualquer incapacidade de interagir com cidadãos norte-americanos no mesmo plano cultural, e obviamente tampouco no plano da língua.

O episódio diz respeito aos comentários curiosos que o casal da mesa ao lado, no restaurante «Le Bistrot», na rua M, em Georgetown, fez, quando lá estive creio que em 1981. Já lotado noutro posto (Assunção), regressara a Washington, D.C., durante as férias, para terminar meu mestrado. Aprendi muito de comida francesa boa, de bistrô, nesse restaurante, que frequentei muito. Nessa ocasião, entre aulas na universidade, lá estava eu, a comer sozinho. Na mesa colada à minha, o tal casal jovem. Perfil «yuppie»–da época, cabe precisar. Não entendiam, comentavam entre si, estar eu ali a comer sozinho. Presumiram que era estrangeiro—como não sou branco nem preto pelos critérios norte-americanos, a condição de estrangeiro estava na cara; e que eu não entendia o que diziam—o que é mais estranho, pois com relação à língua inglesa, a presunção deveria ser ao contrário (por isso digo serem «yuppies» datados). Tratando-se de um local mais bem «chic», se perguntavam, com ar efetivamente de espanto, ou de admiração, porque alguém iria ali comer sozinho, em vez de almoçar um sanduíche no parque ao lado, como «todos fazemos». De fato, era outono, o tempo estava bonito, merecia uma refeição num banco do parque, no meio de um chuviscar sereno de folhas amarelas. Mas, nesse dia, foi minha opção ir ao «Le Bistrot».  Deixei-os conjeturar à vontade. Apenas sorri sempre que faziam alguma especulação absurda: lembro-me de eles imaginarem ser eu talvez um «Indian prince». Não estavam ofendendo, e assim, deixei-os em diversão com seu diálogo. Daria muito trabalho interferir, explicar coisas. Pode ser que eu também tenha perdido a oportunidade de fazer mais um relacionamento, como o senhora Bériot fez com o casal meu amigo, no caso citado acima, mas isso é complicado em qualquer lugar, em Washington daquela época mais ainda. A lição proposta pelo episódio é que, justamente, o casal yuppie-datado, com seu diálogo, e por isso não quis eu interferir, exemplifica os sentimentos mistos de desprezo, ou curiosidade, e admiração que desperta, por vezes, quem come sozinho, seguro de si mesmo em sua inocente e silente presença.